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A política das portas abertas nas reuniões de órgãos públicos colegiados: estudo do caso CTNBio

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Agenda 01/06/2011 às 07:55

3 OS COLEGIADOS NO PODER PÚBLICO

3.1 Compartilhando responsabilidades

Os centros de decisão que atingem mais concretamente a vida das pessoas são os que lidam com a formulação de políticas para a prestação de serviços públicos. A partir das pautas mínimas estabelecidas pela Constituição, a criação e a organização de serviços públicos envolvem decisões alocativas.

A presença da coletividade interessada na formulação de ações governamentais legitima de forma bastante eficiente o processo decisório e evita que o cumprimento dos programas legais e constitucionais se dê por puro constrangimento.

O modelo de deliberação em conjunto afasta a solidão do gestor que poderia ver-se obrigado a decidir, por exemplo, se deve direcionar mais recursos para ações preventivas ligadas à saúde infantil ou à ampliação da oferta de medicamentos para portadores de doenças graves. A responsabilidade partilhada cria um contexto favorável à livre reflexão, mas depende de que os decisores possuam um grau de independência compatível com o impacto do seu trabalho no respectivo setor de atuação.

Além do mais, é de fácil compreensão que se está a tratar de esquema concretizador da inclusão preconizada por Robert Dahl como condição da plena democracia.

No âmbito do texto constitucional, podem-se observar diversas fórmulas para a participação dos cidadãos:

- nos órgãos públicos colegiados de defesa de interesses profissionais ou previdenciários, trabalhadores e empregadores (art. 10);

- no planejamento municipal, associações representativas da coletividade (art. 29, XII);

- nos serviços públicos da administração direta e indireta, os usuários (art. 37, §3º);

- nas audiências públicas das comissões do Legislativo, as entidades da sociedade civil (art. 58, § 2º, II);

- nas ações de seguridade social, trabalhadores, empregadores e aposentados (art. 194,VII);

- nas ações e serviços públicos de saúde, a comunidade (art. 198, III);

- na formulação das políticas e controle das ações de assistência social, em todos os níveis, as organizações representativas (art. 204);

- na promoção e incentivo à educação, a sociedade (art. 205);

- na proteção do patrimônio cultural brasileiro, a comunidade (art. 216, § 1º);

- nos programas de assistência integral à saúde das crianças e adolescentes, as entidades não governamentais (art. 227, §1º).

Em quase todos esses programas, a legislação infraconstitucional cuidará de institucionalizar o exercício do respectivo poder, criando órgãos colegiados com as atribuições que vão desde a formulação de políticas públicas, em atividade normativa que vincula inclusive a atuação do Estado, até a fiscalização de sua execução.

O padrão para a composição desses colegiados é a inserção de membros do poder público responsável pela área de atuação específica e de cidadãos que podem ser eleitos, indicados pela sociedade civil organizada ou mesmo nomeados por uma autoridade estatal.

Este esquema de participação popular nas questões de Estado não se restringe à formulação de políticas públicas de prestação de serviços diretos à sociedade. Ele também é encontrado nas instâncias que deliberam sobre questões institucionais e de segurança. É o caso do Conselho da República, que deve ser convocado para se pronunciar sobre intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio e questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas (art. 90 da Constituição).

Nesse ponto, convém inserir um parêntese para refletir sobre a possibilidade de se abrirem os encontros do Conselho da República a qualquer do povo. Decerto, não convém para a segurança nacional que sejam presenciadas as conversações daquele grupo. E essa já é razão mais que suficiente para excepcionar o regime constitucional de publicidade.

O órgão sob análise também lida com um aspecto de segurança, a biossegurança. Suas atribuições se voltam para atividade desenvolvida pelo setor privado. Embora produzir alimentos não se trate de serviço público, é dispensável explicar por que há interesse social no seu controle.

A responsabilidade sobre biossegurança até poderia ter sido deixada unicamente nas mãos de agentes públicos. Entretanto, dada a delicadeza da matéria, a profundidade e perenidade das consequências das decisões a serem tomadas, andou bem a legislação ao determinar que a sociedade civil faça parte do jogo, equilibrando eventuais tendências do governo.

3.2 Controle social e aplicação do regime administrativo da publicidade às reuniões

No item anterior, falou-se sobre participação popular para traçar um panorama dos órgãos colegiados do poder público. Entretanto, não é exatamente sobre ela que recai o problema desta pesquisa. Explica-se.

A participação popular é operada por um modelo normativo anterior à tomada de decisões pelos órgãos públicos. A lei que cria o órgão prevê que sua composição incorpora pessoas que não são agentes públicos, mas que detêm conhecimento ou representação em alguma área. Isso não está em discussão. O que está em questão é o controle social que se deseja realizar sobre a atividade do órgão.

Controle social é a fiscalização que toda a população exerce sobre as deliberações tomadas pelo poder público e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico vigente e com seus próprios interesses. Trata-se, pois, de exercício da cidadania posterior ao processo decisório. É uma faculdade de todos os cidadãos, independente de qualificações ou títulos. Aqui, sim, está-se a falar de direito público subjetivo, que pode ser exercitado individual ou coletivamente por diversos instrumentos.

Apesar de não tão sutil, a diferenciação entre participação popular e controle social esboçada por Vanderlei Siraque [39] é rara entre os doutrinadores mais generalistas e certamente de difícil compreensão por pessoas não ligadas ao Direito. A ela se remete durante a discussão na CTNBio, quando um dos interlocutores sugere que a decisão pela reunião fechada seja questionada na Justiça, não com impugnação incontinente.

Neste momento, calha operar a distinção entre fato e ato administrativo.

Dizer que os debates ocorridos num órgão público precedem a decisão que será tomada significa perceber que um fato administrativo vem antes da edição de um ato administrativo. Para aclarar o conceito de fato administrativo, convocam-se as lições de José dos Santos Carvalho Filho:

A idéia de fato administrativo [...] não leva em consideração a produção de efeitos jurídicos, mas, ao revés, tem o sentido de atividade material no exercício da função administrativa [...]. Enfim, a noção indica tudo aquilo que retrata alteração dinâmica na Administração, um movimento na ação administrativa.

[...] o fato administrativo não se consuma sempre em virtude de algum ato administrativo. Às vezes, decorre de uma conduta administrativa, ou seja, de uma ação na Administração, não formalizada em ato administrativo. [40]

Daí poder-se entender que não há utilidade alguma para o controle social que as reuniões sejam abertas ao público, já que nenhuma das opiniões parciais lá emitidas produz qualquer efeito. Apenas o ato jurídico emanado do colegiado, a decisão propriamente dita, teria alguma importância para a sociedade em geral. Somente ela poderá ser considerada em eventual demanda judicial que se debruce sobre interesses afetados pelo trabalho da comissão.

Além desse aspecto utilitarista, ponderar a diferença entre fato administrativo e ato administrativo instiga outra indagação, de natureza dogmática: o regime jurídico da publicidade dos atos administrativos alcança os fatos administrativos? Não é o que se encontra dito pela lei ou pela doutrina.

Na falta de uma lei que sistematize o regime jurídico administrativo, a Lei 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, é uma das que contém normas (sobre competência, delegação, validade geral dos atos administrativos etc.) que se irradiam para além do instituto mencionado. A interpretação sistemática do Direito permite que se utilizem vários dispositivos dela com uma função integradora. Eis algumas diretrizes pertinentes:

Art. 2º [...].

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

[...]

V - divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição;

Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:

I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações;

II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;

III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente;

[...]

Art. 16. Os órgãos e entidades administrativas divulgarão publicamente os locais das respectivas sedes e, quando conveniente, a unidade fundacional competente em matéria de interesse especial.

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Para completar, traz-se um recorte do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (Decreto 1.171/94):

VII - Salvo os casos de segurança nacional, investigações policiais ou interesse superior do Estado e da Administração Pública, a serem preservados em processo previamente declarado sigiloso, nos termos da lei, a publicidade de qualquer ato administrativo constitui requisito de eficácia e moralidade, ensejando sua omissão comprometimento ético contra o bem comum, imputável a quem a negar.

VIII - Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria pessoa interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão ou da mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto mais a de uma Nação.

E outro da Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92):

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

[...]

IV - negar publicidade aos atos oficiais;

Coleta-se anotação sobre o desdobramento do princípio da publicidade de obra dedicada à transparência administrativa:

O direito de acesso contemplado na Constituição Federal é elementar ao princípio da publicidade administrativa (art. 37), radicado também no catálogo dos direitos fundamentais, em razão da extensão da cláusula do devido processo legal e da excepcionalidade das restrições à publicidade por meio das previsões dos direitos de informação, de petição, de certidão e de retificação (art. 5º, XXXIII, XXXIV, LIII, LIV, LV, LX e LXXII), abrangendo todas as informações, dados, documentos, registros, atos, contratos, decisões, processos, pareceres etc. da Administração Pública, salvo as exceções constitucionais admitidas. [41]

Não consta, pois, da teoria da publicidade administrativa, a ilação de que as exigências impostas ao ato administrativo sejam transportadas para meros fatos administrativos. Se o raciocínio fosse levado ao extremo, chegar-se-ia à absurda imposição de que gabinetes de qualquer autoridade pública ficassem abertos quando sua equipe se reunisse para deliberar. Com a vênia pelo exagero, também seria o mesmo que conferir à sociedade o direito de escutar as ligações telefônicas, apoderar-se de correios eletrônicos, enfim, abrir todas as portas da administração simplesmente por serem "públicas".

Ainda que se pretenda entender as palavras dos vogais como pareceres, o controle social tem seus limites. Lição de José Afonso da Silva: "os pareceres só se tornam públicos após sua aprovação final pela autoridade competente; enquanto em poder dos pareceristas ainda são simples opinião, que não pode se tornar definitiva." [42]

Em trabalho devotado ao princípio ético-jurídico da veracidade e sua concretização no direito dos cidadãos à verdade perante o poder público, Paulo Klautau Filho [43] conclui que

o direito à verdade, em sua dimensão coletiva/difusa, exige, também, do Estado prestações tradicionalmente designadas como negativas e positivas. Como exemplo das primeiras, refiro à obrigação do Estado em não interferir (vedando) no livre acesso a informações públicas presentes ou passadas. O poder público não deve obstaculizar a formação de identidades e verdades coletivas, mediante o livre debate sobre o processo histórico de formação de nossa sociedade. Pelo contrário, e já no aspecto positivo de suas obrigações, o poder público deve facilitar o acesso a tais informações, através de políticas públicas educacionais e arquivísticas que visem à preservação e construção permanente da memória e da história coletiva (sem destaque na fonte).

A partir dessas considerações, vale a insistência: as manifestações individualmente lançadas nos debates que ocorrem nos ambientes colegiados não chegam a merecer o tratamento jurídico de informação pública.

Nada obstante, é inegável a existência do regime administrativo de publicidade que se espraia por toda a ordem jurídica, deixando claro que, em se tratando de manejo de interesse público – como já repisado –, o agir dos órgãos da administração deve ser marcado pela mais ampla transparência. Tanto é assim que algumas exceções são tratadas pela própria Constituição. Elas serão referidas no item a seguir.

3.3 A questão da independência

Os pronunciamentos dos membros da CTNBio no caso que se estuda deixam claro seu incômodo com o fato de ser cobrada deles a altivez característica do agente público que defende suas crenças políticas. Aqueles vogais não se consideram arautos no debate político do país, mas cidadãos escolhidos para contribuir com conhecimento científico em decisões de caráter técnico.

Da mesma forma, convém desenhar um paralelo entre eles e membros do Poder Judiciário. Se, por um lado, estes exaram decisões fundamentadas – costuma-se dizer – na ciência jurídica, o que não lhes retira do alvo das críticas da sociedade em geral, por outro, dispõem de um aparato institucional que lhes garante alto nível de independência.

Convém explorar este aspecto na medida em que, embora convocados a deliberar sobre temas de relevante interesse da sociedade, os integrantes do órgão se inserem em contexto bastante diverso daquele no qual se encontram, por exemplo, parlamentares e magistrados.

O parlamento e os tribunais brasileiros funcionam em regime de publicidade tão historicamente consolidado que suas exceções são elevadas ao status constitucional. Quanto ao Congresso Nacional, mencionam-se os casos em que se apreciam a conduta pessoal dos próprios parlamentares, de outras autoridades constituídas ou de aspirantes a dignitário do poder público (arts. 52, III, IV, XI; 55, § 2º; 66, § 4º). No Judiciário, apenas quando o direito à intimidade das partes no processo "não prejudique o interesse público à informação" (art. 93, IX). Outros casos em que magistrados e parlamentares agem em segredo limitam-se a eleições para provimento de postos diversos.

Naqueles órgãos e também nas chefias do Poder Executivo, o comando superior do país se realiza por meio dos agentes políticos. Essa categoria de agentes públicos, cujo conceito não é uniforme na doutrina, é dotada de elevado grau de poder, especialmente para a definição e efetivação de políticas públicas. O ofício de que são imbuídos não apenas tem previsão constitucional como é cercado de circunstâncias que garantem a necessária independência funcional.

Eis algumas das prerrogativas e vedações de agentes políticos dos três poderes: inviolabilidade civil e penal por opiniões, palavras e votos; limitação de prisão a requisitos processuais diferenciados; foro especial para julgamento; impossibilidade de contratar com o poder público ou integrar sociedade que o faça, exceto sob condições específicas etc.

Além dessas e de muitas outras peculiaridades as quais os membros de conselhos da administração (como a CTNBio) não possuem, não pode passar despercebido o fato de que estes prestam serviços públicos graciosamente (art. 41 do regimento interno da comissão). Diferentemente, além de remunerados, os cardeais dos três poderes gozam de aparato de segurança e bastantes auxílios materiais, por vezes sequer vinculados às atividades oficiais.

Ao menos o método mais simplório de manutenção da independência funcional foi previsto para os membros da CTNBio. A bem dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade na administração pública, existe vedação para que julguem processos em que sua parcialidade possa estar comprometida. O impedimento está na lei de biossegurança (art. 11, § 6º: "Os membros da CTNBio devem pautar a sua atuação pela observância estrita dos conceitos ético-profissionais, sendo vedado participar do julgamento de questões com as quais tenham algum envolvimento de ordem profissional ou pessoal, sob pena de perda de mandato, na forma do regulamento").

Caso se verifique a participação de membro impedido em algum julgamento, impõe-se a nulidade do seu voto. Ainda que não prevista em lei, esta é uma decorrência dos princípios constitucionais já referidos. O vício da discussão, provocada pela torpeza de um vogal, não pode ser por ele aproveitado [44].

Propõe-se mais um paralelo entre o exercício profissional dos conselheiros na administração e os magistrados. Defender uma ideia impopular e proteger minorias contra as maiorias são tarefas típicas numa corte constitucional. Para tanto seus membros contam com pesado arcabouço institucional que lhes permite razoável segurança para decidir. Ainda assim, a publicidade das sessões do STF impõe a todos os onze ministros que cuidem de justificar com a maior clareza seus votos e obter um mínimo de adesão, sob pena de insuportável execração vinda da opinião pública.

Na CTNBio, voltando olhar para a liberação de transgênicos, é cediço que se trata de tema sobre o qual pouquíssimas pessoas têm alguma compreensão, mas muitas abraçam opiniões preconcebidas.

No cenário de deliberações a portas abertas, dificilmente um membro da comissão se sentiria à vontade para defender ponto de vista favorável à transgenia caso algum grupo ambientalista divergente realizasse ato público de protesto e mencionasse seu nome como inimigo de uma causa verde.

As empresas que solicitam liberação para comercializar alimentos transgênicos, cientes dos passos dados por cada membro da comissão, certamente gostariam de ter relações próximas com eles. Existe um risco de que a exposição dos debates seja um convite para que a indústria tente interferir nos pontos de vista dos vogais tanto quanto seja possível, inclusive por meios imorais. Acrescente-se que, embora os julgamentos aqui referidos sejam recorrentes na comissão, não é grande o número de empresas que batem às portas do colegiado requerendo autorização para manipular, importar e vender transgênicos.

Avaliando por ângulo diverso, adotar a política das portas fechadas não seria suficiente para impedir pressões externas, tanto de organizações sociais quanto de empresas do agronegócio. O acesso posterior às atas das reuniões permitiria que se tomasse conhecimento do debate com um atraso insignificante e que fossem identificados os partidários de tal ou qual pensamento. Com estas informações, as empresas poderiam estabelecer relações de favorecimento com os integrantes da CTNBio em um cenário de maior discrição.

Retomando as considerações anteriores sobre os elementos que sustentam a independência do exercício profissional de agentes políticos, fica aqui uma conclusão: não existem mecanismos que garantam a total independência dos membros da comissão. Por essa razão (ou por aquela outra mais escusa apresentada logo acima) a maioria deles prefere reunir-se privativamente.

É preciso barrar a ideia de que o interesse social em vigiar o exercício do poder seja algo constrangedor e fruto de mera desconfiança nos administradores ou ainda simples espaço de ocupação para conferência da gestão. "Muito mais do que isso, trata-se de um canal de via dupla em que quanto maior o controle, no sentido de participação e co-gestão, maior a legitimidade dos governantes, que se referenciam nas demandas originárias e diretas da população." [45]

É importante que a consciência de cada conselheiro encontre ambiente favorável à busca da retidão. A esse respeito, quanto maior o grau de transparência na administração pública, maior será o respeito devotado pelos agentes aos princípios da moralidade, da legalidade e da imparcialidade, pois a visibilidade de seus atos é fator psicológico de temor ao desvio de poder. Os vícios da administração pública se devem, em grande parte, ao sigilo [46].

3.4 Decisões técnicas x decisões políticas

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança conta com a participação de 27 "cidadãos brasileiros de reconhecida competência técnica, de notória atuação e saber científicos, com grau acadêmico de doutor e com destacada atividade profissional nas áreas de biossegurança, biotecnologia, biologia, saúde humana e animal ou meio ambiente" (art. 11 da lei 11.105, art. 6º do decreto 5.591 e art. 3º do regimento interno). Dentre esses cientistas, apenas nove são provenientes do serviço público, cada um de um ministério [47]. Os demais são recrutados perante entidades de representação da comunidade científica (§§ 1º e 2º da lei 11.105), que formarão listas de nomes para apreciação e designação pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia.

Pelos requisitos elencados na lei da Política Nacional de Biossegurança, está claro que o perfil dos membros da CTNBio não é de meros curiosos ou eventuais interessados em biossegurança. O grau acadêmico de doutor atesta, no mínimo, dedicação duradoura à pesquisa em suas respectivas áreas. Inconteste, portanto, que estão contribuindo com conhecimento científico especializado, fundamentado em teoria e prática.

Explanar um argumento técnico para um público leigo pode ser uma tarefa hercúlea. Se for exigido de um cientista que exponha suas escolhas perante o público em geral, não se pode negligenciar que ele será cobrado com argumentos sociais. Se de alguma forma ele tiver de abrir mão da justificação técnica de seus posicionamentos, isso acabaria por modificar o resultado das decisões que toma. Entende-se, por isso, que ficaria prejudicada a qualidade das deliberações do colegiado.

Entretanto, não há dúvida de que a contribuição da ciência para a tomada de decisões na administração pública implica numa inelutável conexão entre técnica e política. Os motivos para isso são claramente compreensíveis com a explanação de alguém que trabalhou como técnico assistindo escolhas do governo. Segue o raciocínio:

Como podem [...] conversar a técnica e a política? [...] é quando a área técnica entende que ela, para se expressar [...] [,] tem que ter essa expressão através da política. Porque a política [...] – os políticos, a estrutura política – que vai conseguir que aquela técnica seja passada, usada e gerida por aquela sociedade [...]. Se não houver o trabalho político, o viés político, a técnica é uma coisa muito rude, muito cartesiana, muito cheia de arestas para [que] você coloque e impo[nha] isso numa sociedade. Aí a gente vira modelo da tecnocracia: [...] A melhor coisa é que você vai ter que usar o certificado. Em alguma maneira, em algum momento a turma vai ser contestada. E normalmente são decisões erradas. [...] tomadas por técnicos, apenas com a cabeça técnica, [...] sem olhar a área, [...] o viés social ou humano da aplicação da técnica, e isso pode ser tecnicamente muito certo, mas às vezes pode ser inapropriado para aquele momento daquela sociedade, daquela conjuntura. Foi mais ou menos isso que eu fiz, quer dizer: mobilizar o pessoal técnico, com os anseios políticos. E, ao mesmo tempo, o pessoal político entender a capacidade ou a incapacidade técnica daquele momento. [...] E que era possível fazer. Porque às vezes também se você deixar só o político entrar, ele pode [...] [querer] coisas que tecnicamente não sejam viáveis ou sejam inseguras. [...] Hoje a nossa técnica não te dá condições de fazer isso. É até bom, louvável, um bem comum maravilhoso, mas não tem segurança intrínseca nisso. E aí eu acho que essa discussão um pouco filosófica, mas é um pouco o que a gente está vivendo nos dias de hoje, clonagem humana, DNA, essas coisas todas. A técnica avançando e a gente começa a ter que discutir isso do ponto de vista político do sentido humano, social. [...] o grupo político estava querendo desenvolver ações de governo, ações com objetivos [...] maiores, macroobjetivos de governo, que seriam desburocratização, informatização, governo eletrônico, tal. [...] No que dependia das pressões antagônicas da oposição, da crítica, estavam muito preocupados com esse impacto maior, e não com detalhes ou minúcias técnicas. [Em relação a] minúcias ou detalhes de segurança, às vezes a gente tinha que discutir muito, [...] em reuniões, e colocavam um filtro, vamos dizer assim, para o escalão político, porque no escalão técnico o pau quebrava (grifos originais). [48]

Complementando o que foi dito, "o pau quebrava" significa que nenhum ramo da ciência ostenta autoridade para responder sozinho às questões que são colocadas na vida prática. Daí as polêmicas. Tudo se interliga e sofre interferências. Por isso mesmo, a biossegurança, posta nas mãos da comissão para ser cuidada, requer diálogo multidisciplinar. As visões parciais de cada técnico catalisam profundos debates, com argumentos que não deixam a cientificidade de lado para fazer parte do confronto.

Afora isso, as idiossincrasias que convivem em qualquer grupo, mesmo que de especialistas da mesma área, talvez já fosse bastante para que suas posições não fossem sempre idênticas.

Em verdade, quando se solicita o voto de um vogal, não se espera que ele tire da manga um resultado friamente calculado por meio da técnica na qual é versado. Supõe-se que cada integrante do órgão considere implicações de suas manifestações e que tenha como sua a responsabilidade do colegiado pelas deliberações.

Qualquer cientista sabe que o mais profundo conhecimento de causa não o exime de ter seu argumento testado, legitimado. Karl Popper já dizia que sequer é científica a conclusão que não puder ser falseada [49].

Existe uma interdependência tão forte entre a técnica e a política que não se permite atuar numa dessas áreas desconsiderando por completo a contribuição da outra, ou mesmo pretender que seus discursos sejam manejados em momentos apartados e que isso possa resultar numa tomada de decisão responsável.

Tais ponderações são ainda mais válidas no âmbito da CTNBio se se observar que não há autoridade que possa rever suas decisões, por mais que seja aventada alguma conveniência sociopolítica. É o que diz a lei nacional de biossegurança.

O capítulo que trata dos órgãos e entidades de registro e fiscalização traz artigo que trata das atribuições de diversos ministérios no processo de liberação de OGM, colocando a posição da comissão como decisão insuperável pelas instâncias políticas, ainda que superiores na hierarquia administrativa. Os excertos abaixo demonstram.

Art. 16. [...]

§ 3o A CTNBio delibera, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a necessidade do licenciamento ambiental.

[...]

§ 6o As autorizações e registros de que trata este artigo estarão vinculados à decisão técnica da CTNBio correspondente, sendo vedadas exigências técnicas que extrapolem as condições estabelecidas naquela decisão, nos aspectos relacionados à biossegurança.

Além dos juízos mencionados acima, não se perca de vista que a CTNBio também possui competências normativas. Os campos de incidência das suas resoluções (art. 14, XVI) são pesquisas, atividades e projetos relacionados a OGM e seus derivados (art. 14, I e II). Nessa senda, fica bem mais evidente o caráter político do órgão. Cumpre-lhe obedecer e integrar extensa legislação pertinente a saúde, meio ambiente, agricultura, ciência e tecnologia.

O dever de elaborar normas impõe ainda o cuidado com direitos fundamentais. Não é demais consignar que toda a população, em algum momento, é afetada pelas diretrizes estabelecidas pela comissão para o manejo de OGM pela agroindústria. É de se exigir, portanto, que o espaço em que se originam essas resoluções seja marcado por amplíssima transparência, permitindo que o povo brasileiro fiscalize o exercício do poder e, nessa empreitada, realize a democracia.

Paulo Affonso Leme Machado compartilha da mesma opinião. Diz que o § 10 do art. 11 da lei de biossegurança, ao estabelecer a confidencialidade das reuniões como padrão, ostenta redação infeliz. Tomam-se suas palavras emprestadas:

A reunião não transparente da CTNBio está na contramão das tendências constitucionais brasileiras.

[...]

A possibilidade da publicidade posterior não pode afastar o direito de, ordinariamente, qualquer pessoa poder estar presente a uma reunião de um colegiado, desde que sua presença seja pacífica e não perturbe o andamento dos trabalhos. A correção do engano da redação da lei será feita pelos conselheiros da CTNBio, que, sensíveis à necessidade de consolidar o Estado Democrático de Direito, facilitarão o acesso às informações sobre suas atividades, multiplicando os convites para suas reuniões. [50]

Ao conceder autorizações para pesquisas, fiscalizar manipulação de material genético ou ainda no exercer de sua competência normativa, a comissão de biossegurança precisa atentar para um princípio caríssimo ao direito ambiental: a precaução. Ela é fruto da prudência e urgência, quando riscos e danos a serem evitados são incertos e o conhecimento científico sobre efeitos de um determinado produto no meio ambiente é escasso ou controvertido [51].

A Constituição da República estabelece que se façam amplas considerações sobre o impacto das inovações pretendidas (art. 225, § 1º, II, IV e V) e trata do assunto não apenas em capítulo focado no meio ambiente, mas também nas disposições acerca da ordem econômica (art. 170, IV).

No campo da biossegurança, "nenhum princípio pode ser tão importante quanto o da precaução" [52]. Ele é a inspiração para o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, tratado ambiental que faz parte da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Entrou em vigor em setembro de 2003. O Brasil ratificou sua adesão dois meses após. Ele torna obrigatória a análise do risco ambiental na liberação de qualquer organismo geneticamente modificado [53] e requer, dos membros da CTNBio, humildade intelectual, independência pessoal e coragem profissional [54].

Tamanho cuidado com riscos inerentes à manipulação genética é mais um motivo para que o órgão-chave dessa questão submeta seus critérios à plena sindicância da população em geral.

A contestação pública, de que fala Robert Dahl, desemboca nesse tipo de fenômeno. Como ficou demonstrado neste estudo, as instâncias políticas mais desconcentradas, especializadas, não se isentam do dever de construir cotidianamente a democracia. Pelo contrário, é no debate setorizado que a sociedade manifesta maior interesse e participa com mais afinco dos negócios que lhe dizem respeito. A administração pública, nesses momentos, não pode dar-lhe as costas.

Sobre o autor
Rodrigo Chaves

Editor da Revista Jus Navigandi; analista judiciário; doutorando em direito público pela Aix-Marseille Université (França).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Rodrigo Chaves. A política das portas abertas nas reuniões de órgãos públicos colegiados: estudo do caso CTNBio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2891, 1 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19252. Acesso em: 5 nov. 2024.

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