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Unidade na diversidade: os fundamentos do direito cosmopolita e sua função no estabelecimento de uma moeda mundial

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Agenda 26/06/2011 às 14:07

RESUMO

O objetivo deste trabalho é verificar se é possível e como é possível utilizar o Direito Cosmopolita para reconstruir a atual ordem mundial segundo princípios de justiça, de um modo a alcançar a paz perpétua e eliminar a pobreza. Para isso serão expostos os fundamentos do Direito Cosmopolita, contrastando-os com as relações de poder vigentes no âmbito internacional que são caracterizadas como de interdependência assimétrica. Partindo-se da premissa de que as sociedades contemporâneas podem ser compreendidas como sistemas que oscilam entre a cooperação e o conflito, analisar-se-ão as estruturas institucionais subjacentes a essa tensão social, com destaque para o funcionamento do sistema monetário internacional. Após a identificação dos fatores institucionais causadores do conflito e da pobreza será analisada a proposta oferecida por Keynes em Bretton Woods de criação de uma moeda mundial de reserva, o que será feito com o intuito de constatar se essa proposta se adequa aos fundamentos do Direito Cosmopolita no sentido de ser um meio de eliminar a injustiça retirando, por conseguinte, o principal óbice para o atingimento da paz.

PALAVRAS CHAVE: Direito Cosmopolita; Moeda Mundial;Princípios de Justiça.


1 INTRODUÇÃO

Após o impacto gerado pelas ideias de Rawls referentes à construção de instituições sociais segundo princípios de justiça [01], alguns de seus mais proeminentes discípulos iniciaram uma discussão acerca da viabilidade de não restringir a aplicação desses princípios ao âmbito interno de determinadas sociedades. Ou seja, pretendeu-se expandir a aplicação dos princípios de justiça para o contexto das relações internacionais.

Ocorre, contudo, que os princípios de justiça propostos por Rawls a partir do artifício epistemológico da posição original foram desenvolvidos para promover a justiça num contexto de cooperação, o que implicaria a necessidade de se verificar, num primeiro momento, qual a espécie de relação que existe atualmente entre os Estados nacionais.

Dependendo do que fosse constatado seria então possível iniciar uma discussão acerca da viabilidade de se aplicar a teoria da justiça desenvolvida por Rawls ao âmbito internacional, ou mesmo alguma outra concepção de justiça tal como a cosmopolita que será exposta neste trabalho.

Ao contrário do filósofo político, contudo, o teórico do Direito não pode se limitar à formulação de princípios de justiça, e, ao contrário do sociólogo, não pode se limitar a descrever o funcionamento das instituições sociais. Além de conhecer os aspectos filosóficos e sociológicos relacionados à questão da justiça, ele deve descrever as medidas que deveriam ser consubstanciadas em leis com o intuito de tornar a justiça entre os povos uma situação real, com vistas a se obter um estado de paz perpétua.

Com efeito, a paz mundial que se busca atingir por meio do Direito Cosmopolita é uma paz perpétua derivada da justiça, e não uma paz constantemente ameaçada por guerras e revoluções. [02]

Tendo em vista esse contexto, após uma interpretação dos princípios de justiça cosmopolita contidos na declaração de princípios sobre a tolerância [03], na declaração sobre o direito ao desenvolvimento [04], e no pacto internacional de direitos econômicos e sociais [05] será feita uma análise das relações de poder no âmbito internacional, com especial destaque para as relações monetárias, de um modo a investigar se a implantação de uma moeda mundial seria uma medida idônea a tornar as relações internacionais adequadas aos princípios de justiça cosmopolita, o que representaria um passo importante no sentido de se construir uma nova ordem mundial fundada na paz perpétua derivada da justiça.

1.1 O PRINCÍPIO DA TOLERÂNCIA

Da declaração de princípios sobre a tolerância é possível extrair que o princípio da tolerância não exige, por exemplo, que muçulmanos passem a aceitar como corretos os ensinamentos judaicos ou vice-versa, mas exige que todas as religiões professem a fé no direito de todos serem livres para seguir a religião que quiserem. Ou seja, o limite jurídico que deve ser imposto às religiões é o imperativo do respeito à liberdade religiosa do próximo: seja livre para professar qualquer religião conquanto que permita que o outro também seja livre.

Prima facie, pode parecer contraditório afirmar que a liberdade surge como consequência da imposição de um dever. No entanto, tal contradição é apenas aparente, uma vez que esse dever consiste numa forma especial de um dever moral: no dever de ser livre.

O conceito de tolerância se opõe ao conceito de imposição. O indivíduo tolerante se abstém de impor seus pensamentos a outrem, pois embora discordante no que se refere às concepções do próximo, não procura impor por meio da força, seja esta legal ou não, a aceitação de seu próprio pensamento.

Trata-se por certo de um princípio de caráter ético por excelência, uma vez que voltado a reger processos intersubjetivos. Numa sociedade tolerante, um cidadão judeu deve respeitar os ensinamentos de um cidadão muçulmano e vice-versa.

Isso não significa que os dois devam pensar da mesma forma, pois se assim o fosse não precisaria haver tolerância. Com efeito, a função do princípio da tolerância é justamente o de trazer paz num ambiente de opiniões divergentes. Ora, se judeus e muçulmanos pensassem da mesma forma não haveria o que ser tolerado.

Nesse sentido, o princípio da tolerância implica a existência de uma simetria no respeito às diferenças, não significando, por certo, a eliminação dessas diferenças. Tudo aquilo tendente a impor um único posicionamento de modo a acabar com as diferenças é incompatível com a tolerância e, por conseguinte, com a democracia que tem sua existência vinculada a um regime de discussão; e não de imposição.

Além disso, um ponto que deve ser destacado é que a tolerância não é voltada única e exclusivamente a reger as relações entre os Estados, sendo, acima de tudo, um direito humano absoluto. [06]

Como direito humano absoluto vincula tanto as relações entre os Estados quanto entre estes e os membros da família humana, pouco importando as questões relativas à nacionalidade desses membros. Ou seja, um Estado não pode invocar o dever de tolerância de outro povo, se não pratica a tolerância no interior de suas fronteiras, pois isso corresponderia a exigir que os Estados soberanos tolerassem a intolerância, o que é uma "contraditio in terminis".

Sendo assim, um Estado muçulmano deve permitir que seus cidadãos se convertam ao cristianismo, e um Estado cristão deve permitir que seus cidadãos se convertam ao islamismo. O mesmo se aplica para questões relativas à opção sexual, casamentos, etc.

Tal como se pode ver, o respeito ao princípio da tolerância é uma condição de possibilidade para a existência de uma sociedade verdadeiramente livre. Por outro lado, a tolerância não é sinônimo de relativismo, mas também não se confunde com o que os filósofos contemporâneos normalmente associam ao conceito de vida boa.

Com efeito, ao mesmo tempo em que o princípio da tolerância traz consigo uma determinada visão de mundo substancial, consistente na crença de que todos têm o direito de ter a visão de mundo que quiserem, ele não indica qual é a melhor visão de mundo que todos têm o direito de ter.

Sendo assim, se as mulheres de um povo se sentem felizes em se mutilar, ou se sentem felizes em colocar argolas no pescoço, a exemplo do que ocorre na Tailândia, não cabe aos outros países que não possuem esses costumes procurar criar mecanismos a fim de proibir tais traços de manifestação cultural.

Por outro lado, a comunidade internacional tem o dever de impedir que mulheres, sobretudo se forem crianças, sejam forçadas a realizar esse comportamento, pois a opressão e a imposição são manifestamente incompatíveis com o princípio da tolerância.

Analogamente, não se pode tolerar que as pessoas de um país sejam privadas da justa distribuição dos bens produzidos por causa da corrupção de seus governos, ou por qualquer outra circunstância incompatível com os princípios de justiça, o mesmo se aplicando ao âmbito internacional, pois não se pode tolerar que as instituições internacionais sejam configuradas de modo a favorecer poucos em detrimento de muitos.

Corroborando essas assertivas está a declaração de princípios sobre a tolerância que de modo taxativo afirma: "ser tolerante não significa ser tolerante com a injustiça social"

Portanto, o princípio da tolerância pode ser vislumbrado como sendo um dos principais princípios a promover uma nova ordem mundial fundada na unidade em meio à diversidade.

1.2 O PRINCÍPIO DO PROVEITO MÚTUO

Quando se fala acerca de princípios de conteúdo moral que posteriormente foram positivados como princípios jurídicos, a exemplo dos princípios de direitos humanos, deve-se ter em conta que esses princípios não são positivados consoante um único significado moral substancial, uma vez que procuram consubstanciar num todo coerente a pluralidade cosmovisiológica presente no âmbito interno ou internacional, conforme o caso.

Por outro lado, a condição de possibilidade dessa pluralidade cosmovisiológica procedimental é uma concepção substancial, ou seja, o respeito ao princípio da tolerância. O princípio da tolerância está implícito no próprio processo de positivação que é caracterizado pela discussão entre povos de culturas diferentes, sendo que o objeto de discussão consiste na busca por princípios de justiça adequados a impedir que a humanidade seja novamente vitimada pelos flagelos da guerra.

Nesse sentido, e como expressão desse processo regido pela tolerância surge o princípio do proveito mútuo que se apresenta como uma síntese coerente da visão deontológica e da visão consequencialista, englobando as diretrizes fundamentais que orientaram a elaboração do pacto internacional sobre direitos econômicos sociais e culturais.

Com efeito, ao mesmo tempo em que o pacto internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais assegura que "todos os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais", o mesmo pacto determina a cooperação econômica entre os Estados, bem como que o resultado desse processo de liberdade econômica aliado à cooperação esteja vinculado ao proveito de todos os Estados participantes do processo.

Referido pacto também possui um núcleo moral rígido, uma vez que determina que, "em caso algum, poderá um povo ser privado de seus meios de subsistência". É razoavelmente fácil compreender como o princípio do proveito mútuo está fundado na ideia de unidade na diversidade. Por meio da livre disponibilidade de recursos cada Estado poderá desenvolver sua economia consoante suas particularidades e necessidades.

Por sua vez, a cooperação econômica internacional pode ser vista como um processo de divisão de trabalho de caráter global que tem como meta otimizar a produção, de um modo a obter uma riqueza tão diversificada quanto sejam as necessidades dos diferentes membros da família humana.

Por outro lado, todo esse resultado de bem estar mundial só poderá ser sustentável se implementado em benefício de todos, uma vez que, do contrário, ter-se-á uma situação de injustiça que inexoravelmente levará a um estado de guerra, consoante uma das premissas fundamentais deste trabalho, ou seja, a de que a guerra é consequência da injustiça ou da intolerância.

Para que a paz perpétua seja alcançada, todavia, é preciso que as instituições internacionais sejam justas e tolerantes, ou seja, que, entre outros fatores, não coloquem um Estado em posição superior a outro, não podendo existir, portanto, qualquer diferença entre os Estados, mas apenas complementaridade.

A melhor metáfora para compreender a teleologia do princípio da complementaridade é pensar no funcionamento do corpo humano. Cada parte do corpo difere de outra sem que isso possa ser apontado como um problema. Ao contrário, a diversidade de funções desempenhadas por diferentes órgãos é fundamental para o bem estar do todo.

Analogamente, cada Estado precisa ser considerado importante caso se queira realmente atingir o objetivo de se formar uma nova ordem mundial de caráter cosmopolita. Diferenças econômicas e culturais devem ser mantidas na medida em que contribuam para criar uma unidade em meio à diversidade, onde o bem estar de um corresponda ao mesmo tempo ao bem estar do outro.

Atingida essa unidade na diversidade que se apresenta como condição para a realização da justiça e consequentemente para a obtenção da paz, a seguinte frase de Habermas passa a fazer todo sentido: "uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem igualmente [07]". De forma análoga: um Estado só pode ser livre se todos os demais o forem igualmente.

Nesse sentido, cabe aos Estados optar pela construção de uma nova ordem mundial segundo o princípio do proveito mútuo.

1.3 O PRINCÍPIO DA AUTODETERMINAÇÃO COMO COROLÁRIO DO DEVER DE TOLERÂNCIA

O princípio da autodeterminação pode ser considerado a manifestação do princípio da liberdade na esfera internacional, possuindo uma dimensão interna e outra externa. No que se refere à dimensão externa, todos os povos devem possuir liberdade para se desenvolverem conforme suas peculiares características econômicas, religiosas e culturais, desde que fundados no alicerce da justiça, e que respeitem o direito dos outros Estados de possuírem a mesma liberdade. Trata-se, portanto, de um direito à liberdade que apenas surge quando satisfeito um dever de tolerância. O conteúdo daquilo que se considera justo, por sua vez, consubstancia princípios morais hoje positivados no âmbito internacional sob a forma jurídica.

Para que seja possível a autodeterminação no âmbito externo, contudo, é fundamental ainda o respeito ao princípio da tolerância no âmbito interno, o que constitui a segunda dimensão do princípio da autodeterminação. Assim, para que um Estado possa exigir o respeito dos outros países por suas manifestações culturais que num âmbito liberal poderiam ser consideradas violações dos direitos humanos, por exemplo, ele deve respeitar a vontade divergente de seus cidadãos em relação a referidas práticas culturais, sociais, econômicas ou religiosas.

Um Estado que defende como parte de sua cultura a mutilação genital de mulheres, por exemplo, não poderia exigir que os outros Estados respeitassem essa forma de manifestação cultural, se as mulheres não são mutiladas por livre e espontânea vontade, mas obrigadas por meios físicos, ou mesmo através de coação moral, social, ou institucional.

Um aspecto interessante do princípio da autodeterminação no que se refere a sua dimensão interna é que a violação dessa dimensão por parte de um Estado pode dar origem a um dever a ser realizado por parte dos outros Estados. É que a imposição por parte de um Estado de uma cultura ou forma de pensamento a todos os seus cidadãos, sem que haja respeito às vontades divergentes, e consequentemente ao dever de tolerância, pode gerar conflitos e perseguições que, não raro, implicam existência de refugiados.

Cabe aos Estados livres assegurar refúgio aos perseguidos, podendo-se citar os refugiados da Líbia como exemplos de refugiados na contemporaneidade. Portanto, tal como se pode inferir, o princípio moral que sustenta o direito à autodeterminação consiste na premissa de que ninguém pode exigir a liberdade se não permite a liberdade de seu próximo.

1.4 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO

O princípio da cooperação pode ser entendido como manifestação do princípio da solidariedade no âmbito internacional. É preciso distinguir, contudo, solidariedade de assistencialismo, ou mesmo do que Rawls chama de dever de assistência [08] O conceito de solidariedade traz consigo a crença de que cada pessoa possui um valor único e inestimável, estando a plena felicidade de um individuo condicionada a plena felicidade de todos. Assim, os atos de solidariedade representam a crença de que ao ajudar o próximo o indivíduo ajuda a si mesmo.

A solidariedade, portanto, não representa uma relação superior-inferior, mas uma relação todo-parte, uma vez que os sujeitos passam a ser vistos como membros de um único corpo social que retira o significado de sua unidade da diversidade de seus membros. Esses membros, por sua vez, se relacionam de um modo complementar, sendo o termo complementaridade o que aparentemente melhor expressa o significado da igualdade no plano internacional.

Trata-se, portanto, de um princípio que no plano internacional tem a função de direcionar a política de cada Estado para o bem de todos, o que permitirá que o desenvolvimento seja alcançado em sua máxima extensão. A ideia chave aqui é ver o desenvolvimento como resultante do impulso de forças complementares, representadas pela riqueza de cada país obtida mediante seu direito à autodeterminação.

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Tal como visto, a autodeterminação não se refere apenas a alguns aspectos da vida de um país, a exemplo dos aspectos econômicos tradicionais, abrangendo também o poder de produzir toda uma riqueza cultural de forma autônoma. Por conseguinte a atuação complementar dessas forças dará origem a produção de uma verdadeira riqueza mundial, marcada por traços de pluralidade e diversidade.

Trata-se de verdadeira riqueza, pois apenas esse tipo de riqueza apresenta idoneidade para satisfazer as necessidades de todos os membros de uma sociedade cosmopolita emergente de uma nova ordem mundial. Com efeito, necessidades diversas exigem diversidade de riqueza para sua satisfação.


2 A FUNÇÃO DO DIREITO COSMOPOLITA NO ESTABELECIMENTO DE UMA NOVA ORDEM MUNDIAL

Rawls não vislumbra que possa existir uma relação entre os Estados similar à relação entre os cidadãos no âmbito interno. Todavia, alguns de seus proeminentes discípulos como Charles Beitz e Thomas Pogge divergiram de seu mestre ao defender que existe sim uma relação entre os Estados, destacando-se o entendimento de Thomas Pogge que asseverou ser essa uma relação de dominação.

Para especificar essa relação Pogge começa contestando a crença de Rawls de que a radical desigualdade existente entre os países ricos e pobres pode ser explicada por circunstâncias como cultura, clima, instituições sociais internas, corrupção interna, afirmando que isso são efeitos de causas históricas:

Muito disso foi construído na era colonial quando os países desenvolvidos de hoje governavam as regiões pobres de hoje, negociando as pessoas como gado, destruindo suas instituições políticas e cultura, tomando suas terras e recursos naturais e impondo seus produtos e costumes. [09]

Contudo, considera-se que esse argumento histórico de Pogge não pode ser entendido como a sua maior contribuição para a criação de uma nova ordem mundial de caráter cosmopolita fundada na justiça. Com efeito, Pogge tem o mérito de ser um dos poucos filósofos políticos contemporâneos que percebeu que as vantagens que as nações hoje desenvolvidas obtiveram por meio da violência desde a época colonial foram mantidas por meio da construção de uma ordem internacional injusta:

"Nós estamos preservando nossas grandes vantagens econômicas por meio da imposição de uma ordem institucional que é injusta(...) Há uma ordem institucional compartilhada que foi feita pelos países ricos e imposta aos países pobres". [10]

Ademais, adverte o importante filósofo que poderia ser construída uma estrutura institucional alternativa onde "a severa e extensiva pobreza não persistiria". [11]

Nesse sentido, Pogge destacou o fato de que muitas pessoas não levam em conta os fatores institucionais em suas análises da sociedade, o que se é um grave erro para um filósofo, é algo inadmissível para um economista, e "intolerável" para um jurista:

Gratos com a desatenção de nossos economistas, muitos acreditam que a ordem institucional global existente não contribui para a persistência da severa pobreza, mas que os fatores nacionais são a questão chave. (...) Contudo, uma vez que nós abandonamos esse nacionalismo explicativo é fácil encontrar fatores globais relevantes para a persistência da pobreza. [12]

Como exemplo de má distribuição de direitos e deveres realizada pelas atuais instituições internacionais, Pogge menciona, inter alia, o fato de que nas negociações da OMC os países ricos insistem em manter um estado de protecionismo em benefício de seus produtos, ao mesmo tempo em que pregam o discurso do livre mercado para os países pobres, o que denota sua hipocrisia. [13]

Igualmente, Pogge afirma que ao mesmo tempo em que os países ricos impõem uma proteção excessiva aos direitos referentes à propriedade intelectual, recebendo bilhões por isso, eles não querem recompensar os pobres pelas externalidades que eles causam por meio de sua "vasta e desproporcional contribuição à poluição global" [14]

Enfim, e o mais importante segundo Pogge, é que os países ricos importam recursos naturais dos países pobres independentemente do governo desses países ser corrupto, ditatorial, genocida, etc. Inclusive, Pogge destaca que os países ricos vendem armas para países governados por ditadores, ajudando-os a manter seu poder com base na violência. Em síntese, os países ricos compram recursos de qualquer governo ditatorial, concedendo-lhes empréstimos, armas, e tudo o mais que precisam para manter seu controle ilegítimo sobre populações oprimidas [15]

Isso para não falar de alguns casos, tal como o ocorrido no Brasil, quando os Estados Unidos financiaram o golpe de Estado promovido pelos militares em 1964, a fim de obter privilégios que durante muitos anos nos levaram à ruína. Ademais, deve-se mencionar que os Estados ricos normalmente não agem dessa forma em benefício direto de suas populações, ainda que estas sejam beneficiadas indiretamente, tal como denota Pogge, mas no interesse de grandes grupos econômicos, ou seja, no interesse do soberano "supraestatal privado difuso [16]".

Nesse sentido, pode-se afirmar que as instituições internacionais não apenas foram constituídas de modo a favorecer os países ricos, mas que também mantém um funcionamento de modo a preservar uma relação assimétrica entre os Estados, com prejuízo direto para a população dos países pobres.

Sendo assim, do mesmo modo que no âmbito interno os cidadãos são dependentes uns dos outros, entre os Estados existe essa mesma relação, o que contemporaneamente se apresenta de forma clara.

Há, todavia, uma situação específica não abordada por Pogge, onde essa relação de interdependência se apresenta de forma inequívoca, sendo esse contexto, no que se refere ao aspecto institucional, um dos mais importantes, talvez o fundamental para se compreender como alguns países conseguiram construir sua riqueza a custa dos países pobres.

Trata-se do sistema monetário internacional, cuja constituição e desenvolvimento confirmam os argumentos aludidos por Pogge no sentido de que o desenho das instituições internacionais é responsável pelo subdesenvolvimento, bem como confirmam uma das premissas deste trabalho no sentido de que as relações entre os Estados nacionais são relações de interdependência assimétrica responsáveis por causar extrema miséria para a maior parte dos membros da família humana.

Sendo assim, cumpre verificar como se desenvolvem as relações de poder no âmbito internacional, relacionando-as com o processo de desenvolvimento do sistema monetário internacional.

2.1 O PODER E O DINHEIRO NO ÂMBITO INTERNACIONAL: ASPECTOS TEÓRICOS

Tradicionalmente no âmbito das relações internacionais o poder estatal sempre esteve associado à existência de recursos naturais e à força militar. Não obstante, nas sociedades contemporâneas complexas que se relacionam por meio do Direito e de outras instituições como o dinheiro, o poder pode ser entendido também como uma propriedade relacional e estrutural que pode surgir tanto das relações entre os Estados quanto da posição que um Estado ocupe no sistema internacional considerado como um todo.

Essa nova análise do poder, em seu aspecto relacional é atribuída ao economista Albert Hirschman que ao estudar as relações comerciais do Estado nazista com seus vizinhos verificou que relações de dependência e dominação podem surgir naturalmente a partir de assimetrias no comércio internacional. [17]

Posteriormente, Keohane e Nye enfatizaram que após a segunda guerra mundial as nações se tornaram cada vez mais dependentes umas das outras, embora tal relação de dependência raramente fosse simétrica. [18]

Sendo assim, caso a interação entre os Estados acontecesse de forma assimétrica, tal assimetria seria responsável por colocar um país sob o domínio do outro:

Mais precisamente o poder emerge das relações assimétricas de interdependência entre sujeitos estatais em diferentes áreas temáticas, mediante a criação de oportunidades para que os atores menos dependentes manipulem em proveito próprio os vínculos existentes [19]

Por outro lado, autores como Kenneth Waltz, começaram a destacar em seus trabalhos a existência de uma distinção entre os aspectos relacionais e estruturais, sendo estes partes importantes para a distribuição de poder entre os agentes no âmbito internacional. [20]

Nesse sentido, um sistema, como o sistema monetário internacional, por exemplo, pode ser concebido como composto por uma estrutura e por partes interagindo. Contudo, embora a estrutura e as partes sejam conceitos relacionados, eles não são idênticos aos integrantes reais do sistema, pois, tal como afirmado por Waltz, a estrutura não é algo que possamos ver [21]

É fácil entender isso, porque os Estados que integram o sistema monetário nacional e as regras que definem a posição desses Estados no sistema não podem ser vistos como as pessoas e as riquezas naturais que compõem o Estado. Não obstante, tal como será visto, esses aspectos institucionais invisíveis, podem influenciar sobremaneira a realidade natural, sobrepondo-se a esta muitas vezes.

O sistema monetário, por exemplo, é um setor da economia onde a existência de uma assimetria institucional passa a ser responsável por definir a maior parte da situação de riqueza ou pobreza das nações. Tal como explica Cohen, nas sociedades contemporâneas "as economias nacionais estão conectadas por meio do balanço de pagamentos", ou seja, "o superávit de um país corresponde ao déficit de outro e vice versa, sendo que o risco de um desequilíbrio insustentável representa uma persistente ameaça à independência política". [22]

A partir desse novo contexto, buscou-se um novo modelo teórico de análise que fosse adequado a descrever as interações e relações de interdependência monetária entre as nações soberanas. Esse modelo foi buscado na moderna sociologia e é chamado de análise de rede social (social network analysis). Nesse modelo uma nação soberana pode ser compreendida como sendo um nó (node) conectado a outra nação, ou seja, a outro nó que, por sua vez, se conecta a outro dando origem a uma vasta e complexa rede monetária formada por nações que se conectam por meio do balanço de pagamentos.

Essas relações adquirem um caráter de interdependência porque problemas num dos nós podem gerar problemas em outro, devendo-se observar que tal suposição do modelo apresenta forte comprovação empírica, pois uma crise financeira de um país é facilmente transmitida aos seus vizinhos, podendo se tornar uma crise internacional, ou seja, da rede como um todo.

Se essas relações de interdependência acontecerem de forma simétrica, ter-se-á uma situação de cooperação entre as nações, implicando existência de um sistema financeiro internacional estável. Por outro lado, caso tais relações de interdependência aconteçam de modo assimétrico, ter-se-á uma situação de desigualdade entre as nações, com a submissão de um nó ao domínio do outro.

Uma vez constituída a rede, tal assimetria não dependerá dos atributos individuais do nó, tal como, por exemplo, os reais fundamentos de sua economia, mas da posição que este nó assuma na rede. Daí se falar que o poder numa rede não se vincula a questões naturais, sendo uma propriedade relacional; mas, sobretudo, estrutural.

As relações entre os nós, por sua vez, são constituídas por meio de regras institucionais que estabelecerão padrões de conexão de onde emanará o poder relacional, responsável pelo desenvolvimento da rede. Por sua vez, esse desenvolvimento poderá se dar conforme relações de interdependência simétrica ou assimétrica.

É possível, contudo, que após a constituição de uma rede as relações de interdependência assimétrica fiquem tão arraigadas no corpo social a ponto de fazer com que mesmo após o abandono das regras de conexão por um dos nós, os outros continuem a se conectar da mesma forma em relação a ele, tendo em vista o fato do poder outrora sustentado por normas jurídicas ter se transformado num poder econômico autossuficiente, uma vez que os nós já absorveram aquelas relações como naturais ao sistema, embora isso não seja verdade.

Todavia, o que importa é que a ilusão da suposta naturalidade dos padrões de conexão já é suficiente para que o nó desertor consiga exercer seu domínio sobre os outros nós, adquirindo cada vez mais poder e riqueza, sem precisar se submeter a qualquer restrição de ordem institucional, a exemplo de uma regra como a criada em Bretton Woods que obrigava os Estados Unidos a converter os dólares que lhe fossem apresentados pelos outros Estados em ouro.

Ocorre, contudo, que todo processo de exploração não pode durar indefinidamente, ainda que o tempo durante o qual se desenvolva possa ser suficiente para enriquecer o país desertor jogando o restante do mundo na mais completa pobreza derivada de uma interdependência assimétrica.

Pois bem, essa foi, em síntese, a exposição dos aspectos teóricos do modelo. Cabe saber agora como um país poderia ocupar uma posição de dominação frente outros países, ou seja: como é possível estabelecer relações de interdependência assimétrica em benefício próprio? Ou ainda: como isso poderia ser feito por meio do sistema monetário internacional?

Deve-se responder a essas questões de modo objetivo: um país pode estabelecer relações de interdependência assimétrica em seu próprio benefício por meio da internacionalização de sua moeda. No entanto, tal como afirmado, essa situação de dominação não pode se perpetuar indefinidamente, embora o tempo nesse caso prejudique mais os povos dominados.

Por outro lado, cabe saber também como seria possível fazer com que o sistema monetário internacional se desenvolvesse segundo relações de interdependência simétricas caracterizadoras de um real estado de cooperação internacional. Igualmente, aqui também cabe a objetividade: por meio da implantação de uma moeda única mundial, e não por meio da internacionalização de alguma moeda nacional.

Em outros termos, enquanto a internacionalização significaria conflito entre vários países, cada um querendo ocupar uma posição de dominação, ao escolherem implantar uma moeda única mundial os países estariam optando pela cooperação e estabilidade, transformando o dinheiro, que representa uma das principais causas da injustiça no mundo num meio de criação da justiça e prosperidade.

Portanto, da mesma forma que o cosmopolitismo torna o homem senhor do Estado, a moeda mundial tornaria o homem senhor do dinheiro. Todavia, essas são apenas respostas, sendo necessário justificá-las.

2.2 A MOEDA MUNDIAL COMO INSTRUMENTO DA PAZ, DA JUSTIÇA E DA LIBERDADE

Apenas num estágio muito rudimentar das civilizações o dinheiro é um fato natural e num período imediatamente posterior passa a ter sua existência vinculada a normas de cunho social estrito. Tal como explicado por Carl Menger, o dinheiro surge como um produto do mercado, ou seja, na medida em que um determinado objeto passa a ser desejado por um grande número de pessoas num determinado contexto social esse objeto pode ser facilmente trocado por outros ou, em seus termos, passa a adquirir vendabilidade. [23]

A explicação para o gado ter sido dinheiro na antiguidade estaria associada, portanto, ao fato desse animal ser amplamente valioso naquele contexto. Essa vendabilidade apontada por Menger que, mutatis mutandis, equivale ao que modernamente se denomina liquidez, é um valor distinto do valor de uso do objeto.

Nesse contexto de escambo, portanto, em que pese o gado tenha um valor intrínseco de uso, a possibilidade de trocá-lo por outros objetos também necessários para a satisfação das necessidades humanas atribui a ele um valor autônomo, ou seja, o valor de troca, conhecido apenas de um modo intuitivo, porém não científico, por essas civilizações rudimentares.

Essa falta de cientificidade conduziu as civilizações ao cometimento de diversos erros sendo um dos principais o de confundir um objeto que passou a ser dinheiro pela possibilidade de ser utilizado para se adquirir uma ampla diversidade de bens, ou seja, para adquirir riqueza, com a riqueza que tinha a função de adquirir.

O exemplo mais lastimável dessa situação de ignorância a que estavam imersas as civilizações foi o metalismo. Coube a Adam Smith, todavia, desfazer esse equívoco, de um modo a demonstrar que a riqueza das nações não era o ouro, mas a produção. Coube também ao mesmo filósofo moral demonstrar que num sistema de papel-moeda parcialmente lastreado em ouro, uma emissão de dinheiro superior às necessidades da economia poderia causar uma quebra generalizada dos bancos, uma vez que ao perceberem que a quantidade de papel-moeda emitido seria superior à quantidade de riqueza que essa moeda poderia fazer circular num determinado país, as pessoas iriam correr para os bancos de modo a trocar o papel por ouro, a fim de utilizar este para importar produtos de outras nações. [24]

A quebra desse sistema financeiro seria decorrência do fato de que o funcionamento dos bancos depende da crença de que as pessoas não sacarão o seu dinheiro ao mesmo tempo, pois se o fizerem, com toda certeza, os bancos não terão como atender a demanda, haja vista que trabalham segundo o sistema de reservas fracionárias. [25]

Muitos talvez não saibam quais são as vantagens de se utilizar um sistema de papel-moeda. A explicação oferecida por Smith é que o sistema de papel-moeda permite ao empreendedor que este utilize uma riqueza que de outra forma deveria permanecer guardada para atender situações inesperadas. Ou seja, ao invés de utilizar certa quantidade de ouro para contratar empregados e aumentar a produção o empreendedor tinha que mantê-la parada por causa das incertezas do processo produtivo.

De acordo com Smith o papel-moeda emprestado pelos bancos permitia que a riqueza parada se tornasse uma riqueza produtiva, desde que só se emprestasse aos empreendedores a quantidade de papel-moeda equivalente à quantidade de riqueza que de outro modo eles deveriam manter como riqueza improdutiva. [26]

Esse papel-moeda ao qual Smith se referia, significava dinheiro parcialmente lastreado em ouro, e não dinheiro sem lastro, tal como é nos dias de hoje. Esse lastro, no entanto, era parcial e, de acordo com Smith, deveria servir como uma espécie de "freio" (embora o mesmo não utilize esse termo) na vontade dos banqueiros de emprestar dinheiro, pois, segundo o filósofo e economista escocês, se os bancos procurassem realmente os seus próprios interesses jamais iriam emprestar um valor superior para os empreendedores àquele que sem a existência do papel-moeda deveria permanecer guardado como riqueza improdutiva.

Caso o contrário fosse feito, esse dinheiro excedente voltaria rapidamente para os bancos que por trabalharem num sistema de reservas fracionárias não teriam como atender a essa demanda inesperada, ou seja, não teriam como converter o dinheiro apresentado em ouro. O resultado disso seria uma corrida bancária que produziria o colapso do sistema.

No que se refere às consequências de uma emissão de papel-moeda excessiva para a causação de um déficit no balanço de pagamentos, é fácil perceber que o dinheiro em excesso provocaria uma elevação dos preços internos e da renda nominal, o que, como se sabe, provocaria um aumento das importações, pois uma parte da renda é destinada ao consumo interno, outra à poupança, e outra à importação.

Quando os exportadores fossem trocar a moeda estrangeira por ouro, o que gradativamente passou a ser uma atribuição dos Bancos Centrais, o país do importador não teria ouro suficiente, pois permitiu uma emissão de papel-moeda acima das necessidades da economia, embora os defensores radicais de um sistema 100% lastreado afirmem que bastaria uma emissão parcialmente lastreada para que esse processo fosse desencadeado. Ademais, o aumento dos preços internos, por certo, também contribuiria para a redução das exportações e aumento do déficit. [27]

O resultado disso, em última instância, seria ou a deflagração de um processo inverso, ou seja, de deflação por parte do Estado inflacionário, o que não seria bem visto pelo povo e pelos políticos de um modo geral por implicar corte de gastos, ou o abandono da conversão da moeda em ouro, retirando o freio que impede o crescimento desmedido de um processo inflacionário.

Tal lógica foi sendo confirmada no decorrer da história. A primeira guerra iniciada em 1914 pôs fim ao padrão ouro internacional, pois as despesas de guerra obrigaram os países a emitir moeda para financiá-las, o que causou um grande processo inflacionário, e colocou o sistema financeiro internacional num grande caos. Durante esse período o câmbio era flutuante e os países estavam imersos numa guerra cambial marcada por uma constante desvalorização de suas moedas para adquirir preços competitivos no mercado internacional.

Diante desse cenário caótico os países decidiram retornar ao padrão-ouro. A Grã-Bretanha, todavia, para manter seu prestígio internacional sobrevalorizou o valor da libra em relação ao ouro, o que lhe trouxe graves problemas econômicos durante a década de 20, uma vez que isso deprimiu suas exportações. [28]

Para impedir que circunstâncias econômicas retirassem seu poder político, a Grã-Bretanha decidiu utilizar este, a fim de promover uma reformulação do sistema monetário internacional em seu benefício [29]. Tal reformulação foi realizada na Conferência de Gênova em 1922.

Nessa Conferência foi estabelecido o chamado padrão ouro-câmbio. De acordo com esse padrão os Estados Unidos que durante a primeira guerra não haviam abandonado o padrão-ouro clássico permaneceriam nesse sistema. Por outro ladro, libras só seriam convertidas em ouro em grandes barras, limitando tal conversão às transações internacionais. [30]

Com isso, relembrando os ensinamentos de Smith outrora referidos, o primeiro obstáculo imposto pelo padrão ouro àquelas tendências inflacionárias havia sido retirado, pois em caso de uma emissão de moeda em excesso, mesmo que os cidadãos britânicos comuns quisessem trocar esse excedente por ouro com o fim de importar, não poderiam, sendo, portanto, obrigados a permanecer com uma quantidade de dinheiro desprovida de valor real.

Nesse sentido, o que segundo os ensinamentos de Smith deveria resultar na quebra dos bancos, resultaria num aumento dos preços internos. O outro obstáculo seria o obstáculo externo, ou seja, encontrar uma forma de impedir que os exportadores estrangeiros trocassem as libras recebidas de suas transações comerciais com os britânicos por ouro, uma vez que os altos preços internos ocasionados por emissões inflacionárias resultariam num déficit no balanço de pagamentos e na consequente diminuição das reservas auríferas da Grã-Bretanha.

Esse problema também foi resolvido na Conferência de Gênova, uma vez que ao invés de trocarem as libras por ouro, os outros países deveriam manter grande parte de suas reservas em libras. Além disso, o governo Inglês poderia não apenas converter as libras em ouro, mas também em dólares que, todavia, permaneceriam vinculados ao ouro. Esse novo contexto transformava o sistema monetário numa pirâmide: na base estavam diversas moedas atreladas a uma das moedas chave dessa pirâmide, ou seja, a libra. Por sua vez, a libra estaria atrelada ao dólar que permanecia atrelado ao ouro sendo a outra moeda chave do sistema. [31]

Caso os países cujas moedas formavam a base da pirâmide decidissem inflacionar em relação à libra, teriam necessariamente que ajustar o consequente déficit no balanço de pagamentos causado pelo processo inflacionário, uma vez que sem libras não poderiam atuar no mercado internacional. Para ajustar o déficit teriam basicamente que aumentar as exportações e cortar gastos.

O mesmo não acontecia com a Grã-Bretanha, pois esta poderia ajustar o seu déficit por emissão monetária, ou seja, tinha o privilégio de pagar suas dívidas internacionais com a própria moeda, o que lhe traria imensos benefícios econômicos devidos principalmente aos ganhos de senhoriagem [32]. Além disso, a Grã-Bretanha possuía condições vantajosas de negociação com os credores, uma vez que num sistema onde ter libras era fundamental para adquirir estabilidade econômica todos estariam dispostos a conceder crédito aos Ingleses. [33]

Esses privilégios, contudo, não poderiam ser sustentados indefinidamente, o que não impediria, contudo, que a desigualdade econômica existente durante esse período provocasse a falência dos países que formavam a base da pirâmide monetária e acentuasse a supremacia política e econômica dos países que estivessem no topo.

Igualmente, a eventual quebra do sistema não afetaria unicamente a nação que abusou de seus privilégios, mas a todos, sobretudo, num sistema econômico em que, tal como apontado por Benjamin Cohen, "as economias nacionais estão inescapavelmente conectadas através do balanço de pagamentos". [34]

No caso do sistema ouro-câmbio estabelecido pela Conferência de Gênova, quanto mais os países acumulavam libras que crescentemente perdiam seu valor, mas se desconfiava da capacidade da Inglaterra em honrar seu compromisso de trocar libras por ouro, temendo-se o resultado da constante desvalorização da libra para as reservas internacionais. Assim, quando a França decidiu trocar suas libras por ouro, a Inglaterra foi forçada a abandonar esse sistema [35]. Portanto, embora durante algum tempo os ingleses tivessem conseguido postergar o acerto das contas, tirando benefício disso, o dia fatal havia chegado.

O resultado da quebra do sistema foi uma desestabilização do sistema financeiro internacional que voltou a funcionar segundo um regime de câmbio flutuante com uma intensa guerra cambial entre os países, promovida por meio de desvalorizações artificiais que segundo Cordell Hull, Secretário de Estado Norte Americano, teria sido a principal causa da segunda guerra mundial. [36]

O caos mais uma vez estava instaurado e, mais uma vez, os Estados após um grande período de turbulências tiveram a oportunidade de estabelecer um sistema monetário equitativo entre as nações soberanas na Conferência de Bretton Woods. Duas foram as propostas apresentadas: uma americana e outra inglesa. A proposta americana pretendia instaurar um sistema similar ao estabelecido na Conferência de Gênova com a diferença de que o dólar seria a única moeda chave vinculada ao ouro. As outras moedas estariam vinculadas ao dólar, cabendo ao FMI zelar para que as taxas de câmbio entre as moedas base permanecessem estáveis em relação à moeda americana que, por sua vez, deveria permanecer estável em relação ao ouro.

As taxas de câmbio, por certo, poderiam ser ajustadas sempre que fosse demonstrada a existência de transformações no lado real da economia, evitando, portanto, desvalorizações artificiais. Por outro lado, o FMI poderia ajudar países deficitários que tivessem problemas contingenciais, de um modo a preservar o sistema estabelecido. [37]

Tal proposta, todavia, idealizava o funcionamento de um sistema monetário internacional com dois problemas essenciais.

2.3 A MOEDA MUNDIAL E O FIM DO PRIVILÉGIO EXORBITANTE

O primeiro deles era que nesse sistema os Estados Unidos teriam o que Valéry Giscard d`Estaing chamou em 1960 de "um privilégio exorbitante consistente na faculdade de financiar suas transações correntes com o restante do mundo mediante emissão monetária própria e de financiar suas necessidades orçamentárias em condições vantajosas, em virtude da demanda por ativos denominados em sua moeda". [38]

A possibilidade de financiar suas transações correntes mediante emissão monetária própria significaria que, a exemplo do que ocorreu com a Grã-Bretanha durante o padrão ouro câmbio, os Estados Unidos seriam o único país do mundo com a possibilidade de pagar suas dívidas internacionais utilizando a própria moeda. Isso proporcionaria os mesmos benefícios de senhoriagem desfrutados outrora pela Grã-Bretanha, que servem como grande incentivo para manter um déficit no balanço de pagamentos, política essa mantida até os dias de hoje pelos Estados Unidos.

Em termos simples, como o custo para fabricar 1 dólar é muito inferior do que 1 dólar, os Estados Unidos adquirem bens de outros países a um custo real extremamente baixo e muito menor do que o pago no mercado internacional. Com efeito, para o Brasil pagar uma dívida no valor de 500 milhões de dólares ele precisará produzir bens que possam ser vendidos no mercado internacional por 500 milhões de dólares, enquanto que para os Estados Unidos pagar uma dívida no mesmo valor bastará fabricar esse dinheiro, o que evidentemente terá um custo muito menor do que aquele arcado pelo Brasil.

Muitos, por certo, poderiam argumentar que se os Estados Unidos abusassem desse privilégio, o dólar iria se desvalorizar em relação ao ouro, o que, por sua vez, poderia implicar perda de reservas que os obrigaria a adotar uma política econômica mais restritiva. No entanto, essa seria apenas uma das possibilidades. Com efeito, os Estados Unidos poderiam tanto exercer o seu poder político para que os outros países não trocassem suas reservas em dólar por ouro, tal como foi feito pela Grã-Bretanha como poderiam seguir o exemplo desta num outro sentido, ou seja, abandonando seu laço com o ouro, de um modo a continuar implementando uma política de gastos financiada por emissão monetária. A última opção foi a escolhida, sendo que em 1971 o Presidente Nixon anunciou que estaria quebrando o acordo feito em Bretton Woods.

Seria ingenuidade, no entanto, pensar como Rothbard e atribuir o abandono dos Estados Unidos ao acordo simplesmente porque não teria mais capacidade de honrar seu compromisso de converter dólares em ouro. Ora, se os Estados Unidos tiveram poder político para descumprir um acordo tão importante para o sistema monetário internacional como o acordo de Bretton Woods, sem sofrer qualquer represália internacional, era porque tinham poder suficiente para impor "goela a baixo" seus dólares contra qualquer pretensão estrangeira de convertê-los em ouro.

A questão é, por certo, mais complexa, e se refere ao fato dos Estados Unidos terem adquirido uma posição de centralidade na rede monetária [39] que embora tivesse sido fruto da constituição injusta do sistema monetário definido em Bretton Woods, era tida como um fato natural em 1971. Ou seja, havia acontecido o que foi dito no tópico anterior quando foi exposto o modelo teórico das relações de poder no âmbito internacional [40]

Sendo assim, a análise de Rothbard desconsidera que o abandono dos Estados Unidos ao acordo não lhe causaria nenhum ônus, pelo menos no curto prazo, mas apenas lhe atribuiria benefícios que lhe permitiriam se firmar como potência mundial. [41]

Em síntese, portanto, pode-se afirmar que a primeira vantagem que um país obtém ao internacionalizar sua moeda é poder importar produtos a um valor mais baixo do que os outros. Ele pode, por exemplo, comprar empresas em outros países, recursos naturais, e todo tipo de riqueza real imaginável, simplesmente ao custo de emissão de sua moeda. Por outro lado, esse benefício de senhoriagem somado ao fato de ter sua moeda como moeda de reserva internacional faz com que o dinheiro pago pelas riquezas dos outros países retorne ao país emissor sob a forma de investimento em títulos públicos do tesouro. Isso porque o dólar recebido por um exportador Chinês que exporta algo para os Estados Unidos, por exemplo, é trocado por yuans com o Banco Central da China que, por sua vez, investirá esses dólares principalmente em títulos do tesouro dos Estados Unidos. Isso ocorre com os outros países provocando uma diminuição dos juros nos Estados Unidos. Sim, porque, como se sabe, um aumento da procura por títulos aumenta o preço destes, significando uma diminuição da taxa de juros, dado que o preço dos títulos varia de modo inversamente proporcional com a taxa de juros.

Essa queda dos juros tem reflexos tanto no âmbito interno quanto no externo. No que se refere à economia interna, em tese, com os juros baixos é possível aumentar o investimento e o consumo até o ponto de se atingir o pleno emprego. Por sua vez, no que se refere ao âmbito externo, é possível ganhar com a arbitragem da taxa de juros. Se os Estados Unidos vendem um título para o Brasil devendo honrá-lo daqui a um ano, por exemplo, nesse intervalo de tempo eles poderiam emprestar esse dinheiro numa taxa de juros suficiente para pagar o Brasil e ainda ter lucro.

Ocorre, contudo, que esse raciocínio é insuficiente para explicar o funcionamento do sistema atual, porque desconsidera a atuação do soberano privado. Com efeito, é insignificante a atuação direta dos Estados Unidos na economia por meio de bancos públicos ou empresas estatais. Na prática, esse país depende da arrecadação tributária e precisa que os agentes privados constituam empresas no seu território para que sua população tenha emprego. Todavia, os agentes privados ao ter acesso a uma taxa de juros baixa no mercado financeiro norte americano não irão comprar empresas nos Estados Unidos, por causa dos altos salários, pelos encargos trabalhistas, e pelos impostos sobre a renda.

Eles irão constituir a matriz de suas empresas num paraíso fiscal para não pagar impostos [42], e suas fábricas principalmente nos países asiáticos com o fim de desfrutar dos benefícios da utilização de mão de obra escrava. Igualmente, comprarão títulos em países como o Brasil onde os juros são altíssimos. Assim, devido à abertura econômica da China que aceitou submeter sua população à exploração capitalista, e devido à necessidade de países como o Brasil de aumentar os juros para obter reservas de dólares, os benefícios de senhoriagem e a flexibilidade macroeconômica que outrora atribuíam aos Estados Unidos o status de superpotência mundial foram sendo gradativamente transferidos para o soberano privado que hoje assume posição predominante ao lado dos Estados nacionais, determinando, inclusive, as políticas destes.

Como o lucro dos investimentos do soberano privado vai parar num paraíso fiscal ao invés de render tributos para os Estados Unidos sua única alternativa para sanar seus déficits impagáveis é por meio de emissão de moeda, a qual enriquece mais o soberano privado, empobrece os países que possuem reservas em dólar, e permite a criação de "bolhas financeiras" que não tardam em se transformar em crises financeiras internacionais que, por sua vez, prejudicam todo mundo.

É claro que muitas outras questões poderiam ainda ser analisadas, como um estudo mais detalhado das vantagens econômicas e políticas oriundas da internacionalização de uma moeda nacional, o que, todavia, transcenderia os limites deste trabalho.

Com efeito, o objetivo deste trabalho consiste apenas em mostrar que a internacionalização de uma moeda coloca o país emissor dessa moeda numa posição de centralidade e superioridade no sistema monetário internacional, a qual é incompatível com o ideal de cooperação que pressupõe um sistema monetário fundado em relações de interdependência de natureza simétrica.

Nesse sentido, pode-se afirmar que numa sociedade cosmopolita não podem existir privilégios, pois o inevitável abuso destes trará como consequência a crise e a pobreza, inclusive, para aqueles que abusam de seu poder exorbitante, ainda que esses poucos homens, os quais não se eximem de cultuar a escravidão, não sejam tão vítimas da miséria financeira quanto o é a maioria dos membros da família humana. Inobstante, são vítimas da pior forma de miséria que existe, ou seja, da miséria moral.

Portanto, o abuso do privilégio de financiar déficits orçamentários por meio de emissão da própria moeda trará mais cedo ou mais tarde inevitáveis problemas não apenas para o país que abusa desse poder, mas para a própria estabilidade do sistema monetário internacional.

Nesse sentido, urge reformular o sistema, implantando uma moeda mundial de reserva, em oposição à adoção de qualquer moeda internacional ou mesmo de alguma cesta de moedas, pois uma cesta de moedas internacionais apenas ampliaria o leque de países desfrutando de um privilégio exorbitante.

2.4 A MOEDA MUNDIAL COMO MEIO DE COOPERAÇÃO

É pertinente começar este tópico perguntando: qual será nossa opção? Justiça ou conflito? A internacionalização de uma moeda ou cesta de moedas gera privilégios exorbitantes que causam o enriquecimento de uma pequena parcela da população a custa da miséria de muitos. Esses muitos são trabalhadores submetidos ao trabalho escravo, pequenos e médios empresários vítimas de juros altos e de concorrência desleal, enfim: todos aqueles que não tem acesso ao mercado financeiro do pais que emite uma moeda internacional; não podem constituir empresas em países que não respeitam os mínimos direitos fundamentais do homem; não podem sonegar tributos com o uso de paraísos fiscais, ou realizar arbitragem com os juros internacionais.

Por outro lado, certo é que a China e o Brasil, por exemplo, não são os únicos culpados pelas condições dos trabalhadores ou pelas altas taxas de juros cobradas. Tais políticas são na verdade consequência de um sistema organizado de forma imperfeita, cujas deficiências são utilizadas hoje, sobretudo, pelo soberano privado, dado que mesmo os Estados Unidos já não se encontram numa posição muito favorável no cenário internacional.

O resultado disso é que enquanto os Estados nacionais atualmente estão em conflito, havendo receio de que exista uma guerra cambial que pode, inclusive, resultar numa guerra militar, o soberano privado continua a se enriquecer, independentemente das políticas econômicas adotadas pelos Estados. Com efeito, enquanto houver disparidades no sistema monetário internacional sempre haverá possibilidade de realizar arbitragem.

Enquanto existirem paraísos fiscais, grandes diferenças entre os Estados no que se refere à concessão de direitos trabalhistas e, principalmente, enquanto alguns países dispuserem de uma moeda internacional sendo, por conseguinte, beneficiados por uma taxa artificialmente baixa de juros, bem como de condições privilegiadas para financiar seus déficits no balanço de pagamentos, sempre haverá exploração que, em última instância, representa injustiça causadora de conflitos.

Nesse sentido, é necessário reconstruir a ordem econômica internacional de um modo a alcançar a estabilidade, o que deve começar a ser feito por meio da reconstrução do sistema monetário internacional, que é o ponto nevrálgico da sociedade capitalista.

Urge, portanto, transformar o sistema monetário internacional conflitivo que caracteriza a sociedade capitalista num sistema monetário cooperativista caracterizador de uma sociedade cosmopolita. Para que isso seja feito, todavia, impende-se reformular as instituições internacionais, criando-se um banco central mundial que administre as reservas dos países de modo a acabar com o ajuste assimétrico do balanço de pagamentos, promovendo um sistema monetário internacional baseado em relações de interdependência simétrica.

2.5 A FUNÇÃO DO DIREITO COSMOPOLITA NA CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA ORDEM MUNDIAL REGIDA PELO PRINCÍPIO DA INTERDEPENDÊNCIA

Ao contrário do que muitos talvez possam pensar a criação de um sistema monetário internacional desenvolvido segundo relações de interdependência simétricas, fundado numa moeda mundial administrada por um banco central mundial não é uma proposta inovadora, tal como recentemente lembrou a Presidenta do Brasil Dilma Rousseff.

Com efeito, essa foi a proposta inglesa feita no acordo de Bretton Woods por John Maynard Keynes, que foi rejeitada por contrariar os interesses dos Estados Unidos que na época estavam em posição de supremacia econômica. Infelizmente, a subordinação foi escolhida à cooperação, sem que o homem percebesse as consequências negativas disso para a humanidade.

Mesmo atualmente muitos ainda possuem uma mentalidade capitalista ultrapassada voltada a subordinar os mais fracos. Isso está por detrás, por exemplo, da proposta do especulador Jorge Soros de substituir o dólar por uma cesta de moedas. Isso seria, por certo, uma medida paliativa, inadequada a prover um sistema monetário internacional estável.

Com efeito, o segundo problema essencial da proposta americana que também não seria alterado por meio da adoção de uma cesta de moedas de reserva é que referida proposta não solucionava o problema do ajuste assimétrico que joga todo o ônus do ajuste do balanço de pagamentos para os países deficitários, sem impor obrigação alguma aos superavitários. [43] Se a renda de um país cresce, cresce também aquela parte da renda destinada às importações, o que pode provocar um déficit comercial no país que se encontra num processo de crescimento.

Num sistema econômico internacional voltado para a prosperidade, algumas coisas não podem ser aceitas como alternativas para solucionar o déficit causado pelo crescimento das importações. A primeira delas é a alta dos juros, pois salvo naqueles casos nos quais a economia esteja sendo forçada num ponto acima do pleno emprego, a alta dos juros limita o crescimento econômico de forma injustificada.

A outra consiste na desvalorização da moeda para aumento das exportações, uma vez que isso prejudica os países vizinhos e pode causar uma guerra cambial que, tal como se falou alhures, foi um dos fatores considerados como causa da segunda guerra mundial. Enfim, o aumento de tributos impede a atualização do potencial econômico de um país causando desemprego e pobreza. Sendo assim, qual seria a solução adequada à promoção da prosperidade internacional?

De plano, deve-se rejeitar a ideia da ortodoxia liberal de retornar ao padrão-ouro. Isso porque a expansão da capacidade produtiva não pode ser restringida por um elemento exógeno sem relação com a atividade econômica e passível de ser manipulado pelos agentes privados. Com efeito, não é a atividade econômica que deve se adequar aos meios de pagamento existentes, mas o volume dos meios de pagamento é que deve ser adequado ao desenvolvimento econômico.

Dever-se-ia, portanto, criar um meio de pagamento que não se confundisse com a moeda nacional de qualquer país, de um modo a evitar a existência de privilégios exorbitantes que causam uma diferença de oportunidades entre as nações, ocasionando injustiça por meio da desigualdade. Além disso, a disponibilidade desse meio de pagamento deveria se adequar ao comércio internacional e não restringir este de modo injustificado tal como acontece num sistema baseado no padrão-ouro. Enfim, ao contrário de impedir que nações em crescimento se desenvolvam, um sistema voltado à prosperidade internacional deveria permitir que todos pudessem crescer num sistema de cooperação, tal como consta na declaração sobre o direito ao desenvolvimento.

Todos esses fundamentos estavam presentes na proposta inglesa elaborada por Keynes. Para satisfazer o pressuposto de se ter um meio de pagamento com liquidez adequada ao desenvolvimento do comércio internacional Keynes propôs a criação de uma Câmara de Compensações Internacionais ICU (International Clearing Union) que centralizaria todos os pagamentos referentes a exportações e importações de bens, serviços e ativos. [44] Os Bancos Centrais nacionais teriam reservas nessa câmara de compensação centralizando o mercado de câmbio. Sendo assim, de um modo um tanto similar ao que acontece atualmente com o Convênio de Créditos Recíprocos, uma operação de exportação envolveria o recebimento das receitas de exportação por um banco no país do importador que repassaria esse valor para o Banco Central de seu país, o qual, por sua vez, transferiria esses recursos para a conta reserva pertencente ao Banco Central do país do exportador, finalizando-se a operação com o recebimento do valor da exportação pelo exportador.

Uma diferença importante, contudo, entre a ICU proposta por Keynes e o CCR ou qualquer outra câmara de compensação, é que a moeda de reserva não seria uma moeda nacional internacionalizada como o dólar, mas uma moeda escritural não pertencente a qualquer nação soberana, mas a todas as nações, sendo, portanto, uma moeda mundial. [45]

Essa moeda chamada por Keynes de bancor seria apenas transacionada no âmbito da ICU que como autoridade monetária poderia emiti-la sempre que necessário pelas necessidades do comércio internacional. Ou seja, o sistema monetário seria um instrumento em prol da economia real, e não uma fonte de especulação que a destrói. Igualmente, tendo em vista que o bancor não pertenceria a nenhum Estado soberano, nenhuma nação gozaria dos privilégios exorbitantes de senhoriagem no âmbito internacional, bem como de condições desiguais de financiamento ocasionadas pela criação de uma demanda artificial por seus ativos. Ou seja, tal flexibilidade macroeconômica que Benjamin Cohen considera ser um importante elemento de autonomia e poder para o país que emite uma moeda internacional [46] não mais existiria, ou pelo menos não seria gerada por condições artificiais sem nexo com os fundamentos econômicos.

Mais importante ainda é que a proposta de Keynes permitiria que todos os países pudessem crescer num sistema de cooperação e de proveito mútuo. Para realizar tal intento, Keynes propôs que ao invés da imposição de restrições injustificadas aos países em crescimento, dever-se-ia corrigir os déficits desses países com o superávit dos países que estivessem mantendo sua economia abaixo do pleno emprego, de um modo a fazer com que os superavitários também pudessem crescer.

Tal como foi afirmado, os Estados Unidos abusaram dos exorbitantes privilégios que lhes foram concedidos em Bretton Woods e ampliaram a exorbitância dos mesmos de forma unilateral em 1971 quando quebraram a palavra empenhada. De superavitários passaram a conviver com grandes déficits, enquanto países como a China acumulam superávits. O FMI que outrora pressionava apenas os países deficitários agora se rende a proposta de Keynes no sentido de pressionar os superavitários a importar. [47] Por que só agora o FMI mudou? Seria melhor que tivesse mudado antes, embora como se diz no cotidiano: "antes tarde do que nunca"

A proposta Keynesiana assume especial destaque no atual contexto tendo em vista os resultados adversos da crise econômica para a criação e manutenção do pleno emprego. Com efeito, segundo a doutrina preconizada por Keynes, em momentos de incerteza a poupança tende a se acumular havendo redução da demanda efetiva. Sendo assim, hoje seria essencial que países superavitários como a China diminuíssem seus superávits em prol do bem estar de países que passam por dificuldades. Não obstante, será que o modo como o sistema monetário internacional está organizado serve de incentivo para o aumento do consumo externo Chinês. Quem garante que se a China e os demais países superavitários começarem a incentivar as importações os Estados Unidos assim que recuperarem seu crescimento não tornarão a abusar de seus privilégios exorbitantes? É muito difícil que os superavitários adotem uma postura de cooperação sem que seja construído um novo sistema monetário justo e voltado à prosperidade, de um modo semelhante ao idealizado por Keynes.

Enquanto o sistema não for reformulado não haverá incentivos para a cooperação internacional, permanecendo a instabilidade que inevitavelmente gerará crises cada vez maiores. Por outro lado, a construção de um sistema monetário justo está exclusivamente nas mãos dos governantes, dependendo exclusivamente de sua vontade, pois as transformações requeridas são de cunho institucional. Ou a humanidade muda os seus valores competitivos e hierárquicos em prol dos valores da cooperação e interdependência por vontade própria, ou terá que mudar por meio do sofrimento gerado pela guerra e pela pobreza.

Sobre o autor
Fernando dos Santos Lopes

Advogado. Instrutor no Setor de Processos Disciplinares da OAB/PR. Sócio fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico IBDPE. Pós graduando em criminologia e política criminal no ICPC/Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Fernando Santos. Unidade na diversidade: os fundamentos do direito cosmopolita e sua função no estabelecimento de uma moeda mundial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2916, 26 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19412. Acesso em: 26 dez. 2024.

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