Resumo: O presente artigo tem por objeto examinar a funcionalidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental por meio de exame empírico das decisões do Supremo Tribunal Federal.
Palavras-chave: Arguição de descumprimento de preceito Fundamental; Preceito Fundamental; ato do Poder Público; Poder Público; Princípio da Subsidiariedade.
1. Introdução
O presente trabalho1 tem por objetivo examinar empiricamente alguns pontos controversos relativos à arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), no contexto das decisões, monocráticas ou colegiadas, do Supremo Tribunal Federal (STF). Isto é válido porque preenche uma lacuna deixada pelo legislador e pelos estudiosos. Enquanto aquele deu contornos legislativos obscuros à ADPF e estes somente a estudam no plano abstrato, gerando muita divergência, esta pesquisa analisa essa ação concretamente, buscando saber como o referido Tribunal, que é constitucionalmente competente para processá-la e julgá-la2, interpreta e resolve suas incongruências.
Especificamente, busca-se examinar três pontos referentes à ADPF, que são:
(i) o seu âmbito de proteção: a ADPF serve para proteger "preceitos fundamentais"3, no entanto, esta expressão é vaga, não permitindo de imediato saber o que indica;
(ii) o seu âmbito de impugnação: a ADPF será proposta contra "ato do Poder Público"4, o que é muito abrangente, possibilitando infindáveis cogitações sobre contra quem e contra que ato será proposta; e, por fim,
(iii) o seu âmbito de subsidiariedade: o cabimento da ADPF é residual ou subsidiário. Somente é cabível na falta de qualquer outro meio eficaz para sanar violação a preceito fundamental (princípio da subsidiariedade).5 E tal regime não está isento de críticas também, pois existem inúmeras interpretações elaboradas ao seu respeito.6 7
2. Delimitação do universo qualitativo
O exame de cada decisão estará adstrito a três problemas de pesquisa ligados às questões acima citadas. Esses problemas de pesquisa são:
PRECEITO FUNDAMENTAL |
|
ATO DO PODER PÚBLICO |
|
PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE |
|
2.1. Delimitação do universo quantitativo
As decisões escolhidas e analisadas foram colhidas dentre aquelas disponibilizadas no sítio do STF na internet, e esta opção se justifica em razão da facilidade de acesso a tal fonte de pesquisa por qualquer pessoa.8
Nesse passo, necessitou-se, primeiramente, precisar o marco temporal para se limitar as escolhas das decisões. Como a ADPF foi instituída com o advento da Constituição de 1988, o âmbito temporal ficou adstrito ao interregno de 1988 a 2009.
Em seguida, no dia 18 de junho de 2009, iniciou-se a escolha das decisões. Em um primeiro momento foi averiguada a quantidade de ações existentes. Acessou-se, para tanto, o link "Estatística" do sítio do STF, no qual se constatou que haviam sido propostas 173 ADPFs.
Logo após se elaborou um filtro, para se ater somente as decisões relevantes. O critério levado em consideração foi a necessária menção a algum dos três problemas de pesquisas acima frisados, e atenderam este requisito somente 53 decisões.9 As outras 120 decisões não foram examinadas porque o conteúdo de cada uma dizia respeito a assuntos não pertinentes. A tabela abaixo deixa claro isto. 10
MOTIVO |
QUANTIDADE |
Ilegitimidade da parte 11 |
38 |
Sem julgamento 12 |
47 |
Ingresso de amicus curiae 13 |
6 |
Manifestação de outro órgão 14 |
6 |
Falta de requisitos da liminar 15 |
6 |
Incapacidade postulatória 16 |
4 |
Perda do objeto 17 |
3 |
Manutenção da distribuição 18 |
3 |
Ações repropostas 19 |
4 |
Outros 20 |
3 |
Total |
120 |
Com o universo quantitativo limitado, portanto, passa-se aos resultados obtidos.
3. O que é preceito fundamental?
No contexto das decisões prolatadas se verificou três modos de se interpretar o que seja um preceito fundamental. Todos eles levam em consideração que, para ser preceito fundamental, um dado dispositivo deve ser essencial ou fundamental à Constituição. Só se tornam diferentes em razão do ponto de vista empregado pelo interprete.
Cada interpretação, por conseguinte, foi classificada em razão do ponto de vista adotado. Veja, então 21:
(i)Interpretação segundo a essencialidade do dispositivo à Constituição: preceito fundamental é todo dispositivo (princípio ou regra) constitucional dotado de essencialidade à Constituição.
O Ministro Néri da Silveira, na ADPF 1/RJ, foi o primeiro a tentar interpretar a partir dessa premissa. Arrolou alguns entendimentos doutrinários sobre o assunto e, após o exame das cláusulas pétreas, concluiu que preceitos fundamentais seriam os dispositivos que representassem "questões vitais" à Constituição, que fossem os fundamentos ou pilares desta Lei. E afirmou isto porque as cláusulas pétreas não podem ser abolidas ou mitigadas via emenda constitucional, o que demonstra a importância delas. 22 23 24
Além desse caso, verificou-se em muitos outros que, mesmo não havendo a utilização de um conceito ou posição doutrinária de apoio, os Ministros seguiram o mesmo norte, considerando como preceito fundamental todo dispositivo com o caráter de essencialidade à Constituição. Veja a tabela abaixo que confirma isto.
ADPF |
Artigos Citados da Constituição |
Conteúdo Normativo |
Natureza do Dispositivo |
ADPF 5 4 QO |
Art. 1º, inciso III |
Dignidade da Pessoa Humana |
Princípio Fundamental |
Art. 5º, inciso II |
Legalidade e Autonomia da Vontade |
Direito Individual Fundamental |
|
Art. 6º, caput, e Art. 196, caput |
Direito à Saúde |
Direito Social Fundamental |
|
Art. 5º, inciso XIII |
Liberdade do Exercício do Trabalho |
Direito Individual Fundamental |
|
Art. 5º, inciso XIV |
Direito de Acesso à Informação e Resguardo da Fonte |
Direito Individual Fundamental |
|
ADPF 79 MC/PE |
Art. 37, caput |
Legalidade Administrativa |
Princípio da Administração Pública |
Art. 37, caput |
Moralidade Administrativa |
Princípio da Administração Pública |
|
Art. 1º, caput Art. 60, § 4º, inciso I |
Federalismo |
Princípio Fundamental |
|
Art. 2º |
Separação dos Poderes |
Princípio Fundamental |
|
Art. 7, IV, in fine |
Vedação de Vincular o Salário Mínimo como Base de Reajustes |
Direito Social Fundamental |
|
ADPF 47/PA |
Art. 7, IV, in fine |
Vedação de Vincular o Salário Mínimo como Base de Reajustes |
Direito Social Fundamental |
ADPF 95/DF |
Art. 7, IV, in fine |
Vedação de Vincular o Salário Mínimo como Base de Reajustes |
Direito Social Fundamental |
ii) Interpretação segundo a correlação entre preceitos fundamentais explícitos e implícitos: preceito fundamental é todo dispositivo constitucional (princípio ou regra) dotado de essencialidade e, ainda, todo dispositivo constitucional conexo.
Quem aplicou essa interpretação foi o Ministro Gilmar Mendes na ADPF-MC 33/PA. Neste caso, o referido Ministro entendeu que existem dois tipos de preceitos fundamentais:
a) os preceitos fundamentais explícitos: que seriam todas as disposições constitucionais dotadas de um caráter de essencialidade à Constituição 25; e,
b) os preceitos fundamentais implícitos: que são as disposições constitucionais ligadas aos preceitos fundamentais explícitos, dando a estes a base, ou um sentido jurídico mais concreto. 26 27
(iii) Interpretação segundo o significado de preceito à Constituição: segundo uma leitura da Constituição, preceito fundamental é toda regra constitucional essencial para esta Lei, e não os princípios constitucionais.
O Ministro Carlos Ayres de Britto fez essa observação na ADPF-MC 33/PA, e para tal inferência, bipartiu o termo "preceito fundamental", para fazer uma análise do termo "preceito" no texto constitucional, de um lado, e do outro, o termo "fundamental". Neste passo, asseverou que o adjetivo "fundamental", que qualifica o substantivo "preceito", somente estaria expresso na Constituição em duas oportunidades: nos princípios fundamentais do título I e nos direitos e garantias individuais constantes do título II. E, noutro ponto, após o exame do art. 29. da Constituição 28, asseverou que o termo "fundamental" estaria somente ligado às regras constitucionais.
Enfim, o Ministro Carlos Ayres de Britto entendeu que, ipsis litteris:
"Assim penso, Sr. Presidente, influenciado pela própria normatividade constitucional que emerge do art. 20. – sic -. A Constituição ali, a propósito da lei orgânica dos municípios, distingue princípios e preceitos. Para mim, fica bem claro que as normas bipartem-se em princípios e preceitos, tal como leio no art. 29.
Logo, preceitos não são princípios; estão a serviço de princípios, há um vínculo funcional entre eles. E, nesse plano da fundamentabilidade, só tendo a enxergar como preceito fundamental aquela regra não princípio – que não esteja a imediato serviço, ou seja, que densifique, concretize, especifique um princípio igualmente adjetivado de fundamental pela Constituição". (grifos nossos) 29
4. Contra quem a ADPF pode ser proposta?
Percebeu-se que a palavra "Poder Público" foi interpretada 30 pelos Ministros no sentido de que a ADPF pode ser proposta para impugnar atos de todo "ente" pertencente ou ligado à estrutura estatal, considerando-se tanto os órgãos públicos do Estado como as Pessoas Jurídicas de Direito Público.
Nesse contexto, a ADPF foi proposta contra: o Tribunal de Justiça de Alagoas; o Instituto do Desenvolvimento Econômico-Social do Pará (IDESP) e o Poder Judiciário; o Congresso Nacional; o Tribunal de Justiça de Pernambuco; o Governador do Estado do Paraná e o Poder Judiciário; o Congresso Nacional e o Poder Judiciário; o Presidente da República e o Poder Judiciário; o Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região; o Congresso Nacional e o Poder Judiciário; e o Supremo Tribunal Federal. 31
4.1. Quais atos podem ser impugnados via ADPF?
Verificou-se que os Ministros do STF admitiram a impugnação de uma gama variada de atos praticados por "entes" da estrutura do Estado, e nesta pesquisa tais atos foram classificados em função da natureza jurídica de cada um, o que resultou no seguinte 32:
a) Decisões judiciais: se alguma decisão judicial violar preceito fundamental, será impugnada via ADPF, salvo na hipótese de coisa julgada, conforme art. 5. º, § 3º, da Lei 9.882/99 33 34, e também será impugnada toda decisão judicial que legitime a aplicação de normas que lesem preceitos fundamentais. 35 36
b) Leis e atos normativos pré-constitucionais: se alguma lei ou ato normativo anterior à Constituição violar algum preceito fundamental, será impugnada via ADPF. 37 Veja, então:
Nº |
ADPF |
Ato Impugnado |
Natureza Jurídica |
Ano |
1 |
ADPF 10/DF |
Regimento Interno do TJ/AL |
Ato Normativo |
1981 |
2 |
ADPF-MC 33/PA |
Regimento Interno do IDESP |
Ato Normativo |
1986 |
3 |
ADPF-MC47/PA |
Decreto n. 4.726. do Estado do Pará |
Ato Normativo |
1987 |
4 |
ADPF 95MC/DF |
Art. 3. da Lei n. 6.194 |
Lei |
1974 |
5 |
ADPF 130 MC/DF |
Lei n. 5.250 |
Lei |
1967 |
6 |
ADPF 54/DF |
Código Penal (Art. 124, 126 e 128, inciso I e II) |
Decreto com status de Lei Complementar |
1940 |
c) Leis posteriores à Constituição: se alguma lei posterior à Constituição violar algum preceito fundamental, será impugnada mediante a propositura da ADPF. 38
Além dessas hipóteses de cabimento, observou-se que o STF não admite a impugnação de alguns atos. Tais atos são:
a) Veto a projeto de Lei: não se enquadra na expressão "ato do Poder Público", pois é um ato com conteúdo político e que, ainda, não teve seu ciclo de apreciação terminado, uma vez que cabe ao Poder Legislativo analisar os seus motivos (art. 66, § 4º, da CF); 39
b) Súmulas: por serem expressões sintetizadas de entendimentos consolidados por uma Corte, não podem ser concebidas como atos do Poder Público violadores de preceitos fundamentais; 40
c) Decisão judicial transitada em julgado: não é impugnável, uma vez que seus efeitos se tornaram imutáveis, salvo ação rescisória; 41
d) Decisão Judicial com conteúdo ligado a interesses subjetivos: se a ADPF é uma ação que enseja um processo objetivo (controle concentrado de constitucionalidade), não pode ser utilizada para impugnar decisões judiciais que não tratem sobre matéria ampla e geral de acordo com sua natureza; 42
e) Atos indicados genericamente: a ADPF não pode ser utilizada para impugnar atos indicados genericamente, uma vez que o art. 3o da Lei n° 9.882/99 determina exatamente o contrário, a impugnação de atos do Poder Público de forma precisa e determinada; 43 e,
f) Atos fundamentalmente ilegais: caso determinado ato viole, efetivamente, uma Lei e secundariamente a Constituição, a ADPF não é cabível, pois se trata de um instrumento destinado ao controle de constitucionalidade (art. 102, § 1º, da Constituição), e não ao controle de ilegalidade. 44