9 O CONCEITO DE "FIEL EXECUÇÃO DA LEI"
Para conceituar a idéia de fiel execução da lei, tarefa constitucionalmente reservada aos regulamentos em sua modalidade executiva, impende citar CANOTILHO, o qual lembra o art. 199, alínea "c" da Constituição Portuguesa [08], onde se atribui ao governo competência para, no exercício das funções administrativas, "fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis".
Transportando-se tal conceito para o panorama constitucional nacional, poder-se-á talvez dizer que são sinônimas a definição da tarefa do regulamento executivo português e do nacional: isto porque o regulamento que propiciar a boa execução da lei será certamente fiel a ela; ao inverso, o regulamento que propiciar a fiel execução da lei certamente possibilitará, certamente, a sua boa execução.
Tal conceituação pode ser obtida (vide grifos) na obra de VELLOSO (1994, p. 421), o qual afirma que:
"Os regulamentos, na precisa definição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ‘são regras jurídicas gerais, abstratas, impessoais, em desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado, enquanto Poder Público. Editados pelo Poder Executivo, visam tornar efetivo o cumprimento da lei, propiciando facilidades para que a lei seja fielmente executada. É que as leis devem, segundo a melhor técnica, ser redigidas em termos gerais, não só para abranger a totalidade das relações que nela incidem, senão também para poderem ser aplicadas, com flexibilidade correspondente, às mutações de fato das quais estas mesmas relações resultam. Por isso, as leis não devem descer a detalhes, mas, conforme acima ficou expresso, conter, apenas, regras gerais. Os regulamentos, estes sim, é que serão detalhistas. Bem por isso, leciona Esmein, ‘são eles prescrições práticas que têm por fim preparar a execução das leis, completando-as em seus detalhes, sem lhes alterar, todavia, nem o texto, nem o espírito. (griiamos)
Outro não é o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o qual determina, sucintamente, que "Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis". (STF – ADin 1.435-8/DF – Medida Liminar Min. Francisco Rezek, Diário de Justiça, Seção 1, 6 ago, 99, p. 5). Da concisão da sentença, fica mais claro que nunca que não há objetivo adicional ao decreto, que não seja aquele estritamente descrito no texto constitucional, sem que se lhe permita a ampliação de hipóteses ou interpretação extensiva.
Tudo isto, no entanto, resta excessivamente subjetivo: poder-se-á dizer que o que um consideraria como sendo "fiel execução da lei" será, para outro, não tal fiel assim, em vista de múltiplas possibilidades de interpretação. O que alguém poderia considerar como sendo uma "lacuna" na lei, outro poderá entender que está implícito na lei, podendo ser daí extraído mediante interpretação sistemática. Daí, talvez, a edição de normas regulamentares excessivamente restritivas, no sentido de serem eventualmente vistas como abuso do poder regulamentar.
Assim, uma alternativa possível para a solução do impasse hermenêutico poderia ser a seguinte observação de RIVERO, apud MORAES (2002: P. 95):
"A Administração é uma função essencialmente executiva: encontra na lei o fundamento e o limite para a sua actividade. Isso não exclui, em relação a ela, a faculdade de estabelecer, tal como o legislador, regras gerais, na medida em que tais regras sejam necessárias para precisar as condições de execuções das leis; mas as regras gerais de origem administrativa, ou regulamentos, estão inteiramente submetidos às leis." (grifamos)
Fica claro que tudo aquilo em que a regra não for estritamente necessária à execução da lei, ela não estará submetida à lei; constituir-se-á, deste modo, um abuso do poder regulamentar.
De acordo com a lição do doutrinador, a "função executiva" há de encontrar na lei tanto o fundamento, quanto o limite para sua atividade. E, desta maneira, qualquer diploma regulamentar tendente a dificultar o exercício do direito previsto em lei será contrário ao espírito constitucional do poder regulamentar, visto que não corresponderá à fiel execução da lei.
A respeito da questão do limite ao poder dito discricionário, FIGUEIREDO afirma (2001: pp. 201-203)
"Enfatize-se que, como limite, na dinâmica da discricionariedade, necessariamente, há a proporcionalidade, a boa-fé, a lealdade e a igualdade, que, a tempo e hora, em tópicos próprios foram discutidos.
Quando, por exemplo, a Administração regulamenta lei para sua fiel execução, como o deseja o texto constitucional, possibilita sua aplicação equânime por meio de regulamento, que a todos nivela.
Na verdade, se a lei for aplicada sem o regulamento, que obriga os próprios administrados a se comportarem da mesma maneira, poderia ocorrer que, por meio da interpretação, houvesse aplicações diferentes. Destarte, o decreto regulamentador dentro da moldura da lei, é elemento de imensa valia para o respeito ao princípio da igualdade."
Verifica-se, desta maneira, que o caráter discricionário do poder regulamentar não permite, conforme já mencionado, a eleição de motivações subjetivas, por parte da Administração Pública, na escolha das maneiras de execução da lei; muito ao contrário disto, o regulamento deve ser editado de modo a não permitir a existência de tais elementos subjetivos, privilegiando sempre o atendimento ao princípio da isonomia.
10 OS MEIOS DE ABUSO DO PODER REGULAMENTAR
A respeito do princípio da legalidade, BANDEIRA DE MELLO afirma que:
"No Brasil, o princípio da legalidade, além de assentar-se na própria estrutura do Estado de Direito e, pois, no sistema constitucional como um todo, está radicado especificamente nos arts. 50, II, 37 [caput] e 84, IV, da Constituição Federal. Estes dispositivos atribuem ao princípio em causa uma compostura muito estrita e rigorosa, não deixando válvula para que o Executivo se evada de seus grilhões. É, aliás, o que convém a um país de tão acentuada tradição autocrática, despótica, na qual o Poder Executivo, abertamente ou através de expedientes pueris – cuja pretensa juridicidade não iludiria sequer a um principiante -, viola de modo sistemático direitos e liberdades públicas e tripudia à vontade sobre a repartição de poderes." (2004, p. 73)
Não obstante a tradição de mau uso do poder acusada por Bandeira de Mello, verifica-se que, ao fazer uso de sua prerrogativa de inovar no ordenamento jurídico, o Poder Legislativo nem sempre possibilita que as leis daí emanadas sejam executadas, em vista de ser o conteúdo legal por demais genérico. Por este motivo, realiza uma autêntica delegação para que aquele que será o aplicador da lei para que este providencie os meios de execução, através do chamado poder regulamentar.
Cumpre, assim, à Administração – vale dizer, via de regra, ao Poder Executivo, o qual tem como suas duas funções principais a função administrativa e a função política – editar normas jurídicas que serão regras complementares à lei, sempre sendo exigido que não estas regras não ultrapassem o conteúdo que lhes foi legalmente delegado; caso não obedeça a esta prescrição, estará alterando a lei, ao invés de meramente complementá-la.
Vale questionar, então: em que consiste administrar? MELLO (2003: p. 95) afirma que:
[...] administrar é prover aos interesses públicos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições. Segue-se que a atividade administrativa consiste na produção de decisões e comportamentos que, na formação escalonada do Direito, agregam níveis maiores de concreção ao que já contém abstratamente nas leis.
Ressalte-se, ainda, que não poderá o Poder Legislativo, no intento de resolver a questão, simplesmente delegar ao Executivo a atribuição de dispor integralmente acerca da matéria mediante poder regulamentar; nesse sentido, afirma CARVALHO FILHO (2005, p. 44):
"Significa dizer que o poder regulamentar legítimo não pode simular o exercício da função de legislar decorrente da indevida delegação oriunda do Poder Legislativo, delegação essa que seria, na verdade, inaceitável renúncia à função que a Constituição lhe reservou."
Há que acrescentar que verifica-se, no direito administrativo moderno, padecedor de uma crescente complexidade em função da também crescente complexidade da própria sociedade como um todo, uma crescente aceitação, especialmente na França, do fenômeno da delegação de poderes ao Poder Executivo para que este, com seu corpo técnico maior e possivelmente mais qualificado, realize a regulamentação dos direitos e obrigações previstos em lei.
Tal panorama, porém, não se encontra contemplado no ordenamento jurídico nacional; verifica-se que o regulamento deve ser expedido exclusivamente para a fiel execução da lei, conforme afirma o art. 84, inc. IV da Carta Magna, e como é da tradição constitucional brasileira.
Neste sentido, vale citar a obra de Pimenta Bueno, apud CRETELLA (2002: pp. 310-311), o qual analisa exaustivamente os motivos a caracterizar abuso do poder regulamentar:
Do princípio incontestável que o Poder Executivo tem por atribuição executar, e não fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se evidentemente que cometeria grave abuso em qualquer das hipóteses seguintes:
1º - Em criar direitos, ou obrigações novas, não estabelecidos pela lei, porquanto seria uma inovação exorbitante de suas atribuições, uma usurpação do poder legislativo, (...)
2º - Em ampliar, restringir ou modificar direitos ou obrigações, porquanto a faculdade lhe foi dada para que fizesse observar fielmente a lei, e não para introduzir mudança ou alteração alguma nela (...)
3º - Em ordenar, ou proibir o que ela não ordena, ou não proíbe, porquanto dar-se-ia abuso igual ou que já notamos no antecedente número primeiro. E demais, o governo não tem autoridade alguma para suprir, por meio regulamentar as lacunas da lei, e mormente do direito privado, pois que estas entidades não são simples detalhes, ou meios de execução. Se a matéria como princípio é objeto de lei, deve ser reservada ao legislador; se não é, então não há lacuna na lei, sim objeto de detalhe de execução.
4º - Em facultar, ou proibir, diversamente do que a lei estabelece, porquanto deixaria esta de ser qual fora decretada, passaria a ser diferente, quando a obrigação do governo é de ser em tudo e por tudo fiel e submisso à lei.
5º - Finalmente, em extinguir ou anular direitos, ou obrigações, pois que um tal ato equivaleria à revogação da lei que os estabelecera ou reconhecera; seria um ato verdadeiramente atentatório.
Se, já ali no início do séc. XX o doutrinador era capaz de reconhecer cabalmente as hipóteses de abuso do poder regulamentar, tal abuso estará ainda melhor caracterizado no panorama constitucional contemporâneo, em função do princípio da legalidade, o qual estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, onde deve-se ser em virtude de lei formal, visto que é esta a verdadeira expressão da vontade geral.
É exatamente esta vontade geral que não constitui fonte da qual emana o poder regulamentar; ao contrário, emana este da vontade da administração pública, a qual tende a se contrapor aos interesses de seus administrados, em função dos interesses econômicos envolvidos.
E é exatamente aí que encontra-se a motivação dos conflitos apresentados anteriormente, os quais, ao chegar ao Poder Judiciário, são quase que invariavelmente declarados como ilegais, por manifesto abuso do poder regulamentar, agredindo os direitos fundamentais dos contribuintes, e que tivemos a oportunidade de observar, particularmente, no que tange aos regulamentos emanados em sede da Legislação Previdenciária do Regime Geral da Previdência Social, o qual inclui tanto o Decreto 3.048/1999 quanto outros diplomas normativos.
11 O CONTROLE DO ABUSO DO PODER REGULAMENTAR
Já no ano de 1959, ALMEIDA, já citado, discorria sobre o abuso do poder regulamentar e, caracterizando-o ilícito, apontava a solução que via para resolver o problema posto. A dupla de soluções que oferece o autor para tal hábito ou, como o chama, vezo do Executivo está abaixo descrita:
"Mas, como coibir tal abuso, estancando o vezo do Executivo? Em verdade, dois caminhos ocorrem: um é de difícil trilho, porque seria o de o Poder Legislativo ser mais ativo e presente e não permanecer atrasado em relação aos problemas que lhe incumbe resolver por leis sábias; outro é o de, cada vez que o administrado vir texto normativo em regulamento, oferecer-lhe resistência e enviar a hipótese ao exame do Judiciário." (ALMEIDA, 1959, p. 31)
Nos dias de hoje, conforme já se viu, tal "vezo", como o denominou o autor, continua vigente. Deste modo, necessário possibilitar o controle do abuso do poder regulamentar, existindo previsão expressa no texto constitucional de que tal abuso constituirá crime, conforme se verá. Necessário, ainda, o efetivo controle dos atos do Poder Executivo tanto pelo próprio Poder Executivo quanto pelos outros dois poderes; e, conforme veremos, tal controle é passível de ser realizado, baseado em diplomas constitucionais bastante claros a respeito de tal possibilidade, conforme poderemos ver.
11.1 O CRIME DE RESPONSABILIDADE DECORRENTE DO ABUSO DO PODER REGULAMENTAR
Da leitura do texto constitucional vigente, verifica-se a seguinte previsão:
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
(...)
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
ATALIBA, referindo-se ao à Constituição de 1967, que contava com idêntica redação em seu art. 82, inc. VII, deixa claro seu entendimento no sentido de que o abuso do poder regulamentar constitui atentado ao fiel cumprimento das leis, explicando que (ATALIBA: p. 194):
"Se ele é o responsável pelo fiel cumprimento das leis (obviamente, das leis administrativas), e se estas atribuem ônus, direitos, encargos, tarefas e deveres à administração pública e se esta é subordinada ao chefe do Executivo, parece óbvio que este pode ditar critérios e normas sobre a forma de o imenso e gigantesco aparelho (administração pública federal) dar ‘fiel execução à lei.’
Na verdade, uma visão objetiva prontamente revela o equilíbrio harmônico do sistema delineado.
Seria absurdo dar ao órgão tão grande poder, sem sancionar seu não uso ou abuso. Por outro lado, seria ilógico atribuir-lhe responsabilidade tão grave e ampla, sem lhe conceder os instrumentos para bem se desincumbir dela.
Por isso, se lhe dá enormes poderes. Em contrapartida, a Constituição o responsabiliza por qualquer abuso, desvio, mau uso ou não uso de suas competências (art. 82)"
Não obstante seja constitucional e doutrinariamente definido como crime de responsabilidade, o abuso do poder regulamentar não é regularmente tipificado, em lei ordinária, como sendo crime; assim, não sendo tipificado, não atende ao requisito essencial do art. 5º, inc. XXXIX da Carta Magna; não é, deste modo, crime em sentido formal, constituindo ato impunível; em que pese ser, em tese, ato ilícito, não é ilícito penal, até que venha a ser previsto como tal em lei específica.