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O governo federal atrai a arbitragem para dentro de si

Agenda 08/12/2010 às 13:22

1. Indisponibilidade dos direitos públicos – 2. A iniciativa da AGU-Advocacia Geral da União – 3. A cultura da judicialização – 4. O pré-sal na arbitragem – 5. O supedâneo legal


1.Indisponibilidade dos direitos públicos

É princípio já sedimentado que a arbitragem é um sistema de solução de litígios ocorridos na área privada, pelo que diz o artigo 1º da Lei da Arbitragem, a Lei 9.307/96:

As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

Os direitos públicos não são disponíveis, e, por isso, não podem ser submetidos à arbitragem. O Governo não pode desobedecer à lei que ele criou. Citaremos como exemplo a isenção ou abatimento de impostos a um cidadão, porque ele se revelou bom chefe de família. O Governo não tem essa faculdade. Se o Poder Público quiser fazer acordo judicial, só se houver uma lei dando-lhe essa faculdade, e será uma lei para toda a coletividade e não apenas para a parte que com ele contende.

Por essa razão, é por demais difícil aplicar a arbitragem nas áreas do Direito Público, como na penal e na processual. Não poderá, por exemplo, a juiz diminuir a pena de um condenado, se ele prometer pagar impostos atrasados; não pode haver esse tipo de acordo. Em outras palavras, não haverá acordo judicial se uma das partes for o Poder Público, pois não há transação.


2.Iniciativa da AGU-Advocacia Geral da União

Parece, entretanto, que se descobriu uma fórmula para contornar a lei, nesse aspecto. O primeiro passo foi na área da produção e distribuição de energia elétrica, envolvendo as empresas públicas, assim dizendo empresas de capital totalmente do Governo. Agora está em desenvolvimento um plano mais ousado ainda de aplicação da arbitragem na administração pública, mas na intimidade desta: entre órgãos públicos. É a aplicação do famoso brocardo italiano: Da mihi facti dabo tibi jus=Dê-me os fatos, dar-te-ei o direito. Interpretamos esse provérbio no sentido de que dos fatos nasce o direito, ou seja, os acontecimentos ocorridos na sociedade provocam o aparecimento das leis. No presente caso, os acontecimentos na vida pública fizeram com que se interpretasse de forma diferente a indisponibilidade dos direitos públicos e esse passo foi dado exatamente pelo órgão público encarregado de defender esse direito: a AGU-Advocacia Geral da União.

Combinando vários dispositivos legais, a AGU concluiu pela legalidade da aplicação da arbitragem na administração pública, ou seja, entre as várias divisões do Governo. Partiu também da AGU a iniciativa de criar a CCAF-Câmara de Conciliação na Administração Federal, órgão da própria AGU, vale dizer, um órgão no seu âmbito interno. A conclusão da AGU foi a de que a arbitragem não somente é possível no Governo, como também de alta conveniência. E provou pela prática o acerto dessa conclusão. Muitas razões foram aventadas para justificar o emprego do procedimento arbitral na intimidade do Governo Federal.

As experiências iniciais atingiram êxito, que fez solidificar a aplicação da arbitragem no seio do Governo Federal, tanto que se foi estendendo. O objetivo da CCAF era, a princípio restrito: solucionar, em âmbito nacional por conciliação ou arbitragem, controvérsias entre órgãos e entidades públicas federais. Quer assim evitar que órgãos federais se digladiem judicialmente nos órgãos judiciários federais.

Agora, porém, está indo mais longe, colocando no pólo das relações jurídicas as administrações estaduais e já houve diversos casos de conflitos entre elas, já resolvidos satisfatoriamente. Em 2009 houve uma contenda inusitada, que deu margem para se apelar à arbitragem por uma parte da administração pública, mas não federal. A Companhia de Água e Abastecimento de Alagoas pediu um empréstimo à CEF-Caixa Econômica Federal, que foi negado por essa autarquia sob alegação de que a postulante estava com registro irregular no SIAFI, um órgão de controle de regularidade de administrações públicas. Após várias discussões, as duas partes celebraram um acordo para submeter o conflito à solução arbitral por meio da CCAF, tendo o assunto sido resolvido de modo satisfatório entre os dois órgãos: um federal e o outro estadual.

O sucesso dessa arbitragem animou a AGU e a própria administração federal a discutir a solução negociada com as administrações não federais. Além dos órgãos estaduais, também os municipais vieram a compor pela arbitragem na CCFA. Podemos citar como exemplo, o problema de terras pertencentes à RFF-Rede Ferroviária Federal, que se extinguiu, passando seus imóveis ao patrimônio nacional. As Prefeituras de Bandeirantes e Andirá, no Paraná, reivindicaram o patrimônio desses imóveis para si, entrando em conflito com a União. Essa controvérsia entre a União e as prefeituras teve solução pela CCAF, com ampla satisfação por parte de todos os envolvidos.

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3.A cultura da judicialização

A aplicação da arbitragem na administração pública fez surgir dois neologismos, que vem entrando no vocabulário jurídico: judicialização e desjudicialização. A palavra judicialização designa uma tendência popular, quase um vício psicológico que domina muitos povos, mas parece que o brasileiro está impregnado por ele. Judicialização é a tendência pública para entregar a solução de seus problemas à Justiça Pública, afastando as formas extrajudiciais de solução.

A opção por outras formas de solução de pendências, que não a judicial, enfrenta muitas resistências. Uma delas é o medo do desconhecido, quando o conhecido já nos oferece muitos caminhos. Quantas vezes um motorista faz um longo e complicado trajeto, mas que ele conhece, evitando outro bem mais fácil, mas sobre o qual ele tem dúvidas?

O Brasil luta atualmente para aplicar nova lei falimentar, surgida em 2005, estabelecendo sistema moderno, eficiente, fácil, encontrando empecilhos, porque o país viveu 60 anos sob um sistema antiquado, ineficaz, superado e deficiente, mas conhecido e praticado durante todo esse tempo! Muitos consideram verdadeira aventura solucionar problemas pela arbitragem, quando há mais de cinco séculos o Brasil judicializou a solução de seus problemas.

Não somente o medo do desconhecido afeta o direito, mas tudo; toda inovação gera medo e desconfiança. Dizem que os mineiros são desconfiados porque Minas Gerais é cheia de montanhas e eles não sabe o que virá de atrás do morro. É a aplicação de um velho brocardo italiano:

Chi lascia la strada vecchia per uma nuova, sa quela Che lascia ma non as quela che trova.

(Quem deixa a estrada velha por uma nova, sabe qual que deixa, mas não sabe a que encontra.)

Além disso, a judicialização cria no espírito humano o ânimo de litigiosidade; quem quer brigar vai à Justiça, pois vê nela uma arena de digladiadores. O resultado do alto nível de litigiosidade é o açodamento com que todos batem à porta do Judiciário, e o enorme volume de feitos correndo em todas as varas, mas, no nosso caso, estamos preocupados com a Justiça Federal. No Japão correm normalmente 2.000 feitos trabalhistas, em todo o país; no Brasil dois milhões e meio. Como se explica esse disparate? Um dos dois deve estar errado!

Em balanço fechado em 31.12.2009, foram constatadas as seguintes estatísticas:

2.461.927 – processos nas varas federais de 1º grau proposta contra a União,autarquias e empresas públicas federais.

112.617 – novas ações, propostas em 2009 contra a União, autarquias, etc.

666.418 – ações correndo na Justiça Federal de 2º grau;

3.443.306 – processos em andamento no 1º grau da Justiça Federal.

728 .919- processos em andamento no 2º grau da Justiça Federal

7.413.186 – Total de processos em que a União, autarquias federais e empresas públicas federais atuam, ou num pólo ou no outro.

Ante esses dados, alguém pode imaginar quando essa situação será acertada? Ou se poderá ser acertada? Quanto custa ao país a manutenção desse statu quo? E o aspecto primordial: poderá haver Justiça nessa situação? O exame dessas estatísticas nos últimos anos levou a AGU a criar a CCAF, objetivando não só a solução prática e rápida dos conflitos, mas também desafogar o Judiciário.

Surgiu então a idéia da desjudicialização, uma nova tendência: a de afastar da Justiça Pública a solução dos conflitos humanos, optando por nova forma de solução, mais sensata, rápida, justa, equitativa e eficaz. Foi o espírito de litigiosidade o grande responsável pelas novas idéias de desjudicalização. Não há quem não esteja cansado da litigiosidade, desse espírito belicoso que domina ainda o mundo, mas se vem atenuando, conforme demonstra a constante opção pelas vias suasórias de composição da lide. É a causa do sucesso e desenvolvimento da arbitragem no seu latu sensu, assim considerado o conjunto de formas alternativas, como a negociação, a mediação, a conciliação, a arbitragem.

Há ainda um fator a ser considerado. O Governo negocia seus direitos, apesar de inegociáveis. Os conflitos submetidos à CCAF tem como partes órgãos do Governo; nessas causas e ele é devedor e credor, de tal forma que não terá lucro nem prejuízo. O choque de interesse é apenas de formalidades da ação pública; a indisponibilidade do crédito público não fica afetada. O choque entre dois órgãos do mesmo poder representa, pois, litigância desnecessária.


4.O pré-sal na arbitragem

O exemplo mais sugestivo dos resultados da desjudicialização foi adotado na área petrolífera, quando começaram, a surgir os efeitos jurídicos do pré-sal. Foi um assunto que explodiu de forma abrupta, provocando não só problemas momentâneos, mas a visão de inúmeros conflitos jurídicos, tanto na área nacional como internacional. As potenciais soluções para esses problemas e dilemas precisariam ser prospectivas, plantando desde já as bases dos métodos de resolução. Deixando de lado as vinculações internacionais, é sugestiva a forma pela qual a arbitragem penetrou nessa área, acionando a CCAF.

No Brasil, a exploração do petróleo e gás é monopólio da União; esta, por sua vez, criou um órgão especializado para gerir e controlar essa atividade: a ANP-Agência Nacional do Petróleo; além dessa entidade estatal foi criada a Petrobrás, uma empresa estatal federal, para a execução e desenvolvimento da produção e comercialização do petróleo. Formou-se, destarte, um trinômio integrado na atividade petrolífera, cujos componentes vem oferecendo alguns dilemas e entreveros. São, todavia, três entidades federais e ligadas a um mesmo interesse econômico: o petróleo, embora independentes.

Uma série de dilemas e conflitos de idéias surgem entre as três pessoas jurídicas de direito público federal, que, muitas vezes, se viam constrangidas a bater às portas do Judiciário, que é outro órgão público federal. Cada demanda ia restringindo a liberdade e a ação delas, que se viram logo manietadas e engessadas. Surgiu a idéia de se criar um foro próprio para esse tipo de problema. Criar novas varas para Justiça Federal, especializadas, logo provou reações contrárias. Foi então priorizar a arbitragem e outras formas de resolução, fora do Poder Judiciário, visto que este recurso já estava superado e incapacitado de atender às necessidades que estavam se revelando. E a medida adotada foi a criação da CCAF, por disposição da Medida Provisória 2.180-35/2001, para a justa composição das lides que envolviam o trinômio: União, ANP e Petrobrás, sediada em Brasília, como órgão da AGU.

Não foi apenas uma forma simplista de fugir da Jurisdição comum, mas fatores técnicos e concretos referendavam a adoção do sistema arbitral. Atende a uma das características vantajosas da arbitragem: a especialidade. É um foro especial, específico de assunto certo e determinado, ao invés da Justiça comum, que é genérica, não especificada. Há realmente na Justiça comum a divisão por especialidade, como Justiça do Trabalho, da Fazenda Pública, Penal, Civil, Tributária, mas não atende à especialização técnica restrita.

Os problemas referentes ao petróleo são de natureza variada, mas com ramos técnicos especificados; não apenas jurídicos. Há aspectos administrativos, geológicos, químicos, telúricos, de engenharia de várias modalidades, de segurança. Por estas e por muitas outras razões, a CCAF é constituída por árbitros de várias formações técnicas, engenheiros de várias modalidades; também por advogados especializados.

Contando essa arbitragem especializada com alta tecnologia, preparados para cada tipo de problema, a CCAF já resolveu quase uma centena de casos, envolvendo o trinômio: União, ANP e Petrobrás, que, se fossem levadas ao Judiciário, levariam anos para a resolução. Estamos ainda no início, na fase embrionária do pré-sal, e estamos limitados somente ao âmbito restrito do trinômio, portanto, de cunho nacional. Difícil será avaliar o quanto a arbitragem poderá resolver problemas cruciantes da administração pública, quando se operarem realmente as atividades do pré-sal. Nesses momentos, os problemas vão-se alastrar nas relações do trinômio com a iniciativa privada e serem estabelecidos contratos internacionais, apelando-se, pois, para a arbitragem internacional.

Some-se ainda que, no presente momento, há apenas o relacionamento entre os três componentes do trinômio; contudo, em breve, serão atingidos os governos estaduais e municipais, o que ocorrerá fatalmente, porquanto a exploração do petróleo pode ocorrer na área de municípios do Brasil.


5.O supedâneo legal

Embora a arbitragem só agora começe a se revelar no âmbito da administração pública federal, os rudimentos do sistema já vem de longa data, há quase uma década. A Lei Complementar 73/94 instituiu a Lei Orgânica da Advocacia Geral da União, abrindo largos poderes, responsabilidades e atribuições a esta, dando-lhe oportunidade de instituir a arbitragem na administração pública federal, embora não falasse especificamente a este respeito. Entretanto, abriu o caminho ao prever transação pela AGU.

A Lei 9.469/1997 deixou clara a autorização para que os direitos federais fossem transacionados, apesar de lhe impor certos limites, conforme está expresso no artigo 1º:

O Advogado-Geral da União, diretamente ou mediante delegação, e os dirigentes máximos das empresas públicas federais poderão autorizar a realização de acordo ou transações, em juízo, para terminar o litígio, nas causas de valor até R$500.000,00 (Quinhentos mil reais).

Todavia, a mais eficaz introdução na administração pública federal da resolução conciliatória foi prevista na Medida Provisória 2.180-35/2001. Daí para diante, passou a ser praticada de forma tímida, com um ou outro caso, quase que de maneira experimental. E o período experimental foi positivo e estimulante, razão pela qual a AGU começou a agir de forma eficaz e agressiva, dando regulamentação ao sistema e adotando medidas para assegurar seu desenvolvimento.

O mais importante passo foi a Portaria 1.281, de 27.11.2007, dispondo que o deslinde, em sede administrativa, de controvérsias de natureza jurídica entre órgãos e entidades da administração pública federal. Segundo o artigo 2º dessa portaria, para as controvérsias estabelecidas, de natureza jurídica, entre órgãos e entidades da administração federal, poderá ser solicitado seu deslinde por meio de conciliação a ser realizada pela CCAF-Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal. Essa solicitação poderá ser apresentada por Ministros de Estado, dirigentes das entidades interessadas, pelo Procurador–Geral da União e outras autoridades, indicando o representante para participar de reuniões e juntando documentos.

A CCAF indicará um conciliar para proceder ao exame preliminar da solicitação, seguindo-se os trabalhos de mediação, conciliação e arbitragem. Havendo acordo satisfatório entre as partes, será lavrado o respectivo termo, que será submetido à homologação do Advogado-Geral da União.

A Portaria prevê ainda o treinamento e a preparação dos árbitros que constituirão as câmaras da CCAF, promovendo cursos objetivando capacitar integrantes da Instituição e seus órgãos vinculados a participarem de atividades conciliatórias. Além dos membros da Câmara, poderão ser designados conciliadores os integrantes da Consultoria-Geral da União, por ato do Consultor-Geral da União; e os integrantes da Advocacia-Geral de União, por ato do Advogado-Geral da União.

Sobre o autor
Sebastião José Roque

advogado, professor da Universidade São Francisco - campi de São Paulo e Bragança Paulista, mestre e doutor em direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Empresarial pela Universidade Panthéon-Sorbonne (Paris) e pelas Universidades de Bolonha, Roma e Milão, presidente do Instituto de Direito Brasileiro de Direito Comercial Visconde de Cairu

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROQUE, Sebastião José. O governo federal atrai a arbitragem para dentro de si. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2716, 8 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17993. Acesso em: 22 dez. 2024.

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