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O direito geral da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana: estudo na perspectiva civil-constitucional

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7. A DIGNIDADE HUMANA COMO CENTRO DO ORDENAMENTO JURÍDICO E DO DIREITO GERAL DA PERSONALIDADE

A dignidade humana foi erigida a princípio fundamental na Constituição Federal de 1988 (art. 1º, III), como bem observa Rosenvald (2005, p. 35) a colocação deste princípio diretamente no título um da Constituição determina a sua precedência interpretativa sobre os demais capítulos constitucionais, não sendo apenas mera coincidência a sua localização topográfica. Ainda pode se acrescentar que este princípio incide sobre todo o ordenamento jurídico.

Na lição de Elimar Szaniawski (2005, p. 139) esse princípio considerado como "mãe", irradia todos os seus direitos fundamentais da pessoa em direção ao poder público, aos particulares, sejam pessoa jurídicas ou naturais, tendo como escopo e destinatário a proteção da pessoa humana, ainda exercendo uma determinada função social pela qual todos os direitos postos devem ser interpretados à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. No mesmo sentido Daniel Sarmento (2006, p. 86) ensina que

(...) é possível afirmar que a dignidade da pessoa humana é o princípio mais relevante da nossa ordem jurídica, que lhe confere unidade de sentido e de valor, devendo por isso condicionar e inspirar a exegese e aplicação de todo o direito vigente, público ou privado. Além disso, o princípio em questão legitima a ordem jurídica, centrando-a na pessoa humana, que passa a ser concebida como "valor fonte fundamental do Direito".

A grande dificuldade está na delimitação conceitual da dignidade da pessoa humana, pois este é um conceito bastante polissêmico, amplo e abstrato. Porém faz-se necessária a sua delimitação, haja vista que uma abstração exagerada desse conceito pode prejudicar a eficácia do referido princípio dificultando a sua aplicação nos casos concretos. [15] É por isso que a discussão sobre o conceito e delimitação conceitual, mesmo sendo tarefa árdua, não pode ser renunciada pelos operadores do direito.

Para Sarlet (2010, p. 51), não há como se desvencilhar da necessidade de uma conceituação de dignidade, pois as decisões proferidas em uma jurisdição constitucional deverá sempre ser extraídas consequências jurídicas.

A concepção de dignidade humana remonta-se ao pensamento cristão e à filosofia da antiguidade clássica. Dentro da ideologia cristã, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, não podendo por esse motivo ser transformado em objeto ou instrumento de outras ações humanas. (MENDONÇA, 2006, p. 8).

Na concepção clássica, a dignidade era tida como um privilégio condizente com a posição social ocupada pela pessoa na sociedade, sendo portanto uma dignidade modulável e quantificável. Em Roma, principalmente a partir das idéias de Cícero, a dignidade passou a se desvincular à posição social para adquirir um conteúdo moral de acordo com as virtudes do indivíduo. (SARLET, 2010, p. 32-33)

Um dos maiores precursores sobre o estudo da dignidade humana é o filosofo Immanuel Kant. Este estudioso preconiza que o princípio sobre analise se relaciona com a maneira que é tratado o ser humano. Devido à sua autonomia da vontade encontrada nos seres racionais, a pessoa nunca poderia ser vista simplesmente como meio ou como um objeto, mais sim como um fim em si mesmo, o objetivo. Em suas próprias palavras, Kant (2006, p. 65) ressalta que

(...) no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo o preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade.

Desse modo, o referido autor chega à seguinte conclusão:

(...) todo ser racional - existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Em todas as suas ações, pelo contrário, tanto nas direcionadas a ele mesmo como nas que o são a outros seres racionais, deve ser ele sempre considerado simultaneamente como fim. (KANT, 2006, p. 58).

É com base nos estudos de Kant que a doutrina tem fundamentado a maioria dos conceitos sobre dignidade humana. Entretanto esta ideia é bastante individualista, pois privilegia exageradamente o homem como o centro de tudo, excluindo o seu contato com a natureza e com as outras pessoas não encontrando espaço para a solidariedade. Como bem observa Lorenzetti (1998, p. 145), o homem como sendo considerado o centro do ordenamento jurídico não pode ser algo absoluto e incontestável. Embora seja o primeiro ponto referência da lei, ele não é o único, até porque tal ideia conduz a um individualismo extremado desconsiderando prejudicialmente outros bens jurídicos tutelados.

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Aquele tipo de concepção individualista, dita insular, não satisfaz os imperativos de uma dignidade humana fundada em uma nova ótica social que surge principal no segundo pós-guerra, da qual deriva um postulado de intersubjetividade de onde se retira a capacidade do homem de se relacionar com outros, de interagir e reconhecer no outro um semelhante dotado de igual dignidade e que merece respeito.

Dessa maneira, como alude Azevedo (2004, p. 5),

(...) a concepção própria de uma nova ética, fundada no homem como ser integrado à natureza, participante especial do fluxo vital que a perpassa há bilhões de anos, e cuja note específica não está na razão e na vontade (...), e sim, em rumo inverso, na capacidade do homem de sair de si, reconhecer no outro um igual, usar a linguagem dialogar e, ainda, principalmente, na sua vocação para o amor, como entrega espiritual a outrem. [16]

Ainda pode-se apresentar, consoante Elimar Szaniawski (2005, p. 143), que a dignidade pode ser entendida sobre dois aspectos. Quanto ao primeiro, representa uma qualidade essencial e substancial da pessoa humana e concernente ao segundo, expressa o fundamento de uma ordem política e social, atuando com a fonte de outros direitos. A esse respeito, o princípio da dignidade humana funciona como um princípio gerador de outros direitos, em especial os direitos fundamentais materiais e também como fundamento do direito geral da personalidade, podendo ser imposto tanto ao poder público como também vincular as relações particulares, inclusive limitando espécies de liberdades públicas.

Diante o exposto, embora não seja pacífica na doutrina jurídica a delimitação atual do princípio da dignidade humana, é possível identificar dentre as várias definições elementos comuns, dos quais podemos citar: "a) a preservação do aspecto orgânico da pessoa (proteção da vida, integridade física, etc.); b) proteção do relacionamento social da pessoa e c) o reconhecimento da necessidade da preservação de condições materiais mínimas para a subsistência." (GARCIA, 2007, p. 133).

À guisa de ilustração, Azevedo elenca como postulados do princípio da dignidade: em primeiro lugar a intangibilidade da vida humana, desencadeando de forma hierárquica o respeito à integridade psicofísica, o direito às condições materiais mínimas para a sobrevivência, a liberdade e à igualdade. [17]

A grande diferença da teoria do referido autor é primeiramente considerar a intangibilidade da vida como aspecto absoluto do princípio e posteriormente hierarquizar os postulados derivados desta intangibilidade.

7.1 O Conteúdo Normativo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Acepção de Maria Celina Bodin de Moraes

Para melhor analisar a definição jurídica da dignidade humana será decomposta a posição de Maria Celina Bodin de Moraes, que reconhece neste princípio quatro substratos normativos essenciais: a igualdade; a liberdade; a solidariedade social; e a proteção da integridade psicofísica da pessoa.

O direito à igualdade não se contenta somente com a igualdade formal, recorrendo-se também a isonomia material. Este tipo de igualdade implica em tratar os desiguais na medida em que estes possam ser elevados à verdadeira posição de isonomia em relação às outras pessoas.

Quanto ao direito da liberdade, este é reconhecido principalmente na esfera da intimidade e da vida privada da pessoa e deve ser balanceado em relação à solidariedade social. Implica na livre vontade e autodeterminação.

A solidariedade social define como prioridade a construção de uma sociedade que propicie uma existência digna a todos, com justiça, liberdade, sem a marginalização de seus membros. Nas palavras da autora, "o princípio constitucional da solidariedade identifica-se, assim, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados" (MORAES, 2009, p. 114).

Não se pode, no entanto, confundir o princípio da solidariedade "(...) como resultante de ações eventuais, éticas ou caridosas, pois se tornou um princípio geral do ordenamento jurídico, dotado de força normativa e capaz de tutelar o respeito devido a cada um." (MORAES, 2009, p. 115-116).

Por sua vez, a integridade psíquica e física da pessoa é um dos pedestais do direito geral da personalidade do qual deriva todos os desdobramentos da realização da pessoa na sociedade, compreendendo também a sua existência digna. Em suma,

(...) quando se reconhece a existência de outros iguais, daí dimana o princípio da igualdade; se os iguais merecem idêntico respeito à sua integridade psicofísica, será preciso construir o princípio que protege tal integridade; sendo a pessoa essencialmente dotada de vontade livre, será preciso garantir, juridicamente, esta liberdade; enfim fazendo ela, necessariamente, parte do grupo social, disso decorrerá o princípio da solidariedade social. (MORAES, 2006, p. 119).

Ressalte-se ainda que todos os postulados do princípio da dignidade humana apontados pela autora são relativizados, não podendo em nenhum momento serem considerados de forma absoluta ou com preponderâncias antes de analisar o caso concreto.

7.2 O Conceito de Dignidade da Pessoa Humana na Doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet

Dentre os maiores expoentes e pesquisadores do princípio da dignidade da pessoa humana no Brasil está o Prof. Dr. Ingo Wolgang Sarlet. Devido a sua grande importância no cenário nacional, a sua concepção do referido princípio também será analisada.

Nos estudos do referido do autor fica evidente a influência de Kant na sua delimitação conceitual de dignidade da pessoa humana. Sarlet reconhece a inerência da dignidade a cada ser humano, independentemente de suas ações serem dignas ou indignas, sendo que este é um dos grandes problemas de se tentar conceituar o princípio, pois trata-se de um aspecto mais geral da existência humana e não de situações específicas como os direitos fundamentais. Para o autor a dignidade é uma

(...) qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade – como já restou evidenciado – passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito da dignidade, na sua condição jurídico normativa. (SARLET, 2010, p. 49-50).

Continuando nas suas explanações, o autor consagra a relatividade do princípio da dignidade da pessoa humana, contrapondo-se a um conteúdo que muitas vezes era tido como fixo e universal. (SARLET, 2010, p. 55). Portanto um conceito de dignidade é sempre extraído de um determinado contexto cultural e está em constante construção e reconstrução.

Quanto à relação da dignidade com o Estado, Sarlet (2010, p. 55) aduz que o princípio

(...) assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade (...).

Sobre essa dupla função do Estado, temos que a dimensão prestacional reclama um Estado que guie suas atitudes sempre buscando a concretização da dignidade, enquanto na dimensão defensiva, o Estado é o responsável pela proteção e assistência da dignidade frente a si próprio e também nas relações particulares.

Seguindo em seu raciocínio, Sarlet defende uma dignidade individualmente teleológica. A Dignidade é um atributo da pessoa humana individualizada, contrapondo-se a uma "dignidade humana" em sentido global [18], embora devemos reconhecer na dignidade seu aspecto social e intersubjetivo, contemplando a vida em comunidade dos seres humanos. (SARLET, 2010, p. 60-61).

Antes de chegar em seu conceito de dignidade da pessoa humana, Sarlet ressalta que o princípio possui uma contextualização histórico-cultural. Assim não é possível encontrar um conceito que seja universal devido às especificidades de cada cultura. (SARLET, 2010, p. 65). Feito isto, o autor concebe a dignidade da pessoa humana como

(...) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 2010, p. 70).

Em uma análise da teoria de Sarlet, Rafael Mendonça (2006, p. 27-28) consegue identificar quatro dimensões básicas. A primeira delas é a dimensão ontológica, concernente à uma característica da própria pessoa em sentido biológico o que a torna um sujeito livre e portador de direitos fundamentais.

A segunda é a dimensão pessoal, pela qual o ser humano como possuidor da dignidade, individualizadamente falando, não pode ser reduzido a um instrumento de uma coletividade ou de um bem maior. O núcleo da dignidade é inviolável.

A dimensão cultural coletiva diz respeito à abertura axiológica de um conceito histórico-cultural que sofre influências no tempo e no espaço, ou seja, está em constante processo de construção e reconstrução de acordo com a pluralidade e diversidade de valores em uma sociedade. Embora seja considerada relativa a dignidade possui caracteres universais, enquanto outros variam de uma sociedade para outra.

Por último, a dimensão defensiva e prestacional do Estado indica que este deve tanto trabalhar pela inviolabilidade da dignidade da pessoa humana como também proporcionar o seu desenvolvimento através das condições necessárias para seu exercício pleno.

Quanto à relativização da dignidade da pessoa humana, o autor admite a possibilidade, entretanto ressalva que dentro desta maior ou menor relativização da dignidade, de acordo com o caso concreto, existe um núcleo essencial de caráter absoluto baseado na doutrina kantiana. Dessa maneira deve-se adotar de forma absoluta o imperativo que nenhuma pessoa pode ser mero objeto para se alcançar determinado fim.

Sobre os autores
Ricardo Padovini Pleti

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG.Mestre em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Minas Gerais.Doutorando em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Rodrigo Pereira Moreira

Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PLETI, Ricardo Padovini; MOREIRA, Rodrigo Pereira. O direito geral da personalidade e o princípio da dignidade da pessoa humana: estudo na perspectiva civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2854, 25 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18968. Acesso em: 22 nov. 2024.

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