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Boa-fé objetiva e função social dos contratos aplicadas à negociação e redação de instrumentos jurídicos paritários

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Agenda 08/03/2011 às 11:39

7.Jurisprudência aplicável ao tema

Assim, para que atue positivamente no mercado, o sistema judiciário deve se mostrar eficiente, ou seja, capaz de produzir, a baixo custo, decisões justas, rápidas e previsíveis, sob pena de ser cada vez mais substituído por outros meios de solução de controvérsias que se mostrem mais aptos, como a arbitragem, por exemplo.

Pedro Paulo Moreira Rodrigues

Ao longo do desenvolvimento deste trabalho, verificamos que a aplicação das quatro colunas magistrais do Código Civil (eticidade, socialidade, operacionalidade e confiança), além das cláusulas gerais de boa-fé objetiva e função social dos contratos, são ferramentas adequadas para que as partes produzam contratos eficientes e eficazes, visando à auto-suficiência.

No entanto, em determinadas situações, reconhecemos que o procedimento judicial será inevitável, seja porque as partes (ou apenas uma delas) ainda não estejam preparadas para esta nova era dos contratos; seja porque o advogado ainda não tenha se dado conta da sua função instrumentalizadora; seja porque a lei não permita transações em matéria de direitos indisponíveis; enfim, haverá casos que será imprescindível socorrer-se do Judiciário.

Nessas hipóteses, há que se levar em conta que o arsenal de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados disponibilizados pelo Código Civil estão sendo aplicados pelos magistrados, como veremos nos julgados abaixo selecionados. Não se trata de "letra morta".

Além disso, há notória tendência dos tribunais a estimular a conciliação judicial, onde não há perdedores ou ganhadores, mas ex-combatentes satisfeitos por terem resolvido seus impasses.

Exemplo disso são os mutirões de negociação organizados pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo [164], bem como o prêmio "Conciliar é Legal" lançado pelo Conselho Nacional de Justiça [165]. São iniciativas que demonstram que é possível transacionar e resolver conflitos, mesmo na esfera litigiosa, sem o necessário "ganha-perde" típico da decisão judicial.

Desse modo, selecionamos três julgados que demonstram como estão sendo aplicados os princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos no Judiciário.

7.1. Boa-fé objetiva, comportamentos contraditórios e quebra de confiança:

Processo nº 990.10.293417-9

Classe: cautelar inominada

Assunto: Direito Civil – Coisas

Origem: Comarca de São Paulo/Foro Central Cível/ 26ª Vara Cível

Distribuição: 26ª Câmara de Direito Privado

Relator: Carlos Alberto Garbi

Publicação no site do TJ/SP: 28.06.10

"... Essa permissão concedida pela requerida para a comercialização de outras marcas, ainda que não expressa, firma um comportamento capaz de gerar a confiança da outra parte na licitude das suas atividades, comportamento que, contrário às disposições escritas do contrato, altera as obrigações assumidas. É necessário lembrar que ‘os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé’ (art. 422 do CC). É a boa-fé objetiva que impõe aos contratantes deveres de solidariedade, cooperação e lealdade que protegem a confiança, valor fundamental nas relações contratuais, proibindo comportamentos contraditórios (nemo potest venire contra factum proprium) e o exercício inadmissível de posições jurídicas. Entre essas posições inaceitáveis está a suppressio, designação latina atribuída por MENEZES CORDEIRO a verwirkung dos alemães, situação do direito que, não tendo sido em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não pode mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa-fé’. A melhor doutrina conduz a suppressio à proibição do venire contra factum proprium, pela qual, segundo MENEZES CORDEIRO, ‘o titular do direito, abstendo-se do exercício durante um certo lapso de tempo, criaria na contraparte, a representação de que esse direito não mais seria atuado; quando, supervenientemente, viesse agir, entraria em contradição’ (Da Boa Fé no Direito Civil, ed. Almedina, Coimbra, 1997, p. 808-809). Explica o jurista português que a suppressio é apenas ‘o subproduto da formação, na esfera do beneficiário, seja de um espaço de liberdade onde antes havia adstrição, seja de um direito incompatível com o do titular preterido, seja, finalmente, de um direito que vai adstringir outra pessoa por, a esse mesmo beneficiário, se ter permitido atuar desse modo, em circunstâncias tais que a cessação superveniente da vantagem atentaria contra a boa-fé’ (op. cit., p. 824). São lições que, à luz do art. 422 do Código Civil Brasileiro, podem ser aplicadas sem restrição ao caso em exame. A requerida não se incomodou em momento algum com a comercialização de outras marcas pela autora e com o seu comportamento abriu um espaço de liberdade contratual que não pode ser agora restrito, sob pena de violação da confiança e conseqüentemente da boa-fé que se exige dos contratantes, muito menos pode se aproveitar da sua consciente omissão para pleitear o desfazimento de contrato que era executado plenamente pelas partes a despeito do fato..." (Grifo nosso)

No caso em comento, o juiz ressaltou a aplicação da boa-fé objetiva por meio da quebra de confiança, pois a exclusividade na distribuição de uma marca de moto, que constou no contrato firmado entre as partes, foi ao longo do tempo sendo preterida, de modo que a parte credora da obrigação, com o seu comportamento permissivo durante vários anos, imbuiu na parte devedora a noção de que não estava em inadimplemento.

Portanto, o credor não poderia ter permitido a não exclusividade durante longos anos, para somente depois, em contradição ao comportamento anterior, e no momento que melhor lhe conviesse, solicitar quebra de contrato pelo descumprimento da cláusula respectiva.

Há que se observar que a conduta reiterada das partes, sem qualquer tipo de objeção de lado a lado, modificou o acordo escrito, exemplo da função integrativa da boa-fé objetiva (vide item 2.3."b" e "c" acima).

7.2. Função social dos contratos

Nº do Acórdão: 24329

Órgão Julgador: 3ª Câmara Cível – Tribunal de Justiça do Estado do Paraná

Tipo de Documento: Acórdão

Comarca: Curitiba/PR

Processo: 0140828-2

Recurso: Apelação Cível

Relator: Abraham Lincoln Calixto

Revisor: Nério Spessato Ferreira

Parecer: PROVIDO PARCIALMENTE

Julgamento: 16/03/2004

Ramo de Direito: Civel

Decisão: Unânime

EMENTA: "APELAÇÃO CÍVEL. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. RESCISÃO DE CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. VALOR DA INDENIZAÇÃO. REDUÇÃO PARA MONTANTE JUSTO, ASSEGURANDO A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 413 E ARTIGO 2.035, PARÁGRAFO ÚNICO, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL VIGENTE. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. I. Nas causas que versam sobre matéria de fato e de direito, dispensável se torna a realização de audiência de instrução e julgamento, mormente quando ausentes nos debates, questões de fato e relevantes que possam impedir o julgamento antecipado do processo, no estado em que se encontra. O procedimento deve primar por dar a maior celeridade possível ao processo, procurando sempre levar a demanda para o objetivo final que é a sentença de mérito, evitando atos procrastinatórios e inúteis, prestigiando os princípios da economia, impulso oficial, instrumentalidade e celeridade do processo. É dever do magistrado, verificadas estas circunstâncias, assim proceder, podendo dispensar a audiência e lançar nos autos, desde logo, a decisão de mérito. II. Aplica-se, ao caso dos autos, a regra do artigo 924, do Código Civil de 1916, que corresponde ao vigente artigo 413, para determinar a perda de 25% (vinte e cinco por cento) do valor pago pelo apelante em favor do apelado. III." Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos." (artigo 2.035, parágrafo único, do novo Código Civil)" [166] (Grifo nosso)

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No caso em comento, o magistrado utilizou a função limitadora da cláusula geral, modificando o contrato (no caso, a cláusula de indenização), vez que o pactuado estava em desacordo com os preceitos da função social (vide item 3.3. "b" acima).

7.3. Boa-fé objetiva e deveres anexos (deveres de conduta)

Classe do Processo: APELAÇÃO CÍVEL 2002 01 1 045357-6 APC - 0045357-63.2002.807.0001 (Res.65 - CNJ) DF

Registro do Acórdão Número: 181488

Data de Julgamento: 13/10/2003

Órgão Julgador: 4ª Turma Cível Tribunal de Justiça do Distrito Federal

Relator: MARIO MACHADO

"O princípio da boa-fé objetiva, consagrado na legislação consumerista, e, agora, também, no Código Civil (art. 422), entre outras, na moderna teoria contratual, possui a função de fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os denominados deveres anexos. São eles os deveres de informação, de cooperação e de cuidado. Interessa, no caso, o segundo, o de cooperação. Por este dever, o contratante, na execução do contrato, tem a obrigação de colaborar para o cumprimento do contratado, conforme o paradigma da boa-fé objetiva, agindo com lealdade e transparência, não obstruindo ou impedindo a normal consecução das finalidades contratuais." [167] (Grifo nosso)

Neste julgado, podemos observar a aplicação dos deveres de conduta da boa-fé objetiva, conforme analisamos no item 2.4 acima. Ressaltamos, assim, a necessidade das partes observarem tanto as cláusulas escritas no contrato, como as não escritas, pois a moderna magistratura está atenta a esses princípios.


8.O contrato sustentável

Para se conter um mal, portanto, não basta apenas apontar remédios ou soluções (etapa final de um conflito), mas, de igual sorte, passar pelo desempenho de uma análise mais ampla e complexa, a começar por um sistema de prevenções ou de como se evitar o nascimento de um litígio judicial (anterioridade às fases de um conflito). (grifo original)

Lucio Flávio J. Sunakozawa

Atualmente tudo é ou deve ser sustentável. Fala-se do planeta sustentável [168]; da economia sustentável; do projeto sustentável; do consumo sustentável; da empresa sustentável [169]; e até mesmo existem cursos voltados para a formação de líderes da sustentabilidade [170].

Mas, afinal, o que é sustentabilidade? Fernando Almeida [171] nos responde essa pergunta da seguinte forma:

"O conceito de desenvolvimento sustentável, que tomou forma ao final dos anos 80, após décadas de degradação socioambiental sem precedentes e foi consagrado em 1992, na Rio-92, continua até hoje mal compreendido. Sustentabilidade significa sobrevivência, entendida como a perenidade dos empreendimentos humanos e do planeta. Por isso, o desenvolvimento sustentável implica planejar e executar ações – sejam elas de governos ou de empresas, sejam elas locais, nacionais ou globais –, levando em conta simultaneamente as dimensões econômica, ambiental e social. Mercado + sociedade + recursos ambientais: esta é a chave para a boa governança." (Grifo nosso)

Originalmente, o termo "sustentável" estava mais afeito à área da Ecologia e do Direito Ambiental, mas atualmente, seus reflexos permeiam a sociedade como um todo, pois o desenvolvimento sustentável (planeta, consumo, empresa, etc.) é uma preocupação eminentemente social.

O autor acima citado vincula a sustentabilidade à "perenidade dos empreendimentos humanos", o que, a nosso ver, só será possível através de uma sociedade que imprima, através de suas pegadas neste mundo, valores éticos e sociais.

Como vimos, objetivamos aqui a análise do impacto da boa-fé objetiva e da função social dos contratos na negociação e redação de instrumentos paritários, mas entendemos que nossas reflexões não deverão restar confinadas somente nos efeitos estritamente jurídicos destes institutos.

Conforme já tivemos a oportunidade de demonstrar, entendemos ser necessário desenvolvermos competências meta-jurídicas para a criação de novos modelos de realização do Direito, que se coadunem com a eticidade e socialidade festejadas pelo atual Diploma Civil.

Desta feita, vislumbramos o conceito de contrato sustentável, como ferramenta para trilhar esses novos caminhos, modificando o rastro que deixamos nesse mundo. Para tanto, acreditamos que tais contratos deverão sustentar as seguintes características:

a)Trata-se de instrumentos norteados pela boa-fé objetiva e pela função social dos contratos, estampando todos os deveres de conduta daí decorrentes;

b)Serão instrumentos fruto de uma negociação equilibrada, e pautada pela confiança;

c)Serão gerados por drafters focados em adequadas técnicas de redação, voltadas para a celebração de instrumentos claros e objetivos;

d)Serão ferramentas imprescindíveis para a diminuição dos custos de transação, colaborando para o desenvolvimento da livre iniciativa, e da economia como um todo;

e)Prescindirão do Judiciário para a resolução dos seus conflitos, vez que carregarão consigo rituais de mediação e conciliação adequados para a resolução amigável das possíveis demandas; e

f)Serão, portanto, auto-sustentáveis, na medida em que propiciarão às partes condições favoráveis para que alcancem o adimplemento natural das obrigações.

Numa primeira leitura, acreditamos que o leitor possa tecer julgamentos precipitados acerca da sustentabilidade do "contrato sustentável" num país em que a corrupção revela seus artifícios em todas as esferas sociais.

Acreditamos, contudo, que é preciso realizar um esforço para imprimir nos instrumentos paritários os conceitos desenvolvidos neste estudo, para que, daqui a algumas décadas, possamos colher os frutos de uma sociedade mais ética. Trata-se de um trabalho de semeadura da eticidade, socialidade e de prevenção do conflito.

Acreditamos também que se trata de uma questão de tempo.

Na década de 80, por exemplo, era impensável conferir ao consumidor os direitos hoje efetivamente praticados. Contudo, já se passaram 20 anos desde a promulgação da lei consumerista.

O mesmo efeito pode ser observado com a Constituição de 1988, que agora com seus 22 anos de idade, ainda se esforça para esparramar no mundo jurídico a socialidade premente em seus artigos.

O atual Código Civil tem apenas oito anos de vigência, de modo que acreditamos piamente que seus preceitos ainda renderão bons frutos, em prol de uma sociedade brasileira mais justa e menos corrupta.

Oxalá toda a comunidade jurídica seja propagadora do Contrato Sustentável!

Sobre a autora
Karla de Souza Escobar Coachman

Advogada formada pela USP, pós-graduada pela rede UNIDERP/LFG, com título de especialista em contratos pelo CEU, além de diversos cursos de média e curta duração, inclusive pelo GVLAW.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COACHMAN, Karla Souza Escobar. Boa-fé objetiva e função social dos contratos aplicadas à negociação e redação de instrumentos jurídicos paritários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2806, 8 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18643. Acesso em: 23 dez. 2024.

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