2. PESSOA JURÍDICA E A CRISE DA PESSOA JURÍDICA
2.1 Pessoa jurídica: conceituação.
Via de regra, pode-se conceituar a pessoa jurídica como o ente decorrente da união de personalidades jurídicas distintas, seja proveniente de pessoas físicas, jurídicas ou da combinação de ambas, cujos esforços e patrimônios são destacados, fundidos e direcionados à produção de um resultado econômico em comum.
O Direito reconhece tal fenômeno social, fruto da engenhosidade intelectual humana, e, por meio da técnica jurídica ou ficção, atribui a este ente uma personalidade jurídica autônoma em relação aos sócios que compõem a sua estrutura, permitindo, por conseguinte, ser sujeito de direito e obrigações no ordenamento jurídico, inclusive podendo praticar atos jurídicos em face dos próprios sócios que integram a sua estrutura [20].
Uma vez constituída, a pessoa jurídica passa a ser um pólo que erradia diversos efeitos jurídicos, sem confundir-se com a personalidade individual daqueles que a integram, sendo o principal deles a separação patrimonial.
Com isso, passa-se a responsabilizar e titularizar direitos e deveres de um patrimônio distinto em relação aos sócios e aos terceiros, independentes do agrupamento de pessoas (físicas e/ou jurídicas) que o criaram, visando facilitar as relações da vida em sociedade [21].
Conforme ensinamentos de GOMES,
o fenômeno da personalização de certos grupos sociais é contingência inevitável do fato associativo. Para a realização de fins comuns, isto é, de objetivos que interessam a vários indivíduos, unem eles seus esforços e haveres, numa palavra, associam-se. A realização do fim para que se uniram se dificultaria extremamente, ou seria impossível, se a atividade conjunta se permitisse pela soma constante e iterativa, de ações individuais. Surge, assim, a necessidade de personalizar o grupo, para que possam proceder como uma unidade, participando do comércio jurídico com individualidade, tanto mais necessária quanto a associação, via de regra, exige a formação de patrimônio comum constituído pela afetação de bens particulares dos seus componentes. Esta individuação necessária só se efetiva se a ordem jurídica atribui personalidade ao grupo, permitindo que atue em nome próprio, com capacidade jurídica igual à das pessoas naturais. Tal personificação é admitida quando se apresentam os pressupostos necessários à subjetivação dos interesses para cuja realização os indivíduos se associam. Assim se formam as pessoas jurídicas.
São, em síntese, grupos humanos dotados de personalidade, para a realização de fim comum.
Ainda de acordo com a melhor doutrina,
a pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente dos membros que a compõe, com os quais não tem nenhum vínculo, agindo, por si só, comprando, vendendo, alugando etc., sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas naturais que dela fazem parte. Realmente, seus componentes somente responderão por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual. Essa limitação da responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídica é uma conseqüência lógica de sua personalidade jurídica, constituindo uma de suas de suas maiores vantagens [22].
Não pode ser descartada, entretanto, a fundação, que é pessoa jurídica porém decorrente da destinação de um patrimônio [23] exclusivo ao exercício de certas atividades sociais, a saber: religiosas, morais, culturais ou de assistência. Ocorre que as sociedades empresárias de responsabilidade limitada são a grande maioria no universo das pessoas jurídicas [24]. E essa é, pois, a razão que se opta por colocar uma regra geral, a universalidade de pessoas e o desenvolvimento de atividade econômica na conceituação da pessoa jurídica.
Em paralelo à conceituação exposta anteriormente, podemos, de igual sorte, lançar mão da conceituação de MOTA PINTO, in verbis:
as pessoas colectivas são organizações constituídas por uma colectividade de pessoas ou por uma massa de bens, dirigidos à realização de interesses comuns ou colectivos, às quais a ordem jurídica atribui a personalidade jurídica. Trata-se de organizações integradas essencialmente por pessoas ou essencialmente por bens, que constituem centro autónomo de relações jurídicas – autônomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos [25].
Por fim, a par das conceituações doutrinárias retro citadas, cite-se que a Convenção Interamericana sobre Personalidade e Capacidade de Pessoas Jurídicas no Direito Internacional Privado, da qual o Brasil é signatário [26], define a pessoa jurídica como "toda entidade que tenha existência e responsabilidade próprias, distintas das dos seus membros ou fundadores e que seja qualificada como pessoa jurídica segundo a lei do lugar de sua constituição".
2.2 Histórico e natureza jurídica da pessoa jurídica.
Frise-se, de imediato, que não há um momento específico na história que se tenha como marco inicial para o surgimento da pessoa jurídica pois, como aponta nossa doutrina, o fenômeno associativo acompanha a própria história de evolução da humanidade [27].
A doutrina se serve até mesmo do direito romano para demonstrar o quão complexa é a discussão em torno da origem da pessoa jurídica e daí derivando também o problema da responsabilização, sendo que, no período romano, todo problema de responsabilização caia na vala pessoal dos sócios.
Nesse sentido, BORBA VIANNA [28] sustenta que
não obstante os romanos já utilizarem agrupamentos de pessoas para gerir negócios comuns (antes dos romanos, porém, existiram contratos associativos que podem ser considerados antecedentes remotos das sociedades), foi apenas após a República (por volta de 500 a.C.) que as pessoas jurídicas tiveram reconhecimento.
Por seu turno, DE FARIAS [29] afirma o seguinte:
Não há referência à pessoa jurídica na Antiga Roma ou mesmo no Direito germânico, somente podendo ser mencionada, já no Império Romano, a notícia das universitates ou collegia (grupos de estudos), sem qualquer personalidade reconhecida pela ordem jurídica.
Por isso, a referência doutrinária de que a pessoa jurídica, com o seu moderno significado, é de construção moderna na história do direito.
Outrossim, PIERANGELO CATALANO [30] relata que foi a partir do séc. XVI e, sobretudo, do séc. XIX, que surgiram abstrações modernas sobre o sujeito de direito, a pessoa jurídica e o Estado.
Segundo CARNEIRO MARTINS [31],"o conceito de pessoa jurídica no Direito é algo que passou, ao menos desde o início do século XVII, por diversas fases de concepção e, ainda hoje, é objeto de muita discussão e pouco consenso, principalmente com relação a seus desdobramentos e efeitos".
Enfim, discussões seculares e nos mais diversos ordenamento tem se seguido procurando identificar a origem da personalidade jurídica, porém ainda sem encontrar uma solução neste início de século XXI. De fato, trata-se de uma tarefa investigativa árdua muito importante [32] e essencial para dirimir uma série de questões correlatas, mas que foge ao propósito deste trabalho.
Podemos, contudo, extrair a ilação de que não há um marco histórico específico que remonte à origem da pessoa jurídica, mas sim o que há é uma evolução do instituto da pessoa jurídica sob a ótica de diversos juristas que se sucederam até o presente momento, visando conferir cientificidade [33] e segurança jurídica em torno de tão importante instituto para a sociedade contemporânea.
No que tange à definição da natureza jurídica observa-se o mesmo problema, uma vez que infindáveis tertúlias tem se protraído no tempo sem se vislumbrar, por enquanto, um termo final. Ressalte-se que, atualmente, ao menos é ponto pacífico que o Direito reconhece a pessoa jurídica, superando-se a teoria esclerosada da negação da personalidade jurídica. Inclusive, sobre a referida teoria, cite-se o seguinte comentário, in verbis:
As teorias do primeiro grupo (o da negação) "não constituem explicação da natureza das pessoas jurídicas, visto que não admitem o fenômeno da personificação" (GOMES, 2007, p. 168). Teóricos como Ihering, Bekker e Barthélèmy acreditavam, respectivamente que a associação dos indivíduos para um fim comum não representavam nada além do que eles próprios como sujeitos de direito, que o fato associativo é traduzido por um patrimônio destinado a um fim, patrimônio esse que não teria titular, sendo direito sem sujeito; e, por fim, que o fenômeno associativo era, na realidade, uma propriedade coletiva.
As formulações teóricas do grupo que defendia a inexistência da pessoa jurídica têm valor ilustrativo ante a realidade fática e legal da pessoa jurídica [34].
Pois bem, a disputa que se tem hoje em dia se dá exclusivamente na seara da afirmação da personalidade jurídica, avultando em importância a Teoria da Ficção, capitaneada por SAVIGNY, e da Realidade, valendo salientar que
contudo, não obstante renomados juristas ainda sustentarem que a natureza jurídica das pessoas jurídicas decorre das teorias ficcionistas (para os quais a pessoa jurídica é mera criação (ficção) da lei, não tendo existência real), prevalecem hodiernamente as teorias realistas, para as quais a pessoa jurídica não decorre de uma simples criação legal, mas existem por si mesmas, através de um fenômeno espontâneo e próprio. Ainda, dentro da teoria realista, se sobressai a teoria da realidade técnica, "pois se entende que não só a pessoa jurídica tem existência diversa da de seus membros, como sua vontade é diversa da de seus componentes. Por outro lado, sua capacidade não é a de seus integrantes, mas a que lhe foi atribuído no ato constitutivo, ou modificativo, admitido pelo direito positivo" [35].
Lançando mão do direito comparado e seguindo a pesquisa de BORBA VIANNA, tem-se que no direito norte americano e no direito francês privilegia-se a teoria da ficção, enquanto que no direito brasileiro e no italiano há prevalência da teoria da realidade técnica.
Não obstante essa saudável disputa que se arrasta ao longo dos séculos entre as correntes da Ficção e da Realidade, prevalecendo a Realidade Técnica, tenha-se em mente a conclusão do autor antes citado:
Entretanto, em ambas é possível identificar a personalidade jurídica societária e trabalhar sobre a sua aquisição, efeitos e término (inclusive no que concerne à disregard doctrine), pois, enquanto para os ficcionistas a lei que criou poderá também suspender seus efeitos, para os realistas, a desconsideração é enfocada como um instrumento do direito positivo para ajustar as construções jurídicas e seus efeitos metajurídicos [36].
Desta maneira, no que tange à natureza jurídica da pessoa jurídica, conclui-se que as teorias negativistas se encontram superadas, e, dentre as teorias afirmativas, a teoria da Realidade Técnica tem aceitação majoritária no Brasil.
2.3 Aspectos gerias e principais efeitos da pessoa jurídica.
Tem-se que o Código Civil em vigor trata especificamente das pessoas jurídicas em seu Título II [37].
Interpretando comparativamente o atual diploma civil e o anterior, BORBA VIANNA [38] nos ensina que o fundamento utilizado pelo Código revogado, ao afirmar que a pessoa jurídica não pode ser confundida com a pessoa dos sócios (societas distat singulis), já não é o mesmo utilizado hodiernamente. Isso porque o Código de 1916 tinha influência francamente liberal, "onde a função do Estado era a de proteger a liberdade da atividade econômica, privilegiando a liberdade de contratar, a propriedade privada e a livre-iniciativa". Ao passo em que o Código de 2002, sob a iluminação da Constituição Federal de 1988, deve ser interpretado "de modo a não mais privilegiar apenas a livre iniciativa, corrigindo desigualdades sociais e garantindo direitos sociais".
E esse foi também o pensamento da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002, resumido nas palavras de MIGUEL REALE:
Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes inspiradoras do Código vigente, reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação, não pode ser julgada temerária, mas antes urgente e indispensável, a renovação dos códigos atuais, como uma das mais nobres e corajosas metas do governo [39].
Assim, avulta em importância o domínio dos fundamentos e dos princípios constitucionais da ordem econômica vistos no Capítulo I, a fim de se extrair a máxima efetividade das normas quando de sua aplicação. Por isso, ora tenderá prevalecer os interesses dos empresários, ora dos consumidores, ora dos trabalhadores, ora da administração tributária, etc, conseqüentemente em benefício da sociedade em geral. Se nos afigura, é o mais puro e legítimo exercício do Estado Social e Democrático de Direito, embate perfeitamente normal, desde que sejam observados critérios científicos e técnicos seguros.
Mas o que não pode haver é uma injusta e preconceituosa interpretação apriorística em favor de um único segmento da sociedade, subvertendo o próprio sistema jurídico, tal como ocorre na maioria das vezes quando a demanda envolve o direito consumerista ou o direito trabalhista. Proceder dessa maneira significa negar o próprio o texto constitucional.
Feito esse necessário parêntese, tem-se que o Código Civil classifica a pessoa jurídica em de direito público (União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios, Autarquias, inclusive associações públicas e demais entidades criadas por lei) e de direito privado (associações, sociedade, fundações, organizações religiosas e os partidos políticos), consoante dicção dos arts. 41 e 44 respectivamente.
Por força do art. 45 do referido Diploma, "começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo". Assim, se já existe um contrato social [40], plurilateral como prefere TULLIO ASCARELLI [41], ainda que não registrado na Junta Comercial, já há provas suficientes do fenômeno associativo, embora inexista personalidade jurídica.
Portanto, atualmente, o divisor de águas para aquisição e início da personalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro é o registro no órgão competente [42]. Perfilha-se o entendimento que afirma que a personalidade jurídica só se adquire em face do registro regular no órgão competente, sendo tal de natureza eminentemente constitutiva.
Assim, percebe-se que nosso ordenamento jurídico adotou, quanto ao processo de criação da pessoa jurídica, o sistema das disposições normativas (que é um meio termo entre o critério do reconhecimento e o da livre associação), pelo qual a formação da pessoa jurídica se dá pela vontade humana, atendendo às condições legais (em nosso caso, o registro público). Sem a inscrição no ato constitutivo no registro competente, não terá a entidade personalidade jurídica (CC, art. 45) e, via de conseqüência, as pessoas naturais que a compõem responderão pessoalmente pelas obrigações assumidas [43].
Ora, se não há registro ou este é irregular se estará simplesmente diante de uma sociedade de fato ou irregular respectivamente, daí advindo as conseqüências legais previstas, sobretudo a possibilidade de os sócios virem a responder diretamente com bens próprios, como assumem o risco de antemão [44].
Vale ressaltar que sociedade e pessoa jurídica são institutos distintos, motivo pelo qual é perfeitamente possível se falar da existência de sociedade que não seja pessoa jurídica, da mesma forma que existe pessoa jurídica que não é sociedade.
Ademais, frise-se que é importante o direito fixar um termo legal inicial e preciso para a existência de uma nova pessoa jurídica (o registro regular), sob pena de se macular o próprio princípio da segurança jurídica que deve reger as relações sociais. Admitir tese contrária é alimentar propósitos burlescos, o que apenas serviria para aprofundar ainda mais a crise da pessoa jurídica, que será vista logo adiante.
Assim, com o início da pessoa jurídica, alguns efeitos podem ser observados, valendo destacar: a) capacidade jurídica [45]; b) capacidade de estar em juízo; e c) separação/autonomia patrimonial.
Como já discorrido no item 2.1, uma vez constituída, a pessoa jurídica passa a ser novo sujeito de direito e obrigações perante a ordem jurídica, independente da personalidade daqueles que a integram. Assim, a pessoa jurídica pode titularizar diversos negócios jurídicos, todavia, o fazendo por meio de seu presentante legal [46]. Assim, possui capacidade jurídica ou de exercício, que consiste na capacidade genérica de ter direitos e específica de exercê-los.
No que pertine ainda a capacidade jurídica, vale lembrar que a pessoa jurídica não pode "exercer atos que sejam privativos de pessoas naturais, em razão de sua estrutura biopsicológica (verbi gratia, a adoção ou o casamento)" [47], embora no ordenamento brasileiro são passíveis de cometer crimes [48].
Já a capacidade de estar em juízo significa que a própria pessoa jurídica é quem detém o poder de demandar e o dever de ser demandada em juízo, quando a lide envolva ato ou fato jurídico relativo às suas atividades.
A separação/autonomia patrimonial é a própria essência da pessoa jurídica contemporaneamente. E uma vez que tal efeito exige uma análise em separado, tendo correlação direta com o cerne de nosso trabalho, passar-se-á ao tópico seguinte.
2.4 Separação/autonomia patrimonial.
No passado, no momento em que as iniciativas empresariais passaram a demandar maior vulto de capital e os riscos do negócio eram enormes demais para serem suportados exclusivamente por um ou poucos comerciantes, tornou-se indispensável sua socialização. Era preciso repartir o risco junto à sociedade, sob pena de frear o próprio progresso da humanidade. E tal só foi possível graças à construção da engenhosa noção de separação/autonomia patrimonial da pessoa jurídica frente aos seus sócios integrantes.
Portanto, os sócios ou investidores sabedores de antemão que seus bens pessoais não ficariam expostos ao insucesso ou infortúnios da iniciativa empresarial, porquanto a pessoa jurídica nos limites de seu patrimônio suportaria-os, poderiam, enfim, financiar a atividade comercial para mares dantes inimagináveis.
Segundo nos ensina a doutrina, no período da Idade Média é que a limitação da responsabilidade ganha contornos precisos face o desenvolvimento inicial da sociedade em comandita, e, mais a frente, com a Companhia das Índias Orientais e Ocidentais, que se têm como berço das sociedades anônimas.
Diante do já exposto, pode-se concluir que – de certa maneira – as sociedades por ações são derivadas das sociedades em comandita, principalmente no que diz respeito à limitação da responsabilidade dos sócios/acionistas que, a exemplo do comanditário, decorre da natureza creditória dos seus direitos aos resultados da empresa. Ou seja, "essa, que já era então a principal causa de limitação de responsabilidade na Idade Média, persiste na modernidade, como seu primeiro fundamento". (WARDE JUNIOR, 2007, p. 97) [49]
Fica fácil perceber que o instituto da pessoa jurídica está em constante mutação e evolução, tal como o Direito, visando atender aos interesses históricos.
Se na era romana já havia a noção da pessoa jurídica mas não se tinha a concepção da separação patrimonial, no período do mercantilismo as necessitudes da civilização agregaram tal efeito à pessoa jurídica [50]. Por outro lado, contemporaneamente, há um esforço nítido em romper com tal evolução, embora as necessidades de separação patrimonial se mostrem ainda atuais.
Esta reconhecida valorização da empresa na atualidade não teria alcançado seu escopo principal se não fosse a regra de ouro do Direito societário, ou seja, a existência da limitação da responsabilidade dos sócios pelas dívidas contraídas pela sociedade, através da personalização das sociedades.
Por certo, como toda atividade empresarial, existe um risco de insucesso no regular desenvolvimento de suas atividades. É sobretudo em razão disso que as sociedades com responsabilidade ilimitada dos sócios praticamente não existem mais na atualidade, sendo tratadas apenas doutrinariamente nos curso de graduação das faculdades de direito.
Destarte, se não existisse a limitação da responsabilidade pessoal dos sócios, quem investiria em ações de uma S/A se o patrimônio do investidor estivesse sujeito ao risco do negócio? Ou ainda, qual empresário colocaria em risco todo o seu patrimônio pessoal (amealhado muitas vezes durante décadas) numa sociedade limitada, se o mero insucesso do negócio (muitas vezes provocado por crises econômicas públicas, concorrência acirrada, globalização, insolvência de credores, de fornecedores ou de clientes etc.) pudesse lhe tomar todo o seu patrimônio pessoal?
Sem a pessoa jurídica personalizada (com existência distinta de seus sócios) e com responsabilidade ilimitada, a atividade empresarial não teria atingido seu estágio atual. Num mundo capitalista globalizado, onde cada vez mais é necessário investir e aprimorar a organização empresarial, as pessoas jurídicas empresárias representam um dos mais significativos fatores para a compreensão do regime capitalista [51].
Ora, os empresários mobilizam os fatores de produção; compreensivelmente precisam ser remunerados pelo seu empreendedorismo [52]. Da mesma forma que os trabalhadores, precisam que o Estado lhes assegure garantias mínimas, sendo, portanto, a autonomia/separação patrimonial a principal destas, e que vai permitir, por conseguinte, a operabilidade dos princípios constitucionais da ordem econômica.
Entretanto, é da da histeria coletiva que prega o Estado Social a todo custo, não importando como e a custa de quem, sendo displicente com a ciência jurídica, que exsurge o discurso corrosivo que visa implodir a pessoa jurídica, face a indiscriminada responsabilização do sócio, tão apenas por ser sócio. Se existem fraudes e abusos, o Direito deve reprimi-los, mas de forma coerente, e não de forma exclusivamente preconceituosa, pois isso, em última instância, viola o próprio Estado de Direito.
Cumpre ainda lembrar que em razão da elevada carga tributária do país, uma das maiores do mundo, boa parte dos dias do ano os empresários gastam trabalhando exclusivamente para o Estado, sem que haja a contrapartida Estatal. Por isso, uma desconsideração da personalidade jurídica indevida, visando atender meramente aos caprichos de determinado magistrado trabalhista ou consumerista, no afã de aplicar a "justiça social", tem um ônus ainda maior não apenas para o sócio, que passará a trabalhar forçadamente e sem remuneração ainda que haja vedação constitucional nesse sentido, mas sobretudo para a própria sociedade, pois significará um empreendimento a menos em atividade no mercado.
Dessa maneira, assiste integral razão a CARNEIRO MARTINS, para quem "o desenvolvimento da atividade empresarial tem como um dos pontos de sustentação a limitação da responsabilidade de sócios e administradores" [53], além do que "as razões econômicas possuem, sim, uma relevância bastante significativa".
Esse é o princípio da autonomia patrimonial, alicerce do direito societário. Sua importância para o desenvolvimento de atividades econômicas, da produção e circulação de bens e serviços, é fundamental, na medida em que limita a possibilidade de perdas nos investimentos, mais arriscados. A partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco. Se não existisse o princípio da separação patrimonial, os insucesso na exploração da empresa poderiam significar a perda de todos os bens particulares dos sócios, amealhados ao longo do trabalho de uma vida ou mesmo de gerações, e nesse quadro, menos pessoas se sentiriam estimuladas a desenvolver nova atividades empresarias. No final, o potencial econômico do país não estaria eficientemente otimizado, e as pessoas em geral ficariam prejudicadas, tendo menos acesso a bens e serviços. O princípio da autonomia patrimonial é importantíssimo para que o direito discipline de forma adequada a exploração da atividade econômica [54].
Isto posto, no momento de constituição da pessoa jurídica, os sócios promovem a subscrição e integralização do capital social, de sorte que destacam parcela de seu patrimônio pessoal para compor o patrimônio inicial [55] do novo ente que se constitui. É a partir dele que os negócios jurídicos irão se suceder. Assim, as obrigações assumidas pela pessoa jurídica devem ser solvidas com seu respectivo patrimônio e não o de seus sócios, sob pena de configurar confusão patrimonial. Da mesma forma, em havendo dano contratual ou extracontratual a pessoa que deve ser responsabilizada é a jurídica, e não a pessoa dos sócios.
Nesses termos, é indiscutível a importância do efeito da separação/autonomia patrimonial para a vida moderna.
2.5 A crise da pessoa jurídica.
No estágio atual de desenvolvimento da sociedade, não há como dissociar a figura da pessoa jurídica da circulação e distribuição de riquezas. Ela tem importância fundamental para a realização de inúmeros negócios jurídicos, só possível, graças à reunião de pessoas distintas, o congressamento de esforços, e, sobremaneira, à limitação de responsabilidade.
Portanto, é através dela que empreendedores dos mais diversos segmentos se sentem a vontade para por em prática todo o seu potencial empresarial, conseqüentemente, criando novos postos de trabalho, satisfazendo as necessidades dos consumidores, impulsionando a arrecadação tributária [56], enfim, a pessoa jurídica é o vetor indutor por excelência da produção de riquezas no mundo moderno.
Como visto até o momento, é inegável a importância da personalidade jurídica para o desenvolvimento da sociedade nos últimos dois séculos, podendo se afirmar, sem medo de errar, que a civilização contemporânea não teria atingido seus níveis de desenvolvimento social e econômico sem que o Estado houvesse estabelecido a autonomia patrimonial da personalidade jurídica societária [57].
A despeito da mencionada importância, tem-se discutido há algum tempo acerca da "crise da pessoa jurídica". ULHOA COELHO [58], em seu Curso de Direito Comercial, menciona dois fatores de desprestígio da autonomia das pessoas jurídicas, quais sejam: a) uso fraudulento ou abusivo do instituto; b) tutela de credores não empresários, ou, como prefere, com direito não proveniente de negociação. O mesmo autor ainda adverte:
Mas, lamentavelmente, o desprestígio da plena eficácia da personalização das sociedades empresárias não se encontra somente nos dois casos em que parece justo revitalizá-lo (na coibição de fraudes e na tutela dos créditos não negociáveis). Se a responsabilização dos sócios por dívidas sociais se verificasse apenas nos casos de uso desvirtuado do instituto, ou na proteção do crédito não negocial, a teoria da desconsideração e a estrita obediência às exceções legais teriam sido suficientes para preservação da função econômica do postulado fundamental do direito societário. Isto é, se a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas apenas não produzisse efeitos na hipótese de fraude, ou para proteção de não empresários, então ainda estaria atendendo, de modo adequado, à finalidade de estímulo aos investimentos. Como, no entanto, a responsabilização dos sócios se tem verificado também em casos em que não há tais pressupostos, extrapolando os limites da desconsideração e contrariando a lei, corroem-se induvidosamente as bases do instituto.
A recuperação dos fundamentos do direito societário depende, por isso, da compreensão, pela comunidade jurídica da correta medida da irresponsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade, de forma a se compatibilizar, de um lado, a limitação das perdas (estímulo aos investimentos), e, de outro, a tutela da boa-fé e dos não empresários.
BORBA VIANNA [59], seguindo os passos de José Lamartine Correa de Oliveira, tipifica a crise do uso fraudulento ou abusivo da pessoa jurídica como crise de função [60], mas, por outro lado, afirma o seguinte:
Com efeito, a crise da pessoa jurídica não pode ser vista como algo isolado no seio da sociedade, provocado apenas pela crise de reconhecimento ou pela crise de função (nos dizeres de José Lamartine Corrêa de Oliveira), mas deve ser considerada como uma crise fruto de diversos outros fatores extra-societários (políticos, legislativos, protecionistas, fiscais, etc.) que também influem e estimulam a propagada crise da pessoa jurídica hodiernamente.
Nos dias de hoje, são indissociáveis as noções de pessoa jurídica e de autonomia/separação patrimonial. Com base na evolução histórica anteriormente referida, pode-se seguramente afirmar que são faces da mesma moeda. Mas, a despeito dessa força atrativa, cada vez aumentam as hipóteses de responsabilização pessoal dos sócios por atos praticados pela pessoa jurídica, o que põe por terra todo esforço científico erigido até aqui, dando respaldo à crise ora em discussão.
Numa apressada análise, poder-se-ia pensar que o aumento das hipóteses de responsabilidade pessoal dos sócios é que gera a crise da pessoa jurídica. Mas isso não é verdade. Ao que parece, o aumento das referidas hipóteses é um efeito decorrente da crise, que também não decorre da limitação da responsabilidade, mas, sim, limita-se ao uso indevido da pessoa jurídica por empresários inescrupulosos. O Direito deve partir exatamente desse ponto para apresentar uma resposta satisfatória às pessoas que subvertem o sistema jurídico.
Assim, como será visto no capítulo seguinte, a disregard doctrine seria uma forma de afastar a crise da pessoa jurídica, porém tal solução está aparentemente desgastada, levando muitos a defender a extinção da referida teoria.
Conclui-se, neste item, que a crise da pessoa jurídica existe, decorre de seu uso indevido, mas que, até o presente momento, o Direito ainda não apresentou uma resposta satisfatória ao problema.