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O jovem e o mundo do trabalho

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Agenda 26/01/2011 às 18:07

A tutela em face do trabalho juvenil constitui-se, historicamente, em uma inovação, tanto no Direito internacional quanto no ordenamento pátrio.

O entusiasmo, o vigor e a alegria daqueles que já saíram da infância, mas que ainda não atingiram a maturidade plena, são proclamados desde os tempos bíblicos. Segundo o dicionário Houaiss, juventude é "período da vida do ser humano compreendido entre a infância e o desenvolvimento pleno de seu organismo"1.

O conceito de jovem varia de acordo com o ramo do conhecimento e, em geral, adota-se um critério cronológico. Exemplificando: para a Medicina, a juventude é o período compreendido entre 15 e 25 anosde idade.2

Do ponto de vista religioso, o Alcorão3 traz em seu bojo a seguinte definição:

1131. "Por idade adulta pode ser entendida a juventude madura, digamos, entre 18 e os 30 anos de idade". Por essa ocasião, a pessoa já se encontra firmemente estabelecida na vida; sua constituição física está completa, e seus hábitos mentais e morais estão formados.4

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, por outro lado, considera a juventude o período dos 15 anos até os 24 anos de idade5.

Todas essas definições são pouco úteis do ponto de vista jurídico. Isso porque as faixas cronológicas supracitadas situam-se entre a menoridade e a maioridade legal, o que implica em status jurídicos totalmente distintos.

Exemplo disso é a Lei n° 8.069/1990, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente (E.C.A.). Em seu artigo 2°, esse diploma legal define como adolescente todo indivíduo entre 12 anos completos e os 18 anos incompletos.

Alguns indivíduos dessa faixa etária enquadram-se parcialmente nos critérios de juventude supramencionados. Entretanto, à luz do Direito, nenhum dos indivíduos contemplados pelo E.C.A. possui o pleno gozo para os atos da vida civil, embora a Medicina, por exemplo, já considere aqueles com idade superior a 15 anos como seres fisiologicamente plenos.

Para o Direito brasileiro, nos dias correntes, a maioridade civil é idêntica à maioridade penal e ambas iniciam-se no primeiro segundo do dia em que o indivíduo completa os 18 anos de idade, consoante dispõem os seguintes diplomas legais: Código Civil, art. 5º; Código Penal, art. 27. e Constituição Federal, art. 228.

Já o trabalho no segmento juvenil é juridicamente regulado por dispositivos específicos: a CLT, em seu artigo 403, expressamente proíbe o trabalho do menor de 16 anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos, segundo dispõe a Lei n° 10.097/2000. Essa lei permite a contratação do jovem, na condição de aprendiz, até os 24 anos de idade, conforme o que também prevê o artigo 433 da CLT.

Tal tutela em face do trabalho juvenil constitui-se, historicamente, em uma inovação, tanto no Direito internacional quanto no ordenamento pátrio.


1. Exploração da força de trabalho juvenil: evolução histórica

A tutela do trabalho infantil e juvenil é um evento histórico recente. Entretanto, o trabalho de menores remonta às primeiras civilizações humanas.

Conta-nos Amauri MASCARO NASCIMENTO6 que o trabalho infantil ocorre desde a Antiguidade, época em que o menor (caso não fosse escravo) trabalhava em ambiente doméstico e seu trabalho tinha fins artesanais.

Já na Idade Média, o trabalho das crianças e adolescentes passou a ter, como finalidade, o aprendizado de um ofício, que era ensinado pelos próprios pais ou nas corporações de ofícios.

Entretanto, a Revolução Industrial retirou desse trabalho juvenil o caráter de formação profissional, eis que era incompatível com a estratégia da mais-valia.7

Como nos explica Elson GOTTSCHALK8, a organização industrial pautava-se pela racionalização e pela divisão do trabalho, o que, necessariamente, implicava na fragmentação do ofício. Assim, os trabalhos, antes executados artesanalmente, exigindo grande domínio da técnica, passaram a ser efetuados por máquinas, que eram muito mais eficazes e rápidas nessa execução.

Graças a isso, mulheres e crianças foram admitidas nas indústrias, sendo desnecessária prévia aprendizagem, eis que o manejo das máquinas exigia apenas repetição de movimentos.

Relata-nos Erotilde MINHARRO9 que a força de trabalho dos homens era preterida à de mulheres, adolescentes e crianças, porque essas se sujeitavam à percepção de salários inferiores, embora cumprissem jornada laborativa idêntica à daqueles.

MINHARRO nos conta ainda que as primeiras leis de proteção dessa mão de obra surgiram por conta da indignação causada pelo emprego de crianças em trabalhos pesados e em jornadas extenuantes.

Por exemplo, em 1802, na Inglaterra, foi editada a chamada Lei de Peel (em homenagem ao Ministro que a idealizou, Robert Peel), o Moral and Health Act. A Lei de Peel proibia o trabalho de crianças por mais de dez horas diárias e também o trabalho noturno. Com a Lei Cotton Mills Act, tal proibição estendeu-se às cidades e limitou a idade mínima das crianças para trabalhar em nove anos. 10

Em sua obra "O Germinal", Emile Zola 11 descreve, com as tintas precisas do Naturalismo 12, as duras condições de vida do proletariado, na França do século XIX, e, em especial, a dos trabalhadores das minas de carvão. Nessa obra, constatamos a difícil situação de jovens como Catherine, de quinze anos de idade, de Jeanlin, de doze, e de Etienne, de vinte e um anos, cujo regime laboral ultrapassava dezoito horas diárias, no insalubre e perigoso ambiente do interior das minas.

No trecho abaixo, Zola narra o inicio do dia da jovem Catherine, às quatro horas da madrugada. Exausta pelo trabalho na mina de carvão e pelas poucas horas de sono, cabia ainda a ela acordar antes do restante da família e preparar-lhes a refeição matinal.

Bruscamente, Catherine levantou-se. No seu cansaço, tinha ela, pela força do hábito, contado as quatro badaladas que atravessaram o soalho, mas continuara sem o ânimo necessário para acordar de todo. (...) Entretanto, Catherine fez um esforço desesperado. Espreguiçava-se, crispava as mãos nos cabelos ruivos que se emaranhavam na testa e na nuca. Franzina para os seus quinze anos, não mostrava dos membros senão uns pés azulados, como tatuados com carvão, que saíam da bainha da camisola estreita, e braços delicados, alvos como leite, contrastando com a cor pálida do rosto, já estragado pelas contínuas lavagens com sabão preto. Um último bocejo abriu-lhe a boca um pouco grande, com dentes magníficos incrustados na palidez clorótica das gengivas, enquanto seus olhos cinzentos choravam de tanto combater o sono.

Trata-se de uma obra de ficção, mas o eminente escritor conseguiu transmitir até nós aquilo que, na atualidade, é repudiado pela maioria dos ordenamentos jurídicos: o vilipêndio da dignidade humana. Mais do que isso, Zola retratou a ideologia da exploração do trabalho do menor.

Num contexto em que a pobreza e a fome eram a regra, esperava-se que os filhos cedo se tornassem o arrimo dos pais, num atávico mecanismo de sustento, o que pode ser percebido no trecho abaixo da mesma obra:

Jeanlin recebeu um forte corretivo, uma surra aplicada do lado de fora, na calçada, diante das apavoradas crianças do conjunto habitacional. Onde é que se vira coisa igual? Filhos que pusera no mundo, que desde o nascimento davam gastos, que deviam agora estar ajudando a manutenção da casa! Nesse grito havia a lembrança da sua atribulada juventude, da miséria hereditária que obrigava cada filho da família a ser um ganha-pão para o futuro. 13

Essa ideologia ainda persiste mesmo nos nossos dias, especialmente nos meios rurais, em que os casais têm prole numerosa, para que os muitos filhos tornem-se os braços imprescindíveis nas lavouras.

Tal forma de pensar remonta ao início da formação gregária do homem, em que cada qual possuía sua cota de tarefas no clã familiar, eis que o auxilio mutuo era a regra e a utilização de toda mão de obra existente, indispensável.

O Código de Hamurabi 14 já previa medidas de proteção às crianças e aos adolescentes que, àquele tempo, trabalhavam como aprendizes. Segundo as disposições do códice babilônico, se o pai adotante ensinasse um ofício à criança adotada, esta não mais poderia retornar para seus pais biológicos. Vide transcrição abaixo:

XI - ADOÇÃO, OFENSAS AOS PAIS, SUBSTITUIÇÃO DE CRIANÇA.

(...)

188º - Se o membro de uma corporação operária, (operário) toma para criar um menino e lhe ensina o seu ofício, este não pode mais ser reclamado.

189º - Se ele não lhe ensinou o seu ofício, o adotado pode voltar à sua casa paterna. 15

Assim, percebemos que, desde a antiga Babilônia, existe a preocupação em proteger o trabalho das crianças e dos jovens e em lhes ensinar uma profissão com que possam, no futuro, sustentarem-se, sendo úteis à sociedade.

Relata-nos o insigne Amauri MASCARO NASCIMENTO que, na Idade Média, nas chamadas Corporações de Ofício, crianças e adolescentes, assim como os adultos, eram submetidos a trabalho sem remuneração, durante o processo de aprendizagem de ofício, e também não tinham direito a intervalo intrajornada para as refeições. 16

É bem verdade que esse sistema representou uma evolução aos modelos anteriores: a escravidão e, depois, a servidão campesina. Entretanto, os jovens aprendizes submetiam-se às determinações dos mestres até mesmo quanto ao direito à mudança de domicilio 17.

Para SEGADAS VIANNA, o sistema de Corporações "não passava de uma fórmula mais branda de escravização." 18 Sobre isso, ensina-nos mestre MASCARO que:

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Os aprendizes eram menores que recebiam dos mestres os ensinamentos metódicos de um ofício ou profissão. (...) As corporações mantinham com os trabalhadores uma relação de tipo bastante autoritário e que se destinava mais à realização de seus interesses do que à proteção dos trabalhadores. 19

Mas o assalariamento promovido no século XVIII pela Revolução Industrial, já às portas da Idade Contemporânea, não melhorou esse cenário de exploração.

Postula Michel FOUCAULT 20 que, a partir do século XVIII, iniciaram-se as relações entre o Estado moderno e a população, na sociedade ocidental. A partir dessa época, incumbiu à população dos países europeus o povoamento das colônias, a defesa do Estado (integrando os exércitos nacionais), e a composição da mão de obra do nascente setor industrial.

Na verdade, o êxito da Revolução Industrial deu-se à custa do trabalho de mulheres e crianças, a quem eram pagos os salários mais baixos. 21 Sobre esse difícil período, descreve-nos MARX que:

Milhares de braços tornaram-se de súbito necessários. (...) Procuravam-se principalmente pelos pequenos e ágeis. (...) Muitos, milhares desses pequenos seres infelizes, de sete a treze ou quatorze anos foram despachados para o norte. O costume era o mestre (o ladrão de crianças) vesti-los, alimentá-los e alojá-los na casa de aprendizes junto à fábrica. Foram designados supervisores para lhes vigiar o trabalho. Era interesse destes feitores de escravos fazerem as crianças trabalhar o máximo possível, pois sua remuneração era proporcional à quantidade de trabalho que deles podiam extrair. (...) Os lucros dos fabricantes eram enormes, mais isso apenas aguçava-lhes a voracidade lupina. Começaram então a prática do trabalho noturno, revezando, sem solução de continuidade, a turma do dia pelo da noite o grupo diurno ia se estender nas camas ainda quentes que o grupo noturno ainda acabara de deixar, e vice e versa. 22

Provém dessa época a criação de legislação protetiva para o trabalho da mulher e do menor, como decorrência de intensa luta dos trabalhadores. 23 Conforme explica-nos Amauri MASCARO NASCIMENTO:

Os trabalhadores reivindicaram (...) um direito que os protegesse, (...) o direito a uma legislação em condições de coibir os abusos do empregador e preservar a dignidade do homem no trabalho, ao contrário do que ocorria com o proletariado exposto a jornadas diárias excessivas, salários infames, exploração dos menores e mulheres e desproteção total diante de acidentes no trabalho e riscos sociais como a doença, o desemprego etc. 24

No Brasil, foi apenas no ano de 1927 que ocorreu a regulamentação do trabalho do menor, por meio do então chamado Código de Menores (Decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927), que proibia o labor antes dos 12 anos de idade. 25

Segundo dispunha o artigo 1º desse Código, todo indivíduo com menos de 18 anos de idade era considerado menor.

Esse Código já descrevia a figura jurídica do aprendiz, cuja faixa etária deveria situar-se entre 12 e 14 anos. O Código de Menores vedava o trabalho desses aprendizes em minas, pedreiras ou oficinas, eis que tal labor poderia coloca-los em risco. Também proibia o trabalho no período noturno (compreendido entre as 19 e as 5 h), bem como fixava a jornada laboral diária em, no máximo, 6 h. 26

Em 1932, Getulio Vargas outorgou o Decreto nº 22.042 27 que fixava em 14 anos a idade mínima para o trabalho nas fábricas.

Esse Decreto foi inovador por conter dispositivos inéditos de proteção ao trabalho do jovem e do adolescente. Nele, havia ainda a obrigatoriedade do empregador apresentar uma relação de empregados adolescentes. Também havia a exigência, para a admissão de menores de 18 anos, de apresentação da certidão de identidade, da autorização dos pais ou responsáveis, de prova de saber ler, escrever e contar, além de atestado médico. 28

Tais documentos permaneciam em poder dos empregadores para que fossem apresentados ao inspetor do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, se fossem requisitados. 29

Caso não houvesse como o menor comprovar o seu grau de escolaridade, ele deveria se submeter a um exame, no qual seriam avaliados os seus conhecimentos relativos à escrita, à leitura e aos cálculos elementares de matemática.

Em relação ao Código de Menores de 1927, observam-se algumas inovações nesse Decreto. Primeiramente, quanto à jornada de trabalho dos menores de ambos os sexos, o Decreto determinava que devesse ser igual à dos adultos.

Além disso, ele estabeleceu outro horário para o período noturno, que passou a ser das 22 às 5 horas (art. 8º). Também permitiu o trabalho, no período noturno, de rapazes maiores de 16 anos nos casos exigidos por interesses públicos ou por empresas. 30

Em consonância com o Decreto nº 22.042 e com o Código de Menores, a Consolidação das Leis do Trabalho, outorgada em 1943, ratificou a idade mínima em 12 anos a para inicio da vida laboral. 31

Essa idade foi elevada para 14 anos pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 7°, XXXIII. Nela, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre foi totalmente proibido para os menores de 18 anos.

Todas essas inovações, tanto do Código de Menores quanto do Decreto nº 22.042 e mesmo da CLT de 1943 indicam a prevalência da ideia de que, para o Estado, o menor constitui-se, ao mesmo tempo, em um valor econômico e um valor social

porque ele representa a base principal do povoamento do país, o futuro trabalhador, na lavoura, na indústria, no comércio, em todas as classes produtoras; e sua criação e educação, tornando se apto para o trabalho, dispensará em grande parte o imigrante, ao qual é preferível, por ter nascido e vivido em nosso meio físico e social, não precisando da adaptação necessária ao estrangeiro e ordinariamente falha neste. É um valor social para o Estado, porque na criança é que repousa a grandeza dos povos, a prosperidade das nações e o progresso da humanidade. A criação e a educação do menor interessam no mais alto grau a ordem pública, da qual o estado é o guarda. Por isso, ele deve intervir com sua proteção. 32

As atuais conquistas acerca do trabalho do menor são produto de discussões travadas nas primeiras décadas do século XX. Por exemplo, na Convenção nº 5 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) 33, ocorrida em 1919, ficou decidida a abolição do labor de menores de 14 anos de idade na indústria.

Atualmente, em nosso ordenamento jurídico, o jovem está autorizado a ingressar no mercado de trabalho a partir dos 16 anos. Tal conquista consolidou-se por meio da Convenção nº 138 da OIT. 34

Essa Convenção busca a elevação da idade mínima de admissão no emprego, tendo em vista o respeito ao desenvolvimento físico e mental do adolescente. Embora não determine uma idade para tal admissão, a Convenção nº 138 ressalva que, nas nações cuja economia e condições de ensino não estejam suficientemente desenvolvidas, estabeleça-se a idade de 14 anos como mínima, que é o que ocorre, por exemplo, no Brasil.

Nossa legislação pátria permite (excepcionalmente, é verdade) a admissão de jovens de 14 anos, desde que na condição de aprendizes.


2.A legislação e o trabalho juvenil

O escopo social de nosso ordenamento pátrio pode ser evidenciado já na Lei de Introdução do Código Civil que, em seu artigo 5º, determina que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

Entretanto, para efetivar essa finalidade social, incumbe ao Estado o ajuste das políticas públicas para brecar distorções, a fim de viabilizar o que a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 25, expressamente consignou: "todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar."

Para que todos, sem quaisquer privilégios, tenham acesso a esse padrão previsto na Declaração de 1948, existe na Constituição o chamado Princípio da Isonomia ("igualdade de todos perante a lei"), que compõe a igualdade formal prevista no art. 5º da Constituição Federal, a qual, por sua vez, se constitui em um dos pilares do regime democrático. Nesse sentido, aduz José CANOTILHO que:

Ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos. 35

Para Alexandre de MORAES, a igualdade formal indubitavelmente constituiu-se em importante avanço. Mas a resolução dos problemas sociais exige mecanismos de anulação, redução ou compensação das desigualdades sociais. 36

2.1. As Afirmative Actions

Uma das principais formas de obtenção dessa isonomia por meio da correção das distorções sociais são as chamadas ações afirmativas (afirmative actions) 37.

Também chamadas de políticas de ações afirmativas, elas consistem em medidas políticas destinadas a grupos sociais específicos. Tais medidas visam à concretização de direitos fundamentais sociais. 38

Os direitos sociais (também conhecidos por direitos de segunda geração ou de segunda dimensão) são aqueles concretizados por meio de ação efetiva do Estado. Podemos citar como principais a assistência social, saúde, educação, trabalho etc. Tais direitos são ditos como de cunho positivo porque pressupõem uma prestação estatal para a sua efetivação.

Entretanto, essa concretização demanda meios econômicos que são, quase sempre, escassos. Em vista dessa demanda por recursos, alguns doutrinadores, como José CANOTILHO 39, postulam que a efetivação dos direitos sociais deve ocorrer dentro de uma "reserva do possível". 40

Ou seja, a concretização dos direitos sociais pode ficar adstrita aos recursos disponíveis e aos limites de verbas orçamentárias do Estado.

Mas, embora o Estado não seja obrigado à prestação absoluta dos direitos sociais, precisa prover um quantum mínimo, sob pena de lesão desses direitos. É o que se conhece por "mínimo existencial" e corresponde ao conjunto de prestações estatais indispensáveis à existência humana digna. 41

Nas palavras do Desembargador Rui Stoco, da 4a Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo:

(...) se por um lado a cláusula da "reserva do possível" não pode ser invocada pelo Estado para o só fim de exonerar-se de obrigações constitucionais, aniquilação de direitos fundamentais, por outro, tem-se que os condicionamentos impostos por ela ao processo de concretização dos direitos de segunda geração, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, a razoabilidade da pretensão deduzida em face do Poder Público e, de outro a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas". 42

Em suma, temos que a reserva do possível é uma contingência de ordem econômica que não se pode ignorar e que se constitui em um limite objetivo às prestações positivas do Estado.

Entretanto, é preciso lembrar que, ao Estado incumbe a arrecadação de tributos. Por causa disso, a Constituição impõe a contrapartida de disponibilizar as condições materiais imprescindíveis à dignidade da pessoa humana, para assegurar a prestação do mínimo existencial, da qual não pode esquivar-se o Estado sob a alegação da reserva do possível. Tal é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que consubstanciou esse entendimento no Informativo nº 345, do qual extraímos o excerto a seguir.

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele - a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004). 43

Especialmente no que tange à proteção dos jovens e crianças inadmite-se a omissão do Estado por conta da reserva do possível, eis que a Constituição determina que, para eles, vige o preceito da prioridade absoluta.

Em face de ameaça de lesão àqueles a quem a Constituição conferiu a primazia da ‘absoluta prioridade’, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes preceituou a incontinenti interferência do Poder Judiciário, se provocado, a fim de garantir que o Poder Público cumpra o direito protetivo dos menores, que é constitucionalmente posto, como é possível verificar no trecho a seguir:

A Constituição da República, em seu artigo 227, consagra a prioridade absoluta para crianças e adolescentes para efetivação das políticas públicas. O que se extrai dos autos é que correta a decisão proferida, pois se encontram presentes os requisitos necessários ao deferimento do pedido liminar. É notória a insistente omissão do poder público em desobedecer aos preceitos constitucionais concernentes à educação, atitude que provoca sérios prejuízos às crianças e aos adolescentes e, consequentemente, à sociedade. Diante deste lamentável quadro, o Poder Judiciário pode e deve intervir, assim que provocado, para garantir aos menores o direito à educação, direito fundamental amparado constitucionalmente. 44 (grifo nosso)

Vale lembrar que nem mesmo para os idosos a Magna Carta utiliza a expressão "absoluta prioridade". Tal expressão só é usada, em nossa Constituição Federal, para designar a proteção que deve ser conferida ao menor.

Apenas na esfera da legislação infraconstitucional (Estatuto do Idoso) é que os idosos foram beneficiados com a previsão de prioridade absoluta e de proteção integral. Entretanto, esta proteção normativa é menos abrangente por não gozar de expressa previsão constitucional. 45

2.2.O Princípio da Prioridade Absoluta e a Teoria da Proteção Integral

A Prioridade Absoluta significa a criação das condições necessárias para que a proteção integral das crianças e adolescentes se concretize. O TST, em julgado ocorrido em abril desse ano, agasalhou esse preceito, eis que assim posicionou-se:

Apesar de as faltas para tratar da saúde de filho não estarem previstas expressamente nos artigos 131 e 473 da CLT, as da reclamante são justificadas, pois estava tratando da de sua filha que se encontrava em estado de saúde delicado, ou seja, a autora estava cumprindo com suas obrigações relativas ao pátrio poder (artigos 1.634 e 1.635 do Código Civil) e o dever de zelar pela criança com prioridade absoluta, de acordo com o princípio da proteção integral adotado nos artigos 227 da Constituição Federal e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90). Há precedente neste sentido.

(RR - 1516086-63.2005.5.01.0900, Relator Ministro: Roberto Pessoa.)

Data de Julgamento: 28/04/2010, 2ª Turma, Data de Publicação: 28/05/2010. 46

Além da primazia de condições e de atendimento, a Prioridade Absoluta implica, sobretudo, na implementação, pelo Estado, das políticas públicas que possibilitem a concretização da Proteção Integral, conforme previsto na Constituição, em seu artigo 227.

Há doutrinadores que postulam, inclusive, constituir-se o Princípio da Prioridade Absoluta aos direitos das crianças e adolescentes em um limite à discricionariedade do administrador público.

José Afonso da SILVA 47, por exemplo, afirma que o Princípio da Absoluta Prioridade situa-se dentre os princípios gerais informadores de toda a ordem jurídica nacional. Portanto, traduz-se ele em norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata.

No mesmo sentido posicionou-se o Supremo Tribunal Federal, por meio do Informativo nº 581, do qual transcrevemos, abaixo, um trecho:

Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à criança e ao adolescente – que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 227) – tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público, especialmente o Município, disponha de um amplo espaço de discricionariedade. 48

Até mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA claramente traça limites à discricionariedade da Administração Pública ao especificar, no parágrafo único de seu artigo 4º que, em obediência ao preceito da Prioridade Absoluta, aos adolescentes e crianças deve ser conferida:

Além de prever a o Princípio da Prioridade Absoluta em seu bojo, nossa Lei Maior também incorporou, em seu artigo 227, (caput e § 3º) 50 e também no art. 7º, inc. XXX e inc. XXXIII 51 a teoria da Proteção Integral.

O artigo 227, inclusive, é considerado como uma síntese dessa teoria, tendo sido recentemente alterado pela Emenda Constitucional nº 65, para acrescentar a expressão ‘ao jovem’ ao seu conteúdo.

A teoria da Proteção Integral consiste no entendimento de que as normas que tratam de crianças e adolescentes devem concebê-los como cidadãos plenos, mas que carecem de uma proteção prioritária por estarem ainda em processo de desenvolvimento físico, psicológico e moral.

Segundo Antonio Carlos Gomes da COSTA, tal teoria:

afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos 52

Esclarece-nos o insigne Nilson de OLIVEIRA NASCIMENTO 53 que a doutrina da Proteção Integral substituiu a Doutrina da Situação Irregular 54, que foi a doutrina vigente no Código de Menores.

Ao contrário dessa doutrina, a teoria da Proteção Integral baseia-se na promoção do pleno desenvolvimento mental e físico da criança e do adolescente, conferindo-lhe direitos civis, sociais, culturais, políticos e econômicos.

Essa teoria foi universalizada pela Convenção das Nações Unidas de Nova York e incorporou-se ao ordenamento pátrio por meio de emenda popular no ano de 1987. 55

Esse escopo protetivo da teoria da proteção integral foi também um dos pontos basilares que nortearam o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990).

O artigo nº 53 56 desse Estatuto prevê, por exemplo, a participação de crianças e de adolescentes na política estudantil, com vistas à crítica de currículo ou da organização escolar.

2.3. O direito à profissionalização

A teoria da Proteção Integral elevou o direito à profissionalização ao nível de direito fundamental, de que são titulares as crianças, os adolescentes e os jovens, consoante o que expressamente dispõe o caput do art. 227. da Constituição Federal:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização (...) 57

O cerne dessa teoria consiste na ideia de que a proteção peculiar dispensada aos menores e aos jovens deve provir de normas especiais que lhes assegurem o pleno desenvolvimento físico, moral e intelectual. No entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli:

o direito à educação – que representa prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 205), notadamente às crianças (CF, arts. 208, IV, e 227, 'caput') – qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num 'facere', pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional (...) 58

Importante lembrar que a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos 59, de 1948, já trazia, dentre seus princípios, a universalização do direito à educação e a generalização da instrução técnica e profissional:

Artigo XXVI - Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. 60

Orientação semelhante existe também no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais 61, que reconhece a importância da formação profissionalizante.

A Convenção nº 142 da Organização Internacional do Trabalho (O.I.T) 62, que trata do papel da orientação profissional e da formação profissional, e que foi ratificada pelo Brasil, dispõe, logo em seu artigo 1º que:

Art. 1º: "Todo membro deverá adotar e desenvolver políticas e programas coordenados e abrangentes de orientação profissional." 63

De acordo com o Prof. SUSSEKIND, a Convenção nº 142 da OIT "tem por finalidade melhorar a atitude do indivíduo de compreender o seu meio de trabalho e o meio social e de influir, individual e coletivamente, sobre eles" 64

A Recomendação da OIT nº 150, que complementa a Convenção nº 142, sugere que o processo de ensino associe à formação profissional sólidos conhecimentos de educação geral, como forma de garantir a construção de um conhecimento efetivo.

A profissionalização pode ser definida como um processo metódico em que se alternam experiências teóricas e práticas 65 com uma sucessão de tarefas gradualmente mais complexas e tendentes à aquisição de um trabalho qualificado ou de uma profissão.

A Recomendação 117 66 da Organização Internacional do Trabalho descreve-nos as características gerais da profissionalização, definindo-a como sendo uma formação de caráter sistemático e de longa duração, com vista ao exercício de uma profissão reconhecida, devendo-se, para tanto, levar em conta os seguintes fatores:

Importante ressaltar que o § 1º do art. 430. da CLT contém a exigência de um processo de ensino, além de prever a organização metódica das tarefas complexas desenvolvidas no ambiente de trabalho, decompostas em atividades teóricas e práticas (§ 4º do art. 428. da CLT).

Leciona o Professor ORÍS DE OLIVEIRA 67 que é possível considerar como ocupações que demandam formação técnico-profissional aquelas ocupações que se concretizam por meio da execução de tarefas complexas no ambiente de trabalho, e que exigem, para a sua qualificação, a aquisição de conhecimentos teóricos e práticos a serem ministrados por meio de processo educacional organizado em currículo próprio.

A respeito da Recomendação nº 117 da OIT, Arion Sayão ROMITA afirma que:

a formação não é um fim em si mesma, senão meio de desenvolver as aptidões profissionais de uma pessoa, levando em consideração as possibilidades de emprego e visando ainda a permitir-lhe fazer uso de suas potencialidades como melhor convenha a seus interesses e aos da comunidade. 68

Além disso, segundo ele, a profissionalização é um fenômeno que está relacionado com a legislação sobre o trabalho da criança e do adolescente, de sorte que é necessário que exista compatibilidade entre a legislação brasileira e as normas internacionais.

Oportuno resaltar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 69 (Lei 9.394/96) efetiva, em seu artigo 39, o direito constitucional à profissionalização, in verbis:

Artigo 39 – A educação profissional, integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva.

Parágrafo único. O aluno matriculado ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador em geral, jovem ou adulto, contará com a possibilidade de acesso à educação profissional.

Ressalte-se que, além de prever expressamente o direito à profissionalização, a Lei de Diretrizes e Bases também admite a atividade profissionalizante no âmbito da escola e da empresa. 70

Entretanto, em nosso ordenamento, incumbe ao ECA a regulamentação específica do direito à profissionalização e da proteção ao trabalho.

Sobre a autora
Amelia Cristina Oliveira Perche

Escrevente Judiciária do Tribunal de Justiça de São Paulo. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERCHE, Amelia Cristina Oliveira. O jovem e o mundo do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2765, 26 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18345. Acesso em: 22 nov. 2024.

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