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O alargamento da "disregard doctrine" no Brasil e a responsabilização pessoal dos sócios no âmbito das sociedades empresariais limitadas.

Uma necessidade de sistematização pelo Direito

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Agenda 04/01/2011 às 17:43

Discorre-se sobre a utilidade prática ou não de se reformar ou manter a referida teoria em nosso ordenamento nos dias atuais.

Não é a toa que a disregard é atualmente vista como uma verdadeira doença que causa insegurança, instabilidade e aumento dos riscos nas operações comerciais, trazendo no seu bojo efeitos nefastos para o desenvolvimento dos mercados organizados.

(…) O Brasil, sempre na contramão, mas guiado pelo instinto de colônia, segue tendo nesse complexo anacrônico de stardands jurídicos fontes de inesgotável inspiração e legitimação para prosseguir alargando o campo de incidência da disregard doctrine a tal ponto de tornar, em muitos tipos societários, inútil a personificação societária, pelo menos para quem pretende se defender contra o uso do judiciário para fins lotéricos. (NUNES, Marcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. p. 121 São Paulo: Quartier Latin, 2007.)

RESUMO

A presente monografia tem por objeto a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou a disregard doctrine, e, a partir de seu estudo, objetivamos especificamente demonstrar quais são os requisitos necessários para aplicação da teoria citada; enfrentar o problema da ampliação pela jurisprudência e pela legislação das situações em que deve ser aplicada a teoria; discorrer sobre institutos jurídicos igualmente previstos no ordenamento jurídico que possam responsabilizar diretamente os sócios sem necessariamente desconsiderar a personalidade jurídica; e, finalmente, discorrer sobre a utilidade prática ou não de se reformar ou manter a referida teoria em nosso ordenamento nos dias atuais.

Palavras-chave: Direito comercial, direito empresarial, limitação da responsabilidade dos sócios, responsabilidade pessoal dos sócios, desconsideração da personalidade jurídica.

ABSTRACT

This monograph focuses on the theory of piercing the corporate veil or disregard the doctrine and, from his study, we specifically demonstrate what are the requirements for application of the theory said, addressing the problem of magnification by case law and legislation situations in which the theory should be applied; discuss legal institutions also provided in the legal responsibility that may directly partners without necessarily disregard the legal and, finally, discuss the practical use or not to retire or to maintain such theory in our land today.

Keywords: Commercial law, corporate law, limited liability of partners, personal liability of members, piercing the corporate veil.


Introdução

A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica foi importada pelo ordenamento jurídico brasileiro dos sistemas europeu e norte-americano nos fins da década de 60, sendo aqui introduzida pelo jurista Rubens Requião.

Tal teoria foi concebida, inicialmente, para superar situações de abuso e fraude que envolviam a utilização indevida da personalidade jurídica. Ou seja, deveria ser aplicada quando os sócios utilizavam de maneira ilícita a sociedade para contrair obrigações, não sendo, por isso, responsabilizados pessoalmente, porquanto o princípio da separação patrimonial era uma barreira para tanto. Assim, em tese, tal teoria serviria para suprir essa deficiência do sistema.

Ocorre que, com o passar dos anos no Brasil, tal teoria ganhou nova roupagem, deixando de ser aplicada somente às situações de abuso e fraude para ser aplicada em inúmeras outras situações, a exemplo de falência por má-administração ou mero inadimplemento contratual.

Porém, esse novo tratamento conferido pela jurisprudência e pela legislação pátria tem impactado no próprio sistema jurídico, causando profundas rachaduras, além de repercutir negativamente na ordem econômica, o que não pode ser desconsiderado pelo operador do Direito.

Por tais motivos, e considerando que a doutrina brasileira e mesmo alienígena já começam a questionar a utilidade prática da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em face de outros institutos igualmente previstos no ordenamento jurídico, é que entendemos por bem definir esse atualíssimo e recorrente assunto como tema de monografia.


1. ORDEM ECONÔMICA E DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

1.1 Breves considerações sobre a ordem econômica

A Constituição Federal trata da ordem econômica em seu Título VII, consistindo no conjunto de princípios e normas que disciplinam e dirigem a atividade econômica em nosso país. Todos os agentes econômicos estão sujeitos a ela.

As normas constitucionais "estatuem" a atividade econômica real e vigente, consagrando, por meio do juízo do ser, o modo de produção capitalista, que tem sua base no reconhecimento da propriedade privada, da empresa e do contrato. Paralelamente, o Estado, por meio do juízo jurídico do dever ser [01], procura "dirigir" [02] a atividade econômica para alcançar escopos de ordem social, em benefício de todos, o fazendo por meio de normas diretrizes e princípios, a exemplo da "função social da propriedade".

Para SILVA NETO a "ordem econômica é o plexo normativo, de natureza constitucional, no qual são fixadas a opção por um modelo econômico e a forma como deve se operar a intervenção do Estado no domínio econômico" [03]. Tem por fundamentos antagônicos a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, e por finalidade assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. E é somente do perfeito equilíbrio destes dois fundamentos díspares que será possível convergir para a finalidade buscada pela ordem econômica.

A livre-iniciativa decorre do clássico direito à liberdade previsto desde o preâmbulo da nossa Constituição, porém aqui destinado à seara econômica, e assegura a todos, pessoas físicas ou jurídicas, a possibilidade de desenvolver uma atividade econômica no território nacional. REALE [04] a conceitua da seguinte forma:

A livre-iniciativa não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1° e 170.

Vale frisar que a livre-iniciativa não é um cheque em branco em benefício do empresário para perseguir o lucro em detrimento de valores igualmente constitucionais enumerados no art. 170, além de outros previstos no decorrer da Constituição. Ultrapassada a fase do Estado Liberal, vivemos a fase do Estado Social e Democrático de Direito, de sorte que o empresário faz jus à livre-iniciativa, mas desde que administre sua liberdade sem ferir os interesses da coletividade. E a fim de aparar essas arestas e evitar colisões entre o individual e o coletivo é que surge o Estado interventor para dirigir e administrar os interesses em jogo. Para BORBA VIANNA [05]:

Com isso, o constituinte procurou neutralizar e reduzir as distorções que possam advir do abuso da liberdade de iniciativa, tal como exposto por Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

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"O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo da iniciativa suplementar do Estado; o princípio da liberdade de empresa corrige-se com o da definição da função social da empresa; o princípio da liberdade de lucro, bem como o da liberdade de competição, moderam-se com o da repressão do poder econômico; o princípio da liberdade de contratação limita-se pela aplicação dos princípios da valorização do trabalho e da harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; e, finalmente, o princípio da propriedade privada restringe-se como princípio da função social da propriedade".

Neste contexto, a Constituição da República visa proteger não apenas o interesse individual do empresário (liberdade de indústria ou comércio, liberdade de empresa, liberdade de contrato, etc.), mas igualmente procura vincular o desenvolvimento de empresas dentro de um quadro social estabelecido pelo poder público, tendo como fim último a justiça social. Destarte, a liberdade de iniciativa "será legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário".

A livre-iniciativa, como princípio fundamental do Estado Democrático do Direito, serve de base para a ordem econômica constitucional, todavia não pode concorrer nem entrar em colisão com outros direitos fundamentais, igualmente tutelados na Constituição, v.g., ir contra o interesse geral, a utilidade social, a liberdade e a segurança das pessoas, a dignidade da pessoa humana dentre outros direitos fundamentais constitucionalmente tutelados.

Este é, pois, o o fundamento da livre iniciativa previsto no texto magno e essencial para o desenvolvimento econômico de nosso país.

Por outro lado, outro fundamento da ordem econômica é o trabalho humano, que tem como marco evolutivo o Estado Social, face o incremento das conquistas sociais destinadas aos trabalhadores, assegurando-lhes o mínimo para uma existência digna, e garantido-os contra a espoliação por parte empregador.

Ademais, também não se pode perder de vista que a valorização do trabalho humano está diretamente vinculada com o desenvolvimento econômico e social como um todo, pois, não obstante o mercado poder substituir o trabalhador por máquinas (capital, tecnologia etc.), não poderá sobreviver sem consumidores. E, o trabalhador de hoje desempregado ou subempregado não se tornará o consumidor de amanhã, de modo que, da mesma forma que não pode haver mercado sem consumidores, não pode haver consumidores sem emprego que os remunere dignamente.

É frente a esta engrenagem (capital – trabalho – consumidor) que o Estado pós-moderno procura atuar nas relações socioeconômicas, procurando dar guarida tanto à garantia social do trabalhador, como também garantir ao mercado (empresa) as condições necessárias para o desenvolvimento de suas atividades produtivas. Isso sem nunca relegar para segundo plano a valorização do trabalho humano, a qual é adotada como fundamento não só da ordem econômica (art. 170 CR) e da ordem social (art. 193 CR), mas também da própria República Federativa do Brasil (art. 1° CR), devendo ser entendida como um dos componentes necessários para se alcançar justiça social e existência digna da pessoa humana.

CARVALHO FILHO [06] sintetiza a valorização do trabalho humano da seguinte maneira:

Pode-se dizer, em síntese, que a valorização do trabalho humano corresponde à necessidade de situar o homem trabalhador em patamar mais elevado do que o relativo a outros interesses privados, de forma a ajustar seu trabalho aos postulados da justiça social.

Além destes dois fundamentos, o Estado ainda deve observar e perseguir princípios previstos igualmente no art. 170, a exemplo da propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, dentre outros. Trata-se de um ambiente fluído formatado pelo Constituinte originário, para permitir a intervenção do Estado sempre visando corrigir as distorções da economia liberal e atingir o fim último da ordem econômica que é assegurar a todos uma vida digna. Diga-se, inclusive, que a tônica da intervenção estatal nos dias de hoje tem sido conferir maior concretude às normas que amparam direitos difusos e coletivos, a exemplo daquelas que tutelam o consumidor e o meio ambiente.

Por seu turno, a desconsideração da personalidade jurídica tem impacto direto na ordem econômica pois não apenas está umbilicalmente ligada a atividade empresarial, por conseguinte à livre-iniciativa, como, quando não aplicada corretamente, gera insegurança jurídica aumentando consideravelmente os custos dos empreendimentos, além de paralisar, em muitos casos, os investimentos que devem ser feitos no setor produtivo.

Logo, qualquer discussão que tenha por base a disregard doctrine não está imune à análise prévia do binômio livre-iniciativa versus valorização do trabalho humano, além da observância dos princípios diretivos da ordem econômica, devendo o operador do Direito buscar sempre o equilíbrio no trato das normas econômicas para só então atingir a finalidade perseguida que é conceder a todos uma vida digna. Enfim, por força da diretriz constitucional, a utilização ou não da disregard doctrine deve, em última instância, conduzir todos a uma existência digna, conforme os ditames da justiça social.

1.2 Custo empresarial

É inegável que a atividade empresarial tem por objetivo o lucro e, como visto no item anterior, a nossa Constituição Federal prestigia a propriedade privada e a livre-iniciativa.

Assim, nada mais legítimo do que a atividade empresária lançar mão de todos os artifícios legais para reduzir ou, quando possível, eliminar seus custos, por conseguinte, aumentando sua margem de lucro. Essa é, basicamente, a engrenagem do sistema capitalista e que mantém a roda da economia sempre girando e, direta ou indiretamente, beneficiando toda a sociedade [07].

Ocorre que, em contrapartida, a atividade empresarial gera também impactos sociais negativos, quando, por exemplo, polui um rio, esgota recursos naturais em dada localidade, muda uma comunidade de determinada região geográfica, etc. E é exatamente quando os custos sociais superam o valor dos benefícios sociais que surge o que tecnicamente se convencionou chamar de externalidade, conceituada por ULHOA COELHO como "todo efeito produzido por um agente econômico que repercute positiva ou negativamente sobre a atividade econômica, renda ou bem-estar de outro agente econômico, sem a correspondente compensação" [08].

A maneira como o Estado administrava as externalidades, permitindo sua internalização [09], patrocinou o surgimento de duas correntes de pensamento: a economia do bem-estar, surgida na década de 1920 em Cambridge, tendo como principal teórico Artur Pigou, e a análise econômica do direito, surgida em 1960, tendo a frente Ronald Coase da Escola de Chicago. De acordo com a primeira, as externalidades decorrem de falhas no mercado, e a correção cabe ao Estado por meio do sistema tributário. Já a segunda defende que as externalidades não refletem falhas no mercado, mas situações conflitantes que devem ser solucionadas pelos próprios interessados. (…) O que é favorável a um agente econômico é desfavorável ao outro, e cada um deles procurará nortear suas opções segundo padrões racionais de eficiência, isto é, gastando o menos para lucrar o máximo possível [10].

Como aponta nossa doutrina, tais escolas não são mais capazes de explicar a intervenção do Estado na economia, contudo, como legado para o Direito, as críticas da análise econômica do direito explicitou que "algumas normas jurídicas repercutem diretamente no custo da atividade econômica" [11].

Desta maneira, existem aquelas normas jurídicas cuja previsibilidade permite um cálculo preciso e quantitativo do seu custo, a exemplo de uma norma tributária que majore a alíquota de um determinado tributo ou uma norma trabalhista que determine o uso de um equipamento de segurança. Outras normas jurídicas, contudo, não permitem tal aferição de forma objetiva, e sua estimativa é feita de forma qualitativa, tal é o caso da norma de responsabilidade objetiva consumerista ou aquela que disciplina a disregard doctrine.

Tem-se, assim, que ambas espécies de normas jurídicas devem ser consideradas no cálculo que o empresário elabora para fixar o valor final de seu produto ou serviço, pois, se omisso, o empreendimento possivelmente estará fadado à falência por má-administração. E partindo da mensuração dos custos de um empreendimento, inclusive os derivados de obrigações jurídicas, passando pela análise dos riscos decorrentes, o empresário terá a possibilidade de decidir ou não pelo início ou continuação de suas atividades. Logo, a análise do "direito-custo", nos dizeres de ULHOA COELHO, é de vital importância para o empresário:

Em qualquer hipótese, a interpretação das normas do direito-custo exige a maior objetividade possível, com vistas a ensejar a relativa antecipação das decisões judiciais ou administrativas derivadas dessas mesmas normas. O cálculo empresarial é condição da preservação do lucro e este, por sua vez, é a alavanca das atividades econômicas no capitalismo. De fato, se não vislumbrar atraente perspectiva de lucros na exploração de uma empresa, o empreendedor privado dará às suas energias e aos seus recursos outra destinação. Pode-se pretender a superação do sistema capitalista, pelas grandes e inumeráveis injustiças que gera, mas, enquanto ele reger a economia e as nossas vidas, não se poderá negar ao lucro importantíssima função de móvel fundamental da produção e circulação de bens ou serviços (que, a final, são atividades indispensáveis à sobrevivência de todos). A interpretação o quanto possível objetiva das normas de direito-custo está ligada ao próprio funcionamento da estrutura econômica do sistema capitalista. E, ressalta-se, a objetividade possível aqui reclamada alimenta tanto o cálculo matemático como o qualitativo. Ambos pressupõem informações confiáveis, embora com graus de precisão diversos [12].

Mas quando não há segurança jurídica, seja porque a produção legislativa é deficiente, seja porque existem inúmeras decisões judiciais conflitantes sobre o mesmo assunto, o direito-custo é elevado, e o medo substitui ao animal spirits [13]keynesiano. Com isso, perdem a economia nacional, pois novos negócios e investimentos deixam de ser realizados; os trabalhadores, pois novos postos de trabalhos não são criados; os consumidores, pois deixa de haver concorrência no mercado; e , o que é pior, o próprio Estado cria um entrave à ordem econômica.

A recente polêmica a respeito do falso dilema entre a estabilidade econômica e o desenvolvimento acabou ensejando o consenso do Governo e da opinão pública no sentido de reconhecer que a estabilidade é condição do desenvolvimento, não constituindo, todavia, um fim em si, mas um dos ingredientes necessários e essenciais para o progresso do país.

A oportuna e adequada ênfase dada à manutenção do poder aquisitivo da moeda se explica e justifica num país, como o nosso, que talvez seja o que, por mais tempo, no mundo, conviveu com a inflação galopante, tendo, inclusive, criado mecanismos que permitiram um certo nível de desenvolvimento num clima de contínua instabilidade monetária. Ou seja, como já foi afirmado, o Brasil não tendo podido alcançar a virtude, conseguiu neutralizar o vício inevitável.

Não se deu, todavia, a devida atenção a um outro ingrediente necessário e indispensável ao desenvolvimento que é a segurança jurídica, abrangendo duas vertentes que são, respectivamente, a estabilidade legislativa e a estabilidade judiciária [14].

Importante frisar que, consoante será visto ao longo desse trabalho, não se está defendendo a flexibilização de direitos trabalhistas, consumeristas, ambientais, ou qualquer outro que seja, com o objetivo de reduzir os custos empresariais, forjando, por conseqüência, o aumento do lucro individual em detrimento da coletividade. Longe disso. O que se procura demonstrar é o quanto é custoso para o país manter normas jurídicas tecnicamente incoerentes e incompatíveis com a noção de sistema jurídico, como é o caso das que, atualmente, tratam da disregard doctrine [15].

Não se tem notícia ainda de estudos mais aprofundados para se apurar o efetivo prejuízo imposto ao país diante da insegurança jurídica (fruto também da assistemática utilização da disregard doctrine) gerada aos investidores do setor produtivo da economia brasileira. Mas certamente, os números serão estarrecedores, não só pela fuga de capital estrangeiro para outros países onde existam regras mais claras e precisas, como também pela ausência de aplicação no setor produtivo dos capitais já existentes no país, os quais acabam sendo redirecionados para a poupança do investidor ou para a especulação imobiliária.

No âmbito da economia, estudos realizados já deram conta de que os custos do crédito consignado disponibilizado pelo mercado financeiro são muito inferiores ao crédito pessoal concedido ao consumidor. Isso porque "a satisfação do crédito consignado independe da intervenção do Judiciário (e do moroso processo de cobrança que é disparado em casos tais), trazendo uma certeza jurídica muito mais clara sobre o adimplemento da obrigação devida". [16]

Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica em nosso país da forma como se apresenta atualmente representa elevado custo para os empreendimentos econômicos em razão da insegurança jurídica que sua aplicação tem ocasionado, acarretando, por tabela, grande dano à ordem econômica.

1.3 A crise do Direito e a disregard doctrine

Muito do que se discute atualmente em torno da disregard doctrine tem uma origem muito mais profunda do que se pensa, não se limitando a uma debilidade específica de determinado instituto de um ou de alguns dos ramos do Direito. Se nos afigura, metaforicamente, poderíamos afirmar que a problemática que envolve a teoria da desconsideração é apena uma febre sintomática que revela que o paciente esconde uma enfermidade muito mais grave, necessitando, pois, de uma intervenção urgente visando reverter seu quadro clínico, sob pena de entrar em um estado comatoso irreversível.

Portanto, a insegurança jurídica ocasionada pela aplicação da disregard doctrine em nosso país, seja pelo tratamento legislativo dispensado à matéria, seja pelo seu manejo pelos magistrados, decorre, em verdade, da crise do Direito, decantada ao longo da história por vários juristas, a exemplo, de Orlando Gomes, mas que ainda não mereceu um enfrentamento corajoso por parte da doutrina.

Ao longo deste trabalho, vamos repetir inúmeras vezes que o que falta à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em nosso país é a noção de sistema jurídico e um tratamento uniforme.

Ora, isso não é objeto de estudo departamentalizado do Direito Empresarial, do Direito Econômico, do Direito Trabalhista, do Direito Consumerista, mas sim da própria Ciência e da Teoria Geral do Direito, que se dedicam a fincar suas bases estruturantes e conceitos. Logo, perpassando pela técnica jurídica quando disseca a disregard doctrine, recebendo a análise fragmentada dos ramos jurídicos, é preciso ainda ter em mente a noção global do Direito, sob pena de configurar, como já se configura, a máxima de Dabin [17]: "a desordem no próprio ordenamento que pretende fazer reinar a ordem".

Segundo o pensamento de NADER [18]:

Para que o Direito cumpra a finalidade de prover o meio social de segurança e justiça, é indispensável que, paralelamente ao seu desenvolvimento filosófico e científico, avance também no campo da técnica. Se a Filosofia do Direito ilumina o legislador quanto aos valores essenciais a serem preservados; se a Ciência do Direito estabelece princípios estruturais para a organização do sistema jurídico, tais conquistas permanecerão sem qualquer alcance prático se o homo juridicius não for também um homor faber, isto é, se ao conhecimento teórico do Direito não for associado o prático. Sem este, a idéia do Direito e a aspiração de justiça não serão suficientes para o controle social. Somente com a conjugação da filosofia, ciência e técnica, a ordem pode apresentar-se como um instrumento apto a orientar o bem comum.

Ademais, por fim, tenha-se em mente a lição de Gomes [19] proferida em 1951, mas que se faz ainda atual, porquanto o contexto jurídico não se alterou, aplicando-se perfeitamente à problemática que cerca a disregard doctrine:

Para atingir o objetivo de racionalização jurídica da realidade social, o jurista constrói incessamente. Segundo Du Pasquier, a atividade construtora diversifica-se em três planos, dos quais são mais importantes os que se reservam à sistematização e à criação. A construção sistemática "consiste em reunir numa idéia geral regras diversas que a tôdas explica, num conceito que as religa entre si". A construção criadora "parte da observação da vida real, para inferir conceitos adaptados ao tempo". No primeiro caso a operação consiste em estabelecer "relações puramente lógicas entre regras e conceitos". No segundo, em criar os conceitos em que se condensem os fins da política jurídica, para modelagem das realidades sociais.

Os esforços que têm sido empregados, tanto para a sistematização como para a construção, não revelam rendimento apreciável. Possivelmente, o atraso da técnica do Direito, a pobreza do novo conceitualismo jurídico, se deve em grande parte às hesitações e tergiversações que fervem no caldeirão da política jurídica. Mas os juristas, dedicando-se à construção sistemática, podem favorecer e estimular a construção criadora, porquanto a expansão das fôrças sociais jurígenas, ao longo do tempo reprimidas e comprimidas, tem determinado a formação desordenada de regras, de cunho aparentemente circunstancial ou isolado, nas quais se concentram, todavia, tendências gerais.

A reconstrução sistemática do Direito se apresenta, dêsse modo, como o mais instante cometimento que clama e reclama pela dedicação dos juristas que não traem, dos teóricos que não empregam a inteligência e o saber para deformar a realidade social no propósito de arrefecer o calor de suas sugestões.

Sobre o autor
Jorge Leal Spínola Costa

Advogado, Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Católica do Salvador.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Jorge Leal Spínola. O alargamento da "disregard doctrine" no Brasil e a responsabilização pessoal dos sócios no âmbito das sociedades empresariais limitadas.: Uma necessidade de sistematização pelo Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2743, 4 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18129. Acesso em: 23 dez. 2024.

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