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Imunidade tributária do livro eletrônico

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"Das tabuinhas xilográficas para os tabletes de argila, dos rolos manuscritos aos volumes em pergaminho e destes para os impressos em papel; dos estiletes para os pincéis e as penas de pato, destas para as metálicas e para os tipos móveis, o livro chegava assim ao que até agora é a sua última metamorfose técnica: a composição e impressão eletrônicas.

          Paralelamente, das bibliotecas lenhosas e minerais para as da Antigüidade e da Idade Média, dos catálogos em fichários de cartão para os catálogos informatizados, também as bibliotecas estão acolhendo em número crescente o que Herbert Mitgang, do New York Times, denominou em 1990 "O livro sem papel" (the paper-less book)".(1)


1. Introdução.

Questão de grande relevo é a de saber se a imunidade concedida pelo artigo 150, VI, "d", da Constituição Federal de 1988 alcança os disquetes de computador e similares, cujo conteúdo seja composto de arquivos de dados equivalentes ao conteúdo dos livros, também chamados livros eletrônicos.

Nada obstante os disquetes e similares também possam ter conteúdo diverso, tais como programas feitos sob encomenda ou em larga escala(2), o presente estudo tratará apenas dos referidos livros eletrônicos.

O avanço tecnológico que presenciamos desde a promulgação da Constituição de 1988 foi surpreendente. Referido progresso nos leva a crer que, cedo ou tarde, o livro eletrônico predominará sobre a versão de papel. Tal fato empresta ainda mais relevo ao tema aqui tratado.

Parte da doutrina tem se manifestado no sentido restritivo da norma imunizante, que não alcançaria os livros feitos de outro material que não o papel(3), razão pela qual a questão está a merecer esclarecimentos.

É o que se procura fazer por meio deste texto, na crença de estarmos contribuindo, ainda que modestamente, para a edificação de um verdadeiro Estado de Direito Democrático, que o Brasil pretende ser.


2. Teses restritivas da imunidade do livro.

OSWALDO OTHON DE PONTES SARAIVA FILHO, ilustre Consultor da União e Procurador da Fazenda Nacional, em estudo de primorosa feitura e com muito boa argumentação, sustenta que "a extensão, para conferir imunidade aos veículos de topo da atual tecnologia, representaria uma integração analógica, que não é apropriada à espécie." (4) Para ele, "talvez o constituinte não tenha pretendido estender a imunidade do livro, jornal e periódico e do papel destinado a sua impressão para o cd-rom e o disquete com programas, as fitas cassetes gravadas, etc., pelo fato de julgar que esses modernos meios de divulgação da moderna tecnologia não requeressem tal benefício, pelo fato de serem, em regra, consumidos apenas, por pessoas de melhor poder aquisitivo, olvidando a conveniência da extensão da imunidade, em comento, para a difusão destes novos meios de veiculação de idéias, conhecimento e informação." (5)

Em recente estudo, afirma ser "sensível aos argumentos de que a tendência é a disseminação cada vez maior do uso dos veículos de multimedia, de modo que eles, cada vez mais, convivem com os nossos tradicionais livros, jornais e periódicos, podendo mesmo chegar ao ponto de substituir, completamente, as funções dos livros, jornais e periódicos amparados pela norma constitucional do art. 150, VI, ´d´, mas aí haverá, certamente, emenda constitucional adequada com o fito de conservar a liberdade de expressão de pensamento e da transmissão de cultura e informação, sem a influência política," (6) RICARDO LOBO TORRES, no mesmo sentido, afirma que "não guardando semelhança o texto do livro e o hipertexto das redes de informática, descabe projetar para este a imunidade que protege aquele." (7)

          Para ele, "Não se pode, consequentemente, comprometer o futuro da fiscalidade, fechando-se a possibilidade de incidências tributárias pela extrapolação da vedação constitucional para os produtos da cultura eletrônica." (8)

          Quanto à possibilidade de se atender à intenção do constituinte, sustenta o ilustre Professor: "Quando foi promulgada a Constituição de 1988, a tecnologia já estava suficientemente desenvolvida para que o constituinte, se o desejasse, definisse a não incidência sobre a nova media eletrônica. Se não o fez é que, a contrário sensu, preferiu restringir a imunidade aos produtos impressos em papel." (9)

Não obstante o brilhantismo de seus defensores, as teses restritivas da imunidade do livro, além de carregadas, data máxima vênia, de inescondível conteúdo autoritário, consubstanciam equívocos e são por isto mesmo insubsistentes, como adiante será demonstrado.


3. Interpretação adequada da norma imunizante.

As teses restritivas da imunidade em questão, inobstante o respeito que de todos merecem os seus autores, cometem o elementar pecado de cuidarem de norma da Constituição como se de norma de lei ordinária se tratasse, adotando postura hermenêutica absolutamente incompatível com o moderno constitucionalismo, que preconiza métodos próprios para a interpretação constitucional.

Realmente, não se deve interpretar uma norma imunizante como se interpreta norma instituidora de isenção. A norma imunizante de que se cuida foi encartada no texto constitucional para a proteção de valor fundamental da humanidade, que é a liberdade de expressão, sem a qual não se pode falar de democracia. Em vista disso, "deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê." (10)

A interpretação de norma constitucional sempre inspira cuidados. Atento ao princípio da supremacia constitucional, não pode o intérprete esquecer que a Carta Magna alberga os princípios fundamentais do Estado e que na interpretação de suas normas tais princípios devem ser vistos como um conjunto incindível e não podem ser amesquinhados por força do literalismo estéril que infelizmente ainda domina muitos juristas ilustres.

          3.1 A hermenêutica constitucional.

O ilustre Professor PAULO BONAVIDES, ao tratar dos métodos de interpretação da nova hermenêutica, ensina que:

"A adaptação da Constituição à sua época preocupa de maneira constante o formulador da nova concepção interpretativa, tanto que ao fator tempo atribui importância capital. Não é à toa que ele assevera ‘viver o Direito Constitucional primia face numa específica problemática de tempo.’ e que ‘a continuidade da Constituição somente é possível quando o passado e o futuro se acham nela conjugados.’

A controvérsia acerca dos métodos no Direito Constitucional é, em última análise, segundo Häberle, uma luta acerca do papel que deve caber ao tempo. A velha hermenêutica, pelo seu caráter mais estático que dinâmico, deve ser vista como instrumento por excelência das ideologias do ‘status quo’.

A interpretação concretista, por sua flexibilidade, pluralismo e abertura, mantém escancaradas as janelas para o futuro e para as mudanças mediante as quais a Constituição permanece estável na rota do progresso e das transformações incoercíveis, sem padecer abalos estruturais, como os decorrentes de uma ação revolucionária atualizadora." (11)

Com efeito, em ordenamentos como o brasileiro, erguidos a partir de uma Constituição rígida, papel ainda mais importante adquire a interpretação constitucional.

Diante de freqüentes mudanças na realidade, a norma constitucional começa a ter a cada dia menor utilidade, se imobilizada por uma interpretação literal, e rapidamente se fará necessária sua reforma, abrindo-se oportunidade para modificações indesejadas na norma constitucional, com um conseqüente prejuízo para a segurança jurídica.

Por outro lado, se é certo que não devemos interpretar a norma constitucional segundo os métodos da hermenêutica tradicional, induvidoso é que não se pode admitir a prevalência do método, ou elemento literal, sabidamente de franciscana pobreza, e por isto mesmo insuficiente, mesmo para a interpretação das normas infra constitucionais.

E na verdade só através de uma interpretação literal se pode conceber a limitação da imunidade do art. 150, VI, "d", aos livros de papel. Os elementos histórico, sistêmico e teleológico, cada um e todos conduzem ao resultado oposto.

Se utilizarmos o elemento histórico, considerando ser o livro eletrônico a mais moderna forma de livro, inexistente ao tempo da promulgação da Constituição, ou pelo menos de existência ainda não significativa àquela época, e que fatalmente substituirá a versão de papel, inevitavelmente concluímos estar ele também abrangido pela imunidade.

Guiados pelo elemento sistêmico, verificamos que a regra imunizante deve estar em sintonia com as demais normas da Constituição, especialmente com aquelas que consagram os direitos e garantias fundamentais, vetores da interpretação de qualquer norma de nosso ordenamento. E assim, inevitável será a conclusão de que a interpretação abrangente da norma imunizante é a única forma de preservar tais garantias fundamentais.

Utilizando o elemento teleológico, atentando para a finalidade da norma imunizante, concluímos que esta deve abranger inclusive outros meios de difusão do pensamento, e não apenas o livro eletrônico, sob pena de ser tal norma amesquinhada por uma forma de esclerose precoce que em breve a invalidará.

Portanto, mesmo utilizando a hermenêutica tradicional para interpretar a Carta Magna, vê-se que apenas o elemento literal, responsável, sabemos todos, por verdadeiros absurdos quando utilizado isoladamente, nos orienta no sentido de considerar imune apenas o livro, jornal e periódico de papel.

De todo modo, mesmo sem apelar para outros aspectos da doutrina do moderno constitucionalismo, a razão parece estar com AFONSO ARINOS, segundo o qual a técnica de interpretação constitucional "é predominantemente finalística, isto é, tem em vista extrair do texto aquela aplicação que mais se coadune com a eficácia social da lei constitucional. Esta interpretação construtiva permite, em determinadas circunstâncias, verdadeiras revisões do texto, sem que seja alterada a sua forma." (12)

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Por isto mesmo é importante sabermos da finalidade da norma imunizante, para que se tenha maior segurança no afirmar o seu alcance.

3.2 Finalidade das imunidades.

É sabido que o tributo possui outras funções que não a de mero instrumento de arrecadação. Os impostos também podem ser utilizados pelo Poder Público para promover intervenção na economia. É a denominada função extrafiscal do tributo.

Os impostos de importação e de exportação, embora propiciem receita significativa para o Tesouro, são utilizados predominantemente com essa função. O IPI, outro clássico exemplo de extrafiscalidade, incide com variadas alíquotas, dependendo da natureza e da essencialidade do produto. Sobre produtos considerados essenciais, a alíquota é menor, chegando a zero. Para produtos considerados supérfluos, ou de utilização inconveniente, como é o caso do cigarro, e da água ardente ou cachaça, por exemplo, incide a alíquota mais elevada.

Isto mostra que o tributo pode dificultar ou até mesmo impedir totalmente a atividade tributada. O poder de tributar, como já afirmou a Corte Suprema dos Estados Unidos, envolve o poder de destruir. Nas palavras de PINTO FERREIRA, "O poder ilimitado de tributar significa o poder de destruir a liberdade, uma vez que quem controla a segurança econômica do homem também lhe controla a liberdade." (13) É fácil, assim, compreender a finalidade das imunidades, que constituem limitação do poder de tributar.

Quando se cogita de imunidade, não se há de pensar em termos dos impostos hoje existentes. A imunidade foi imaginada para proteger o objeto imune contra toda e qualquer forma de imposto. Para excluir o imposto como instrumento de dominação estatal.

Se fosse instituído imposto altíssimo sobre templos de qualquer culto, sem efeito estaria o direito ao livre exercício dos cultos religiosos, assegurado pelo art. 5.º, VI, CF/88. Caso não fosse vedado à União, aos Estados e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, a renda ou os serviços dos partidos políticos, restariam seriamente avariadas as bases da democracia no País. Vedando a tributação recíproca entre União, Estados, Municípios, a Constituição preserva o princípio federativo, evitando sofra este restrições decorrentes de tributação, com a qual uma entidade politicamente forte poderia destruir aquelas dotadas de menor poder político.

É fácil de se ver que a imunidade tem por fim impedir que, através do imposto, o Estado tolha a liberdade, a democracia e a forma federativa, transformando em letra morta os valores democráticos consagrados pela Constituição.

Tais imunidades, por isto mesmo, nem por emenda constitucional podem ser revogadas, vez que o art. 60, §4.º, IV determina que não será sequer objeto de deliberação emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa de Estado e Direitos individuais.

Assim, tais imunidades somente diante de uma nova Constituição podem ser revogadas. É a proteção máxima que o Direito pode oferecer, pois somente através de uma reconstrução dele podem ser removidas.

3.3. Finalidade da imunização do livro.

Analisando especificamente a imunidade garantida pelo artigo 150, VI, "d", da Constituição de 1988, verificamos ser ela garantia à liberdade de expressão, por ser o livro um veículo de divulgação de idéias, da livre manifestação do pensamento.

Com efeito, se fosse possível a tributação do livro, poderia o Estado instituir imposto esmagador sobre o mesmo, tornando-o inacessível. Esvaziado estaria o princípio constitucional da liberdade de manifestação do pensamento.

Barato o livro, mais viável fica a educação, a manifestação de idéias. A democracia como um todo, pois, como ressaltou PONTES DE MIRANDA:

"Se falta liberdade de pensamento, todas as outras liberdades humanas estão sacrificadas, desde os fundamentos. Foram os alicerces mesmos que cederam. Todo o edifício tem de ruir." (14)


4. Insubsistência das teses restritivas.

4.1 O Conceito de Livro.

Para verificarmos o alcance da imunidade do livro, faz-se necessário compreendermos o que é um livro. Devemos, pois, chegar à sua essência: aquilo que, presente, faz da coisa um livro e, retirado, faz com que a coisa deixe de ser livro.

Encontrada a essência, todo o resto será elemento acidental, que poderá perfeitamente ser alterado sem que deixemos de ter um livro.

Para isso, é conveniente olharmos para trás, a fim de visualizar o livro no decorrer dos tempos. Constataremos o que nunca se alterou, sendo, assim, essencial, e o que, com o passar dos anos, foi modificado, sendo, portanto, acidental.

Inicialmente, escrevíamos, ou melhor, desenhávamos nas paredes de cavernas. Enormes animais com flechas atravessadas simbolizavam uma caçada proveitosa.

Desenhos, todavia, não eram suficientes para representar todas as situações, além de ocuparem muito espaço. Surgiu, então, a escrita. Não se sabe ao certo se a escrita surgiu primeiro no Egito antigo ou na Mesopotâmia. O que nos interessa é que se escrevia em tábuas de argila.

Tábuas de argila eram pesadas, e também volumosas. Este estudo, se escrito naquele suporte físico, poderia estar pesando dezenas de quilos. Surgiram, assim, outros suportes físicos para o livro: papiro, pergaminho, papel, etc.

Até a Idade Média, os livros eram manuscritos. Após Guttemberg, passaram s ser impressos. Com o tempo, os livros passaram a ser como hoje ainda são por nós conhecidos.

Nos dias que em que vivemos, tendo em vista o que hoje é mais difundido, os dicionários conceituam o livro como sendo "Reunião de folhas ou cadernos soltos, cosidos ou por qualquer outra forma presos por um dos lados e enfeixados ou montados em capa flexível ou rígida." (15)

          Todavia, pergunta-se: na Roma antiga, por exemplo, os livros eram rolos de pergaminho, e não cadernos cosidos e montados em capa flexível. Não seriam, então, livros? Caso fosse esta a conclusão correta, surpreso ficaríamos em saber que Santo Tomás de Aquino nenhum livro escreveu.

Por outro lado, um livro caixa, destinado a registrar a movimentação contábil de uma empresa, vendido em branco, mas devidamente impresso com pautas e outros campos para preenchimento, é uma reunião de folhas ou cadernos soltos, cosidos ou por qualquer outra forma presos por um dos lados e enfeixados ou montados em capa flexível ou rígida. Porém é evidente que referido livro caixa, assim como um livro de atas, não são livros para fins de imunidade tributária, tanto que são tributados.

Admite-se, portanto, a restrição da imunidade, de forma a não serem abrangidos os livros de ata, livros de ponto, etc.. É que estes não transmitem conhecimento, razão de ser da imunidade. Possuem apenas forma que, para fins de imunidade tributária, não os torna livros.

Verifica-se não ser da essência do livro sua forma. A história é rica em exemplos de livros elaborados dos mais diversos tipos de materiais (cascas de árvores, bambu, argila, papiro, couro de animais, papel...). Do mesmo modo, verificamos que muitos outros objetos, não obstante possuam a mesma forma do livro que hoje conhecemos, não são livros para fins de imunidade tributária.

Sobre o tema, o Professor ROQUE ANTONIO CARRAZZA proferiu notável parecer, do qual transcrevermos o seguinte trecho:

"O papel, apenas, foi, por largo tempo, o suporte material por excelência do livro, no sentido considerado pela Constituição, para fins de imunidade: veículo de transmissão de idéias. Inventado pelos chineses e trazido para a Europa nos fins da Idade Média, o papel, sendo muito mais barato, veio a substituir, com vantagens, o papiro, dos antigos egípcios. Mas, ninguém em sã consciência sustentará - mesmo nos dias que ora correm - que um papiro, contendo idéias, não é um livro.

Muito bem, com a evolução dos tempos, surgiram outros suportes materiais para o livro. Hoje temos livros informatizados. Mas, sempre livros, isto é, veículos de transmissão de idéias e, nesta medida, amparados pela imunidade do art. 150, IV, "d", da CF." (16)

Assim, a mesma história que foi contada por meio dos desenhos nas paredes de uma caverna hoje pode ser contada por meio de um CD-ROM, que, muito em breve, será substituído por um outro meio mais eficiente e prático.

É evidente que alguma razão faz com que aconteça a passagem de um suporte físico para outro. O homem não teria deixado de usar as tábuas de argila se o papiro não fosse mais leve e funcional.

Certamente o livro impresso, com páginas numeradas, não teria substituído o rolo manuscrito se, também, não fosse de melhor manuseio. Em suma síntese, não seriam substituídos os suportes físicos se os que substituem não apresentassem inúmeras vantagens.

Desse modo, o livro eletrônico, além de ocupar espaço físico cada vez menor, ainda é de pesquisa rápida e precisa, devido ao auxilio prestado pelo microcomputador na localização do texto desejado, por exemplo.

Seu conteúdo é o mesmo dos velhos pergaminhos. A diferença está no modo como tal conteúdo é organizado e apresentado. O velho pergaminho, que não possuía índice ou números de páginas cedeu lugar ao livro de papel. Este último, nos dias que ora correm, cede lugar ao livro eletrônico, que possibilita maior armazenamento, maior rapidez nas pesquisas, etc.

São conhecidas de todos os que já se utilizaram de um livro eletrônico suas vantagens sobre os tradicionais livros de papel. Não fosse assim, não haveria porque adotá-los.

Uma das inúmeras vantagens do livro eletrônico é o fato de este conter o texto como hipertexto. Um clique de mouse em determinadas palavras leva o leitor a outras áreas do texto, ou a ilustrações que demonstram o está escrito.

Graças ao hipertexto, caso o autor do livro faça uma referência, um simples clique de mouse sobre tal palavra ou frase marcada é suficiente para que se abra uma outra janela contendo o texto referido.

Se o texto trata de medidas provisórias, e o autor faz referência ao artigo 62 da Constituição Federal, um simples clique sobre a palavra destacada faz com que o artigo da constituição apareça na tela, para eventual verificação. Pode-se dizer que é uma evolução da nota de rodapé.

Caso o livro verse sobre música, e em determinado trecho refira-se à 5.ª sinfonia de Beethoven, um simples clique nessa citação é suficiente para que o computador toque um trecho da música, tornando o estudo prático e proveitoso.

Note-se que o conteúdo permanece o mesmo. O hipertexto não passa de uma evolução significativa da antiga nota de rodapé. O livro eletrônico é o livro de papel evoluído, evidentemente, mas isso não altera em nada sua essência.

Assim, se os livros eletrônicos são a mais nova forma de livro, não configura integração por analogia nem interpretação extensiva a tese que defende sua imunidade. A constituição refere-se a livros, e livros eletrônicos são livros.

Restringir a imunidade constitucional aos livros de papel somente, por outro lado, é fazer distinção onde o legislador não fez, prática condenada até pelos mais formalistas dos hermenêutas.

4.2 A Tributação dos Produtos de Informática.

Grande confusão é feita pelos juristas entre a informática e que através dela se veicula. Desfeita essa confusão, a questão da tributação dos produtos de informática torna-se simples.

A informática é apenas instrumento. É meio. Não se pode questionar se disquetes e similares são abrangidos pela norma imunizante do artigo 150, VI, "d", da CF/88. O que neles está contido é que pode merecer referida imunidade, ou não.

Evidentemente um CD-ROM contendo um videojogo (v.g FIFA SOCCER 98) é diferente de um outro contendo o Repertório IOB de Jurisprudência. O produto de informática, no caso, é somente o meio através do qual se materializa um brinquedo ou um periódico. Em ambos os casos, o meio físico não passa de um CD.

Não se pode discutir, portanto, a tributação de produtos de informática genericamente. O que através do produto de informática é feito ou vendido é que deve ser objeto de análise detalhada.

Se um grande jurista resolve responder consultas através da INTERNET, incidirá sobre tal serviço o mesmo ISS que incidiria sobre a consulta oral ou escrita em papel. Não é pelo fato de ser veiculado pela Internet que tal serviço torna-se imune, pois, na caso, o papel, o disquete ou a Internet são meios através dos quais se veicula o produto da prestação de um serviço.

Admitamos, ainda como exemplo, que uma gravadora decida, além de vender discos convencionais nas lojas, vender as músicas pela Internet. No caso, o usuário faria a cópia do arquivo contendo a música a partir do site da gravadora na Internet mediante o pagamento de um preço. Este arquivo ficaria gravado no disco rígido de seu computador, e poderia ser ouvido quantas vezes desejado. Sobre essa venda incidiria o mesmo imposto da venda realizada no balcão da loja. Isso porque quando compramos um CD em um loja estamos comprando o direito de ouvir as músicas nele contidas. O CD e a Internet, em ambos os casos, apenas "conduzem" o real objeto da compra.

Da mesma forma, o livro pode ser disponibilizado em papel, em disquetes, em CD-ROM ou através da Internet, sendo, independentemente do meio, imune.

Assim, constatamos não ser possível entender a imunidade como abrangente de todos os produtos de informática. Pelo mesmo motivo que o papel abrangido pela imunidade é somente aquele destinado à impressão do livro, o produto de informática imune é somente aquele que constitui meio de materialização de livros, jornais e periódicos.

Não se deve, portanto, confundir software, de uma maneira geral, com livros eletrônicos, ou seja, software cuja essência é um livro; sob pena de se tributar um livro ou de se imunizar o que livro não é.

Portanto, os meios de gravação e disponibilização (disquetes, CD-ROM e similares) não podem, de forma alguma, receber tratamento tributário indiscriminado. O tributo deve ser aquele devido pelo conteúdo e não pela forma.

Pensamos, por isso, que a imunidade alcança também as operações com disquetes e similares virgens destinados à gravação de livros eletrônicos. Os disquetes virgens equivalem, para todos os efeitos, ao papel destinado à impressão dos livros, jornais e periódicos. São instrumentos de transmissão do pensamento, de disseminação cultural, cujo desenvolvimento não pode ficar vulnerável ao poder de tributar.

4.2 Análise das Teses Restritivas.

Equivocam-se os que afirmam que o livro eletrônico, por ser utilizado por aqueles que possuem elevada capacidade contributiva, não está a merecer a imunidade tributária. A imunidade em tela é geral, diz respeito a todo e qualquer imposto, e não tem por finalidade apenas reduzir os custos dos bens imunes, como pode à primeira vista parecer. Ela tem por fim proteger esses bens contra todo e qualquer imposto porque o imposto pode ser instrumento de inviabilização do instrumento. Não se pode pensar no imposto que está, como está, mas em um imposto que poderia ser criado até mesmo com o propósito de onerar excessivamente esses bens e, assim, prejudicar a divulgação de idéias, a disseminação da cultura. Por isto o constituinte, com a imunidade, protege a liberdade de expressão, pré-excluindo qualquer imposto sobre os veículos que viabilizam essa liberdade.

Improcede, outrossim, a tese que nega a possibilidade de integração analógica. Pelo contrário, a integração analógica é indispensável à efetividade da Constituição, e de sua supremacia sobre as demais normas do ordenamento, inclusive aquelas que instituem os impostos. Na tarefa de fazer efetiva a Constituição tem-se de considerar aquelas lacunas que ENGISH qualifica como verdadeiras, e cujo não preenchimento conduz a um momento de incongruência no sistema.

Ademais, como vimos, o livro eletrônico é a mais moderna forma de livro. Dessa forma, por encaixar-se no conceito de livro, não configura analogia conceder-lhe o benefício da imunidade.

Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, defensor de tese restritiva da norma imunizante, em outra ocasião, ao escrever sobre a possibilidade de incidência da COFINS sobre operações com imóveis, manifestou opinião defendendo a mutabilidade dos conceitos.

No seu entendimento, "hodiernamente, diante do surgimento das mega-metrópoles e da renovação da indústria da construção civil, os conceitos jurídicos se modificaram, de modo que as operações sobre imóveis não podem mais ser excluídas do regime jurídico dos atos do comércio...." (17)

Afirma ainda o ilustre procurador que os artigos 194 e 195 da CF/88 "demonstram o escopo do constituinte de que toda a sociedade financie a Seguridade Social, inclusive com as contribuições dos empregadores sobre o faturamento." (18)

Como visto, o tributarista utiliza a interpretação histórico-evolutiva e a teleológica no escopo de ampliar o âmbito de incidência da norma tributária. Nada obstante, de forma incoerente e nada isonômica, assevera agora não serem adequados os mesmos métodos de exegese para consagrar princípios constitucionais como o da liberdade de expressão e do pensamento, abrigando o livro eletrônico na imunidade concedida pelo art. 150, VI, da CF/88.

Tomados os cuidados que devem ser dados às comparações, podemos afirmar que tal tese é tão absurda quanto a de se interpretar a norma penal extensivamente apenas quando esta prejudique o réu.

Devemos, no entanto, admitir que é realmente difícil a situação dos Procuradores da Fazenda, obrigados a defender teses indefensáveis, e, algumas vezes, como as acima apontadas, contraditórias, em defesa dos interesses cada vez mais ávidos do Poder Público. Dentro dessa situação, cabe reconhecer o esforço desses juristas, que com boa argumentação tornam aparentemente razoáveis teses absurdas.

De fato, não é admissível a utilização de interpretações extensivas para fazer incidir a norma tributária sobre operações anteriormente não tributadas. Tal procedimento é evidentemente contrário a todos os princípios de direito tributário. Todavia, ainda que isso fosse possível, o que se admite somente para fins de argumentação, forçoso seria dar o mesmo tratamento às normas imunizantes, sob pena de se esfacelar também o princípio do isonomia.

Com efeito, a Constituição consagrou princípios fundamentais que devem orientar a exegese das demais normas do ordenamento, sob pena de violação da supremacia constitucional. Não se concebe, portanto, que se interprete extensivamente em certas situações, para que o tributo seja devido, e restritivamente em outras, amesquinhando o sentido do comando Constitucional, para estiolar uma imunidade.

Negar essa imunidade é negar a supremacia constitucional, que não pode ser limitada pelo literalismo hermenêutico, expressão de ultrapassado e canhestro formalismo jurídico. Tem-se de considerar o elemento teleológico, ou finalístico, que nos indica ser a imunidade em questão destinada a impedir funcione o tributo como instrumento contra a liberdade de expressão e de informação, de transmissão de idéias e de disseminação cultural. Inadmissível interpretação que impede a realização do princípio essencial albergado pela norma imunizante, tolhendo sua função por uma forma de esclerose precoce, que se não harmoniza com o moderno constitucionalismo no qual se tem preconizado métodos específicos para a interpretação de normas da Constituição, em homenagem à sua supremacia no ordenamento jurídico.

Tem inteira razão Lobo Torres, quando assevera ser "necessário que se afaste a banalização do conceito de imunidade, que adviria do abandono dos valores jurídicos e éticos que a fundamentam." (19) Não podemos, por isto mesmo, concordar com a distinção preconizada pelo ilustre tributarista, entre cultura tipográfica e cultura eletrônica, para os fins da imunidade em questão, porque não nos parece razoável sacrificar o valor liberdade, prejudicando a liberdade de comunicação e expressão, nutrindo a preocupação em "comprometer o futuro da fiscalidade, fechando-se a possibilidade de incidências tributárias pela extrapolação da vedação constitucional para os produtos da cultura eletrônica;." (20)

Diante da inexorável tendência de substituição da cultura tipográfica, pela cultura eletrônica, ou se entende a imunidade em sentido abrangente desta última, ou se deixa estiolar a norma imunizante, que em breve restará inútil para a proteção dos valores mais caros da humanidade.

A preocupação fiscalista não justifica, de nenhum modo, que se abra mão dos instrumentos de proteção da liberdade de expressão, contra os ímpetos, cada vez maiores, do poder tributário, até porque não faltarão ao Estado meios de suprir suas necessidades financeiras, e certamente poderá fazê-lo, sem o sacrifício da liberdade de comunicação e de expressão.

Como já foi dito, cabe diferenciar, nos produtos de informática, seu conteúdo. Não são todos os produtos de informática que estão albergados pela imunidade. Os meios eletrônicos, como o nome está a dizer, são meios. Defende-se a imunidade do livro, seja qual for o meio em que esteja sendo veiculado. Não tem qualquer consistência, portanto, o argumento de que "a extrapolação da imunidade da cultura tipográfica para a cultura eletrônica significará deixar de fora da tributação todos os produtos e serviços relacionados com os computadores..." (21)

          É evidente, como já foi explicado alhures, que produtos e serviços relacionados com os computadores poderão ter o mesmo tratamento tributário daqueles produtos e serviços convencionais. Do mesmo modo, livros, jornais e periódicos relacionados com computadores terão o mesmo tratamento tributário dos convencionais: a imunidade.

Admitir o tributo sobre os instrumentos de comunicação e de expressão do pensamento é abrir caminho ao Estado autoritário, tal como admitir a censura. A tese de defesa da fiscalidade, como a da defesa da moralidade, podem ser sedutoras sob certos aspectos, mas no fundo escondem inaceitável proteção do autoritarismo.

O argumento de que o livro eletrônico é hipertexto, que difere do texto do livro impresso em papel, é, também, improcedente. É natural que o modo como é organizado o texto do livro eletrônico é diferente a fim de aproveitar as potencialidades do novo meio.

Como vimos anteriormente, descaberia mudar o suporte físico do livro se dessa mudança não tirássemos nenhum proveito. O livro cosido, "encadernado", dividido em páginas numeradas, facilitou demais a pesquisa. Para quem estudava através de rolos de pergaminho, encontrar o texto desejado por meio de um índice, que indica a página, foi avanço incrível, mas que não descaracterizou o seu conteúdo: o livro.

O hipertexto, assim, é a vantagem proporcionada pelos meios eletrônicos. O texto pode ser entrado com maior rapidez e os temas relacionados podem ser obtidos através de um "clique de mouse."

Pretender que o livro eletrônico não goze de imunidade pelo fato de não sofrer as limitações do livro de papel é inconcebível. É evidente que o homem, durante todo o curso da história, modificou o suporte físico do livro visando melhorá-lo.

Os rolos de pergaminho certamente eram muito melhores que as tábuas de argila. Os livros de papel tradicionais certamente são muito mais fáceis de se consultar e guardar que aqueles rolos de pergaminhos. O livro eletrônico, obviamente, é muito melhor de se consultar e guardar que o livro tradicional, e seria incompreensível se não fosse assim.

Por outro lado, é certo que o constituinte de 1988 teve oportunidade de adotar redação expressamente mais abrangente para a norma imunizante, e não o fez. Isto, porém, não quer dizer que o intérprete da Constituição não possa adotar, para a mesma norma, a interpretação mais adequada, tendo em vista a realidade de hoje. Realidade que já não é aquela vivida pelo constituinte, pois nos últimos dez anos a evolução da tecnologia, no setor de informática, tem sido simplesmente impressionante. Se em 1988 não se tinha motivos para acreditar na rápida substituição do livro convencional pelos instrumentos e meios magnéticos, hoje tal substituição mostra-se já evidente, embora o livro tradicional ainda não tenha perdida sua notável importância.

A evolução, no setor da informática, é tão rápida, que o CD ainda nem ocupou espaços significativos no mercado brasileiro e já está sendo substituído, com imensa vantagem, pelo DVD, levando várias empresas a incluir drives especiais em alguns de seus micros, prevendo-se que até o final de 1998 "esses drives terão substituído totalmente os de CD-ROM, que serão, então, peças de museu." (INFO-Exame, Nº 12, dezembro/97, p.44).

Não pode, pois, o intérprete, deixar de considerar essa evolução. Nem esperar que o legislador modifique o texto. O melhor caminho, sem dúvida, para que o Direito cumpra o seu papel na sociedade, é a interpretação evolutiva.

Sobre os autores
Hugo de Brito Machado

professor titular de Direito Tributário da UFC, presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Hugo de Brito Machado Segundo

Advogado; Vice-Presidente da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE; Professor Convidado do Curso de Pós-Graduação em Direito e Processo Tributários da Unifor; Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo Brito; MACHADO SEGUNDO, Hugo Brito. Imunidade tributária do livro eletrônico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1809. Acesso em: 21 nov. 2024.

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