8 O PODER REGULAMENTAR NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
BOBBIO (1989: p. 24) leciona que os regulamentos são, como as leis, normas gerais e abstratas, mas, à diferença das leis, a sua produção é confiada geralmente ao Poder Executivo por delegação do Poder Legislativo [05], e uma de suas funções é a de integrar leis muito genéricas, que contêm somente diretrizes de princípio e não poderiam ser aplicadas sem que fossem ulteriormente especificadas. É impossível que o Poder Legislativo formule todas as normas necessárias para regular a vida social; limita-se então a formular normas genéricas, as quais contêm somente diretrizes, e confia aos órgãos executivos, que são muito mais numerosos, o encargo de torná-las exequíveis.
CLÈVE (2000: pp. 288-290) cita aquilo que denomina os princípios reitores das relações entre a lei e o regulamento, que lembra serem devidos ao jurista português Gomes Canotilho, e que são:
O primeiro princípio é o da primazia ou preeminência da lei. A lei está, hierarquicamente, acima do regulamento. Este não pode contrariar aquela. O direito brasileiro não tolera regulamentos revocatórios (ab-rogatórios ou derrogatórios) e suspensivos da eficácia de normas legais. Todavia, " (...) a lei frente ao regulamento não tem limites de atuação funcionáveis: pode derrogá-lo ou excluir um regulamento para ordenar qualquer matéria (...); pode derrogá-lo pura e simplesmente ou, pelo contrário, elevá-lo de categoria, convertendo-o em lei e emprestando-lhe com isso sua própria força superior; pode restringir seu âmbito de atuação ou, pelo contrário, ampliá-lo. Não há nenhum âmbito que pertença exclusivamente ao regulamento e em que este possa atuar à margem ou prescindindo (...) da lei.
O segundo princípio é o da precedência da lei. O Estado Democrático de Direito exige não apenas uma vinculação negativa (dever de não conrariar), mas também uma vinculação positiva (dever de apontar o fundamento legal) da Administração à lei. Assim, não é legítima a edição de regulamento sem a prévia existência da lei. O regulamento presta-se para favorecer a aplicação da lei.
O terceiro princípio é o da acessoriedade dos regulamentos. Os regulamentos são acessórios em relação à lei. Não podem tomar o lugar delas. Não podem assumir o papel que a Constituição reservou à lei. São atos normativos sujeitos à lei e dela dependentes. Como ensina Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ‘os seus preceitos constituem regras técnicas de boa execução da lei, para melhor aplicação. Complementar os seus preceitos, neles apoiados, como meros elementos de sua execução, como procedimentos de sua aplicação.’ São ainda acessórios, porque os seus preceitos formam um direito adjetivo e um direito processual do direito substantivo instituído pela lei.
O quarto princípio é o do congelamento da categoria. Dele decorre que disciplinada determinada por meio de lei, apenas por lei ou ato de hierarquia superior poderá sofrer alteração. Da hierarquia normativa, extrai-se a regra segundo a qual um ato normativo só pode ser revogado (derrogado ou ab-rogado), modificado ou substituído, por outro ato normativo de igual ou superior qualidade formal. (...)
O quinto princípio é o da identidade própria do regulamento. Ou seja, ainda que previsto pela lei, as normas regulamentares guardam a hierarquia que lhes é própria, não alcançando, com a simples previsão legal, promoção hierárquica ou deslocamento de regime jurídico (do regulamentar para o específico da lei). Ainda que o Legislativo pretenda que a norma regulamentar integre o diploma legal, isto não pode ocorrer em face da Constituição. Semelhante previsão não passa de cláusula nula e insuscetível de realização.
O sexto princípio é o da autonomia da atribuição regulamentar. Bem por isso, regulamento independe de autorização legislativa, encontrando seu fundamento não na lei, mas na própria norma constitucional. Isto quer significar que (i) com ou sem previsão legal (do regulamento, evidentemente), poderá o Presidente da República regulamentar as leis cuja aplicação desafiem atuação administrativa; (ii) não pode o Legislador proibir a atuação do poder regulamentar do Presidente da República; regra legal desse quilate será nula por inconstitucional; (iii) para a manifestação da ação regulamentar, basta a existência prévia de lei não auto-executável exigente de atuação administrativa.
O sétimo princípio é o da colaboração necessária entre a lei e o regulamento. Em face dele, havendo dispositivos não auto-aplicáveis, então deverá o Presidente da República regulamentá-los, sob pena, inclusive, de praticar crime de responsabilidade (art. 85, VII, da CF).
O oitavo e último princípio, nesta amostragem referido, é o da autonomia da lei. Dele decorre que (i) a vigência da lei não pode ficar condicionada à edição de regulamento; previsão legal neste sentido fere a Constituição, importando delegação vedada de poder; a eficácia (execução) da lei pode ficar condicionada à edição do regulamento, desde que seja fixado prazo para a ação normativa do Executivo (o princípio da divisão dos poderes não admite deixar-se ao inteiro arbítrio do Executivo a suspensão ou adiamento da execução da lei); (iii) não previsto prazo para a edição de regulamento, então a lei ‘será eficaz desde a sua vigência em tudo aquilo que não depender do ato complementar e inicial da execução’; e, finalmente, (iv) definido o prazo da regulamentação e esgotado sem sua edição, ‘a lei será eficaz em tudo o que não depender do regulamento, já que antes de vencida a dilação temporal, era totalmente ineficaz"
Deste longo porém proveitoso excerto doutrinário, fica clara a delimitação do poder regulamentar, o qual deverá ser editado nas lindes da lei, ou seja, em estrita obediência à lei; tal delimitação corresponde àquilo que se denomina de princípio da legalidade, conforme veremos.
No Brasil, em função do chamado princípio da legalidade contido no art. 5º, inc. II da Constituição Federal, segundo o qual somente a lei, no sentido material e no sentido formal, é capaz de obrigar alguém a fazer ou a deixar de fazer algo, ou, em outras palavras, somente a lei é capaz de inovar na ordem jurídica, o princípio da legalidade atua permitindo ao regulamento apenas, de maneira bastante rígida, propiciar a fiel execução das leis, nos estritos termos do art. 84, inc. IV da Carta Constitucional [06].
Ainda assim, há na doutrina entendimentos no sentido de que o regulamento pode completar a lei lacunosa, no que diz respeito, exclusivamente, a possibilitar a sua efetiva aplicabilidade; afinal, a lei vigente não pode ser destituída da eficácia pela falta de regulamento que possibilite a sua execução.
Não é por outro motivo que MORAES (2002) afirma que;
"O exercício do poder regulamentar do Executivo situa-se na principiologia constitucional da Separação de Poderes (CF, arts. 2º; 60, § 4º, III), pois, salvo em situação de relevância e urgência (medidas provisórias), o Presidente da República não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o regulamento não poderá alterar disposição legal, e tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa.
Essa vedação não significa que o regulamento deva reproduzir literalmente o texto da lei, pois seria de flagrante inutilidade. O poder regulamentar somente será exercido quando alguns aspectos da aplicabilidade da lei forem conferidos ao Poder Executivo, que deverá evidenciar e explicitar todas as previsões legais, decidindo a melhor forma de executá-la e, eventualmente, inclusive, suprir suas lacunas de ordem prática ou técnica." (grifamos)
Desta lição do doutrinador, faz-se possível retirar duas importantes pistas acerca dos limites do poder regulamentar, com as quais se poderá caracterizar a exorbitação do mesmo, que são a impossibilidade de criar normas gerais e a possibilidade de suprir lacunas de ordem técnica ou prática, vale dizer: que venham a impossibilitar a aplicação da lei..
Quanto à natureza jurídica dos regulamentos, Duguit, apud RÁO (1999: p. 311), não vê qualquer diferença entre a lei e o regulamento, do ponto de vista puramente material ou, como chama, do ponto de vista interno: "Il reste qu’au point de vue juridique interne le règlement et le loi materialle sont identiques" [07]
Não obstante, o próprio RÁO (idem, ibidem) faz distinção material e formal entre ambos os institutos jurídicos. Do ponto de vista substancial, a distinção é que a lei, dentro do único limite que a Constituição lhe traça, pode escolher livremente a relação de fato que quer disciplinar e pode discipliná-la como melhor se afigurar ao legislador, ao passo que ao regulamento não se permite nem exceder nem restringir o alcance da lei que se regula; em outras palavras, aquela tem o que o autor chama de conteúdo próprio, ao passo que o regulamento possui apenas o conteúdo subordinado à lei e destinado a propiciar a sua fiel execução.
Indispensável citar CANOTILHO, o qual nos dá um importante aviso:
"O regulamento é uma norma emanada pela administração no exercício da função administrativa e, regra geral, com carácter executivo e/ou complementar da lei. É um acto normativo e não um acto administrativo singular; é um acto normativo mas não um acto normativo com valor legislativo." (grifamos). (CANOTILHO, 2002, p. 833)
A lição do jurista português, ao enfatizar a falta de valor legislativo do regulamento, é equivalente ao que o constituinte brasileiro institui em nossa Carta Política, em seu art. 1º, parágrafo único: "Todo o poder emana do povo"; não poderá, assim, aquele que não é representante legítimo da vontade popular fazer aquilo que só à lei formal é permitido, qual seja: criar novos direitos e novas obrigações. Deverá, ao contrário, e conforme já salientado, ater-se a propiciar a fiel execução das leis.
GASPARINI (1995) conceitua o poder regulamentar como sendo a atribuição privativa do chefe do Poder Executivo para, mediante decreto, expedir atos normativos, denominados regulamentos, compatíveis com a lei e visando desenvolvê-la.
De modo muito semelhante, a conceituação constitucional do regulamento consta do art. 84, inc. IV da Carga Magna, conforme se vê:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
Fica claro, de acordo com tal diploma constitucional, que tais regulamentos devem ser editados visando a fiel execução da lei, conforme já se viu.
Não poderá deste modo o Poder Executivo, quando no exercício do Poder Regulamentar, ultrapassar os limites do que lhe permitiu a lei: há de estar, necessariamente, a ela jungido.
É nesta mesma direção, ressaltando ainda o valor inferior do regulamento em relação à lei, o magistério de Hely Lopes MEIRELLES (2001: p. 171):
"Como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à lei e, por isso mesmo, não a pode contrariar. O decreto geral tem, entretanto, a mesma normatividade da lei, desde que não ultrapasse a alçada regulamentar de que dispõe o Executivo."
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1997: 143), vai mais fundo no que se entende por decreto, tido como a expressão por excelência do Poder Regulamentar:
"Decretos não são propriamente atos normativos, mas de caráter administrativo, cuja competência exclusiva pertence ao chefe do Executivo, e que tem por finalidade dispor regras sobre situações gerais ou individuais, previstas de forma abstrata, de modo expresso ou implícito, na lei... Como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à da lei, e, por isso mesmo, não a pode contrariar."
Da mesma maneira, REALE explica:
"Não são leis os regulamentos ou decretos, porque estes não podem ultrapassar os limites postos pela norma legal que especificam ou a cuja execução se destinam. Tudo o que as normas regulamentares ou executivas estejam em conflito com o disposto ali não tem validade, e é suscetível de impugnação por quem se sinta lesado."
Há que lembrar ainda que não pode o Poder Executivo, a pretexto de "interpretar" a lei, realizar de fato uma ampliação ou uma restrição do alcance da mesma: veja-se o que afirma GASPARINI (1978):
"Outra faceta dos regulamentos subordinados é a de não poder o Executivo, a pretexto de regulamentar uma dada lei, impor a sua interpretação. Essa regulamentação disfarçada da lei iria muito além da atribuição que vimos examinando. A única interpretação aceita pelo sistema é a realizada pelo Judiciário, o único a dizer a palavra final. Nem mesmo a interpretação levada a efeito pelo Poder Legislativo, chamada de autêntica, é aceita, já que é entendida como nova lei, modificadora daquela dita interpretada. Com precisão, ensina Pontes de Miranda que, onde a lei oferece dúvida, não é ao Executivo que toca varrê-la, e enfatiza o ilustre Geraldo Ataliba: ‘ainterpretação da lei, expressa no regulamento, não é vinculada senão para os subordinados hierárquicos do Presidente da República; não é mais autorizada que qualquer outra, doutrinária ou jurisprudencialmente; esta pelo contrário, sempre sobrepuja à primeira." (grifamos) (GASPARINI, 1978, p. 123)
Deste modo, vê-se que não há justificativa viável para a atitude do Poder Executivo no sentido de exacerbar dos limites de sua atribuição regulamentar: tal se dá, eventualmente, por um rigorismo excessivo por parte daquele Poder na aplicação da lei, porém a tendência é que os excessos sejam podados pelo Poder Judiciário.
Estes ditos abusos dão-se dá através do artifício de permitir, aparentemente de modo proposital, a existência de "lacunas" na legislação previdenciária – no caso, especificamente na lei 8.213/99 – e, através da edição de regulamentos excessivamente restritivos, impedir ou ao menos procrastinar o acesso do contribuinte aos benefícios a que teria direito.
Tal assertiva tem sido comprovada pelo grande número de ações que chegam ao Poder Judiciário questionando tais decretos, bem como pelas reiteradas decisões no sentido de que tais regulamentos ultrapassam o poder regulamentar, chegando a serem autênticas "leis de fato", no sentido de que, conforme se verifica, inovam na ordem jurídica, criando obrigações serem cumpridas para o exercício de determinados direitos subjetivos.