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A concretização da arguição de descumprimento de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal

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Agenda 30/12/2010 às 16:29

Resumo: O presente artigo tem por objeto examinar a funcionalidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental por meio de exame empírico das decisões do Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Arguição de descumprimento de preceito Fundamental; Preceito Fundamental; ato do Poder Público; Poder Público; Princípio da Subsidiariedade.


1. Introdução

O presente trabalho1 tem por objetivo examinar empiricamente alguns pontos controversos relativos à arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), no contexto das decisões, monocráticas ou colegiadas, do Supremo Tribunal Federal (STF). Isto é válido porque preenche uma lacuna deixada pelo legislador e pelos estudiosos. Enquanto aquele deu contornos legislativos obscuros à ADPF e estes somente a estudam no plano abstrato, gerando muita divergência, esta pesquisa analisa essa ação concretamente, buscando saber como o referido Tribunal, que é constitucionalmente competente para processá-la e julgá-la2, interpreta e resolve suas incongruências.

Especificamente, busca-se examinar três pontos referentes à ADPF, que são:

(i) o seu âmbito de proteção: a ADPF serve para proteger "preceitos fundamentais"3, no entanto, esta expressão é vaga, não permitindo de imediato saber o que indica;

(ii) o seu âmbito de impugnação: a ADPF será proposta contra "ato do Poder Público"4, o que é muito abrangente, possibilitando infindáveis cogitações sobre contra quem e contra que ato será proposta; e, por fim,

(iii) o seu âmbito de subsidiariedade: o cabimento da ADPF é residual ou subsidiário. Somente é cabível na falta de qualquer outro meio eficaz para sanar violação a preceito fundamental (princípio da subsidiariedade).5 E tal regime não está isento de críticas também, pois existem inúmeras interpretações elaboradas ao seu respeito.6 7


2. Delimitação do universo qualitativo

O exame de cada decisão estará adstrito a três problemas de pesquisa ligados às questões acima citadas. Esses problemas de pesquisa são:

PRECEITO FUNDAMENTAL

  • O que é preceito fundamental?

ATO DO PODER PÚBLICO

  • Contra quem a ADPF pode ser proposta?

  • Quais atos podem ser impugnados via ADPF?

PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

  • Qual a interpretação dada ao princípio da subsidiariedade?

2.1. Delimitação do universo quantitativo

As decisões escolhidas e analisadas foram colhidas dentre aquelas disponibilizadas no sítio do STF na internet, e esta opção se justifica em razão da facilidade de acesso a tal fonte de pesquisa por qualquer pessoa.8

Nesse passo, necessitou-se, primeiramente, precisar o marco temporal para se limitar as escolhas das decisões. Como a ADPF foi instituída com o advento da Constituição de 1988, o âmbito temporal ficou adstrito ao interregno de 1988 a 2009.

Em seguida, no dia 18 de junho de 2009, iniciou-se a escolha das decisões. Em um primeiro momento foi averiguada a quantidade de ações existentes. Acessou-se, para tanto, o link "Estatística" do sítio do STF, no qual se constatou que haviam sido propostas 173 ADPFs.

Logo após se elaborou um filtro, para se ater somente as decisões relevantes. O critério levado em consideração foi a necessária menção a algum dos três problemas de pesquisas acima frisados, e atenderam este requisito somente 53 decisões.9 As outras 120 decisões não foram examinadas porque o conteúdo de cada uma dizia respeito a assuntos não pertinentes. A tabela abaixo deixa claro isto. 10

MOTIVO

QUANTIDADE

Ilegitimidade da parte 11

38

Sem julgamento 12

47

Ingresso de amicus curiae 13

6

Manifestação de outro órgão 14

6

Falta de requisitos da liminar 15

6

Incapacidade postulatória 16

4

Perda do objeto 17

3

Manutenção da distribuição 18

3

Ações repropostas 19

4

Outros 20

3

Total

120

Com o universo quantitativo limitado, portanto, passa-se aos resultados obtidos.


3. O que é preceito fundamental?

No contexto das decisões prolatadas se verificou três modos de se interpretar o que seja um preceito fundamental. Todos eles levam em consideração que, para ser preceito fundamental, um dado dispositivo deve ser essencial ou fundamental à Constituição. Só se tornam diferentes em razão do ponto de vista empregado pelo interprete.

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Cada interpretação, por conseguinte, foi classificada em razão do ponto de vista adotado. Veja, então 21:

(i)Interpretação segundo a essencialidade do dispositivo à Constituição: preceito fundamental é todo dispositivo (princípio ou regra) constitucional dotado de essencialidade à Constituição.

O Ministro Néri da Silveira, na ADPF 1/RJ, foi o primeiro a tentar interpretar a partir dessa premissa. Arrolou alguns entendimentos doutrinários sobre o assunto e, após o exame das cláusulas pétreas, concluiu que preceitos fundamentais seriam os dispositivos que representassem "questões vitais" à Constituição, que fossem os fundamentos ou pilares desta Lei. E afirmou isto porque as cláusulas pétreas não podem ser abolidas ou mitigadas via emenda constitucional, o que demonstra a importância delas. 22 23 24

Além desse caso, verificou-se em muitos outros que, mesmo não havendo a utilização de um conceito ou posição doutrinária de apoio, os Ministros seguiram o mesmo norte, considerando como preceito fundamental todo dispositivo com o caráter de essencialidade à Constituição. Veja a tabela abaixo que confirma isto.

ADPF

Artigos Citados da Constituição

Conteúdo Normativo

Natureza do Dispositivo

ADPF 5 4 QO

Art. 1º, inciso III

Dignidade da Pessoa Humana

Princípio Fundamental

Art. 5º, inciso II

Legalidade e Autonomia da Vontade

Direito Individual Fundamental

Art. 6º, caput, e Art. 196, caput

Direito à Saúde

Direito Social Fundamental

Art. 5º, inciso XIII

Liberdade do Exercício do Trabalho

Direito Individual Fundamental

Art. 5º, inciso XIV

Direito de Acesso à Informação e Resguardo da Fonte

Direito Individual Fundamental

ADPF 79 MC/PE

Art. 37, caput

Legalidade Administrativa

Princípio da Administração Pública

Art. 37, caput

Moralidade Administrativa

Princípio da Administração Pública

Art. 1º, caput

Art. 60, § 4º, inciso I

Federalismo

Princípio Fundamental

Art. 2º

Separação dos Poderes

Princípio Fundamental

Art. 7, IV, in fine

Vedação de Vincular o Salário Mínimo como Base de Reajustes

Direito Social Fundamental

ADPF 47/PA

Art. 7, IV, in fine

Vedação de Vincular o Salário Mínimo como Base de Reajustes

Direito Social Fundamental

ADPF 95/DF

Art. 7, IV, in fine

Vedação de Vincular o Salário Mínimo como Base de Reajustes

Direito Social Fundamental

ii) Interpretação segundo a correlação entre preceitos fundamentais explícitos e implícitos: preceito fundamental é todo dispositivo constitucional (princípio ou regra) dotado de essencialidade e, ainda, todo dispositivo constitucional conexo.

Quem aplicou essa interpretação foi o Ministro Gilmar Mendes na ADPF-MC 33/PA. Neste caso, o referido Ministro entendeu que existem dois tipos de preceitos fundamentais:

a) os preceitos fundamentais explícitos: que seriam todas as disposições constitucionais dotadas de um caráter de essencialidade à Constituição 25; e,

b) os preceitos fundamentais implícitos: que são as disposições constitucionais ligadas aos preceitos fundamentais explícitos, dando a estes a base, ou um sentido jurídico mais concreto. 26 27

(iii) Interpretação segundo o significado de preceito à Constituição: segundo uma leitura da Constituição, preceito fundamental é toda regra constitucional essencial para esta Lei, e não os princípios constitucionais.

O Ministro Carlos Ayres de Britto fez essa observação na ADPF-MC 33/PA, e para tal inferência, bipartiu o termo "preceito fundamental", para fazer uma análise do termo "preceito" no texto constitucional, de um lado, e do outro, o termo "fundamental". Neste passo, asseverou que o adjetivo "fundamental", que qualifica o substantivo "preceito", somente estaria expresso na Constituição em duas oportunidades: nos princípios fundamentais do título I e nos direitos e garantias individuais constantes do título II. E, noutro ponto, após o exame do art. 29. da Constituição 28, asseverou que o termo "fundamental" estaria somente ligado às regras constitucionais.

Enfim, o Ministro Carlos Ayres de Britto entendeu que, ipsis litteris:

"Assim penso, Sr. Presidente, influenciado pela própria normatividade constitucional que emerge do art. 20. – sic -. A Constituição ali, a propósito da lei orgânica dos municípios, distingue princípios e preceitos. Para mim, fica bem claro que as normas bipartem-se em princípios e preceitos, tal como leio no art. 29.

Logo, preceitos não são princípios; estão a serviço de princípios, há um vínculo funcional entre eles. E, nesse plano da fundamentabilidade, só tendo a enxergar como preceito fundamental aquela regra não princípio – que não esteja a imediato serviço, ou seja, que densifique, concretize, especifique um princípio igualmente adjetivado de fundamental pela Constituição". (grifos nossos) 29


4. Contra quem a ADPF pode ser proposta?

Percebeu-se que a palavra "Poder Público" foi interpretada 30 pelos Ministros no sentido de que a ADPF pode ser proposta para impugnar atos de todo "ente" pertencente ou ligado à estrutura estatal, considerando-se tanto os órgãos públicos do Estado como as Pessoas Jurídicas de Direito Público.

Nesse contexto, a ADPF foi proposta contra: o Tribunal de Justiça de Alagoas; o Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP) e o Poder Judiciário; o Congresso Nacional; o Tribunal de Justiça de Pernambuco; o Governador do Estado do Paraná e o Poder Judiciário; o Congresso Nacional e o Poder Judiciário; o Presidente da República e o Poder Judiciário; o Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região; o Congresso Nacional e o Poder Judiciário; e o Supremo Tribunal Federal. 31

4.1. Quais atos podem ser impugnados via ADPF?

Verificou-se que os Ministros do STF admitiram a impugnação de uma gama variada de atos praticados por "entes" da estrutura do Estado, e nesta pesquisa tais atos foram classificados em função da natureza jurídica de cada um, o que resultou no seguinte 32:

a) Decisões judiciais: se alguma decisão judicial violar preceito fundamental, será impugnada via ADPF, salvo na hipótese de coisa julgada, conforme art. 5. º, § 3º, da Lei 9.882/99 33 34, e também será impugnada toda decisão judicial que legitime a aplicação de normas que lesem preceitos fundamentais. 35 36

b) Leis e atos normativos pré-constitucionais: se alguma lei ou ato normativo anterior à Constituição violar algum preceito fundamental, será impugnada via ADPF. 37 Veja, então:

ADPF

Ato Impugnado

Natureza Jurídica

Ano

1

ADPF 10/DF

Regimento Interno do TJ/AL

Ato Normativo

1981

2

ADPF-MC 33/PA

Regimento Interno do IDESP

Ato Normativo

1986

3

ADPF-MC47/PA

Decreto n. 4.726. do Estado do Pará

Ato Normativo

1987

4

ADPF 95MC/DF

Art. 3. da Lei n. 6.194

Lei

1974

5

ADPF 130 MC/DF

Lei n. 5.250

Lei

1967

6

ADPF 54/DF

Código Penal

(Art. 124, 126 e 128, inciso I e II)

Decreto com status de Lei Complementar

1940

c) Leis posteriores à Constituição: se alguma lei posterior à Constituição violar algum preceito fundamental, será impugnada mediante a propositura da ADPF. 38

Além dessas hipóteses de cabimento, observou-se que o STF não admite a impugnação de alguns atos. Tais atos são:

a) Veto a projeto de Lei: não se enquadra na expressão "ato do Poder Público", pois é um ato com conteúdo político e que, ainda, não teve seu ciclo de apreciação terminado, uma vez que cabe ao Poder Legislativo analisar os seus motivos (art. 66, § 4º, da CF); 39

b) Súmulas: por serem expressões sintetizadas de entendimentos consolidados por uma Corte, não podem ser concebidas como atos do Poder Público violadores de preceitos fundamentais; 40

c) Decisão judicial transitada em julgado: não é impugnável, uma vez que seus efeitos se tornaram imutáveis, salvo ação rescisória; 41

d) Decisão Judicial com conteúdo ligado a interesses subjetivos: se a ADPF é uma ação que enseja um processo objetivo (controle concentrado de constitucionalidade), não pode ser utilizada para impugnar decisões judiciais que não tratem sobre matéria ampla e geral de acordo com sua natureza; 42

e) Atos indicados genericamente: a ADPF não pode ser utilizada para impugnar atos indicados genericamente, uma vez que o art. 3o da Lei n° 9.882/99 determina exatamente o contrário, a impugnação de atos do Poder Público de forma precisa e determinada; 43 e,

f) Atos fundamentalmente ilegais: caso determinado ato viole, efetivamente, uma Lei e secundariamente a Constituição, a ADPF não é cabível, pois se trata de um instrumento destinado ao controle de constitucionalidade (art. 102, § 1º, da Constituição), e não ao controle de ilegalidade. 44

Sobre o autor
Luciano Batista de Oliveira

Advogado sócio do escritório Oliveira & Mattisen Advocacia especializada. Graduado em Direito pela Universidade São Francisco em 2008 e especialista em Direito Imobiliário pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) em 2010. Pós-graduando em Engenharia do Meio Ambiente pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas). Membro da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB/SP). Ex-Aluno da Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) em 2008, apresentando monografia sobre o tema: A caracterização da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental pelo Supremo Tribunal Federal. Ex-monitor a Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) em 2011, no curso: Constituição e Política, sob a supervisão do Prof. Me. Daniel Wei Liang Wang. Ex-monitor de Direito Empresarial, sob a supervisão do Prof. Me. Sérgio Gabriel, na Universidade São Francisco, 2008.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Luciano Batista. A concretização da arguição de descumprimento de preceito fundamental pelo Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2738, 30 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18161. Acesso em: 23 dez. 2024.

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