Resumo: Análise da prisão processual e o constrangimento ilegal causado pelo excesso de prazo. Ofensa ao princípio constitucional da inocência e aos direitos individuais do cidadão preso. Institucionalização da violência em face da conivência do Poder Judiciário.
Abstract: Analysis of procedural arrest illegal and embarrassment caused by excessive delay. Offense to the constitutional principle of innocence and individual rights of citizens arrested. Institutionalization of violence in the face of the connivance of the judiciary.
Palavras Chaves: Direito. Constitucional. Processo Penal. Prisão. Prazo. Excesso.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pacto celebrado em São José da Costa Rica em 22.11.1969 e promulgado no Brasil através do Decreto n. 678, de 6.11.1992, estabelece entre as garantias judiciais que toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 dispõe no art. 5º, inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Também assegura que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (art.5º, LXV) e a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art.5º, LXXVIII).
A observância dos referidos dispositivos no processo penal é condição imprescindível para a efetivação da justiça, na medida em que se por um lado a manutenção de uma prisão ilegal abala o status de inocente do réu, por outro, a morosidade processual prejudica não só o acusado como a própria vítima que é novamente penalizada com a demora na punição do ofensor.
O tema ganha especial relevância quando o acusado encontra-se preso. É importante esclarecer que a prisão processual ocorre antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória e tem por fundamento a justiça legal, que por razões de necessidade ou conveniência legal, obriga o cidadão, enquanto membro da comunidade, a se submeter a restrições individuais, para possibilitar ao Estado prover o bem comum, sua principal finalidade.
Trata-se de prisão cautelar e provisória, medida excepcional, tomada no curso do inquérito policial ou do processo penal, com a finalidade de garantir a elucidação dos fatos, a ordem pública e, em caso de condenação, a aplicação da lei penal. Tem, portanto, finalidade preventiva e só se justifica quando decretada no poder de cautela do juiz e for necessária para uma eficiente prestação jurisdicional.
Nestes termos, não ofende o princípio constitucional da inocência, posto que o juiz determina a prisão não porque considera o réu culpado, mas por um motivo processual, concreto e provado. Assim, a prisão processual devidamente fundamentada não afronta o direito individual de ser considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Por outro lado, a exacerbação dessa providência excepcional, principalmente por meio da manutenção do preso provisório encarcerado por mais tempo que o legalmente previsto, ou seja, o excesso de prazo na prisão, avilta os preceitos constitucionais.
Ora, por se tratar de medida limitadora de liberdade individual, só pode ser utilizada em último caso e em estrita observância ao ordenamento jurídico, sob pena de flagrante desrespeito à dignidade humana, ao princípio da inocência e à legislação processual penal.
Apesar da Constituição Federal de 1988 silenciar-se acerca do tema, o Código de Processo Penal – CPP regulou alguns prazos em se tratando de réu preso. Por exemplo, o art. 10, que estabelece 10 dias para a conclusão do inquérito policial e o art. 46 ao indicar 5 dias para o oferecimento da denúncia. Além disso, o CPP também estipula prazos máximos para o cumprimento de determinadas fases processuais, como o art. 400 que estabelece 60 dias para realização da audiência de instrução e julgamento do procedimento comum, e o art. 412 que dispõe que a primeira fase do procedimento do júri deve ser concluída em 90 dias.
Tais indicativos demonstram a preocupação do legislador em estabelecer limites para a duração da persecução penal no intuito de que o réu, preso ou solto, possa ser regularmente processado à luz dos princípios e direitos constitucionais.
O excesso de prazo na prisão provisória é tão repudiado que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 697 em 09.12.2003, permitindo o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo mesmo no caso de crime hediondo. Isto porque independente da torpeza do crime ocorrido, prisão ilegal é prisão ilegal e a existência de vedação à liberdade provisória ou à fiança não tem força suficiente para elidir a ilegalidade proveniente do excesso de prazo da prisão cautelar.
Note-se que a súmula tem embasamento constitucional porque, como já visto, o art. 5º, LXV, da Carta Magna impõe a imediata soltura do acusado submetido à prisão ilegal.
Contudo, em que pese a iniciativa do Poder Legislativo e o posicionamento sumulado, habitualmente o mesmo não é respeitado no âmbito judicial. Inúmeros são os casos de prisões ilegais e pouco é feito para coibi-los. Na verdade, pela análise da jurisprudência acerca do assunto, verifica-se que o posicionamento dominante é no sentido de relevar o excesso de prazo.
O próprio Supremo Tribunal Federal termina por incentivar a violação dos direitos do acusado preso, senão vejamos:
: Habeas Corpus. 2. Alegação de ilegalidade da prisão pelo excesso de prazo. Excesso não imputável ao aparelho judiciário ou à acusação. Complexidade da causa. 3. Constrangimento ilegal não caracterizado. 4. Ordem denegada. HC 104849/RJ e HC 105854-SP, Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, Julgado 15.02.2011. (grifo nosso)Ementa
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. 1. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO. MATÉRIA QUE, PARA SER APRECIADA, DEMANDARIA DUPLA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. 2. FUNDAMENTO DA PRISÃO PREVENTIVA. PERICULOSIDADE EVIDENCIADA PELO MODUS OPERANDI. FUNDAMENTO SUFICIENTE E IDÔNEO PARA A PRISÃO DO PACIENTE. 1. Não apreciada pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo a alegação de excesso de prazo e tendo o Superior Tribunal de Justiça assentado a impossibilidade de examinar essa matéria, sob pena de supressão de instância, não cabe ao Supremo Tribunal Federal dela conhecer originariamente, sob pena de dupla supressão de instância. 2. Garantia da ordem pública evidenciada pela periculosidade e pelo modus operandi. Fundamento suficiente e idôneo para a manutenção da prisão do ora Paciente. Precedentes. 3. Habeas corpus conhecido em parte e, na parte conhecida, ordem denegada. HC 104321/ES, Relatora Min. Carmen Lúcia, Primeira Turma, Julgado 15.02.2011. (grifo nosso)
Ora, uma vez verificado o excesso de prazo, seja pelo juiz de primeiro grau, seja por desembargador ou ministro, este deve ser reconhecido de ofício e a prisão relaxada. É absurdo que por entender que a causa é complexa ou por caracterizar supressão de instância, o réu permaneça preso ilegalmente e com o aval do Poder Judiciário. É a institucionalização da violência, que causa sério gravame aos presos provisórios, seja do ponto de vista processual seja moral.
Registre-se ainda que há quem não admita a ocorrência de constrangimento ilegal por excesso de prazo, por entender que o preso provisório deve suportar os excessos porque teria cometido um crime. Tal posição, verbalizada pelo senso comum, ofende a Constituição Federal pois não se pode esquecer que o preso provisório é inocente, vez que apenas está sendo acusado de praticar um crime. A acusação, seja de crime hediondo ou não, não interfere na ilegalidade da prisão e no constrangimento sofrido pelo preso.
Por outro lado, em determinados casos o excesso de prazo é reconhecido, conforme se verifica nos julgados abaixo:
EMENTA: HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. EXCESSO DE PRAZO. ORDEM CONCEDIDA. O paciente se encontra preso há mais de quatro anos e ainda não foi julgado pelo tribunal do júri. Tal fato, não se pode negar, evidencia o excesso de prazo da custódia cautelar. Ordem concedida. STF. HC 98665/PI, Relator Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, Julgado 16.11.2010. (grifo nosso)
EMENTA: EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO. DEMORA NO JULGAMENTO DOS RECURSOS INTERPOSTOS PELA DEFESA: PACIENTE PRESO HÁ CINCO ANOS. DEMORA NÃO IMPUTÁVEL AO PACIENTE. AUSÊNCIA DE COMPLEXIDADE DO FEITO. EXCESSO DE PRAZO CONFIGURADO: PRECEDENTES. ORDEM CONCEDIDA. 1. O excesso de prazo da prisão no julgamento dos recursos interpostos pela defesa configura constrangimento ilegal à liberdade de locomoção. 2. Ordem concedida. STF. HC 104675/PE, Relatora Min. Carmen Lúcia, Primeira Turma, Julgado 14.12.2010. (grifo nosso)
O que salta aos olhos nos casos acima é que foi necessário um excesso de mais de 4 anos para que fosse reconhecido o constrangimento ilegal e a violação aos direitos do réu. Uma verdadeira conivência judicial.
Tal complacência apenas serve para que em mais de uma oportunidade, no mesmo processo, o acusado se submeta ao gravame de permanecer preso mais tempo do que determina a lei, vez que via de regra os prazos são extrapolados, seja na conclusão do inquérito policial, no oferecimento da denúncia e/ou no término da instrução criminal.
Na verdade, essa condescendência com a reiterada perda de prazos nos processos criminais tem gerado a reincidência, ou seja, a regra é não obedecer a prazo algum, vez que o constrangimento ilegal não é reconhecido e os acusados permanecem presos.
Tal regra é um absurdo inominável posto que institucionaliza a violação de direitos individuais, não podendo prevalecer sob pena de incentivar a desobediência à própria lei.
É óbvio que os prazos foram previstos pelo legislador para serem obedecidos e apenas em casos excepcionalíssimos é que podem ser excedidos. O que não pode ocorrer é a exceção – extrapolar o prazo legal – se tornar rotina e, consequentemente, a regra.
Ademais, é importante frisar que os princípios da eficiência, celeridade e economia processual devem ser observados em todos os processos, mas especialmente naqueles em que uma liberdade individual está sendo restringida em prol da coletividade. Não se discute que o interesse público prevalece sobre o privado quando se decreta uma prisão provisória, contudo, a preponderância de tal interesse encontra seu limite na lei e na Constituição, e não pode ser invocado eternamente.
É igualmente absurdo utilizar reiteradamente as já velhas e surradas justificativas de excesso de processos, de trabalho ou complexidade da causa, posto que a desorganização e morosidade da justiça não podem servir de fundamento para prejudicar um cidadão inocente. Ademais, existem mecanismos legais hábeis para resolver parte desses problemas, como o desmembramento dos processos e efetiva concentração de atos processuais em audiências, atual regra processual também constantemente violada.
Por outro lado, poder-se-ia argumentar que muitas vezes o excesso de prazo é causado pela defesa, que requer inúmeras diligências, precatórias, etc. Nesse caso, não há que se falar em constrangimento ilegal quando os pedidos forem feitos no intuito de protelar o andamento do feito.
Infelizmente, na prática verifica-se que alguns juízes não conseguem determinar duas providências ao mesmo tempo: ou realizam audiências, ou determinam diligências, ou apresentam informações em habeas corpus, ou decidem pedidos incidentes etc.
Realmente, agindo dessa forma, é impossível obedecer aos prazos processuais. Entretanto, o que mais impressiona é que em algumas varas, com volume muito maior de processos do que outras, os prazos são obedecidos em todos os casos. Portanto, podemos concluir que a demora na prestação jurisdicional e o excesso de prazo na prisão provisória também devem ser atribuídas à capacidade pessoal do juiz e sua equipe, de trabalhar de forma rápida, organizada e eficiente.
Assim, só nos resta esperar que a recente resolução do Conselho Nacional de Justiça, que ampliou o horário de funcionamento do Poder Judiciário - com pleno amparo na Emenda Constitucional nº 45/04 -, na tentativa de prestigiar a produtividade e presteza no exercício da jurisdição, bem como penalizar a morosidade injustificável, incentive os juízes menos céleres a fazer a sua parte, pondo fim à violação dos direitos individuais dos réus presos.