SUMÁRIO: Introdução; 1. Escorço histórico à luz da Constituição Federal de 1988; 2. Conceito de união estável; 3. Análise da possibilidade de conversão da união estável em casamento à luz das Leis nº 8.971/94 e 9.278/96; 4. A conversão da união estável em casamento no Código Civil de 2002; 5. Natureza jurídica da sentença de conversão da união estável em casamento; 6. Legitimidade para o pedido de conversão; 7. Forma; 8. Pacto antenupcial; 9. Efeitos "ex tunc" ou "ex nunc"?; 9.1 Doutrina; 9.2 Posição da jurisprudência; 9.3 A conversão da união estável em casamento no Projeto de Lei nº 2.686/96 (Estatuto da união estável); Conclusões; Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Comemorados os 20 anos da Constituição Cidadã de 1988, com inegáveis avanços e 57 emendas até dezembro de 2008, fato é que o artigo 226, § 3º, da Carta Magna [01], que trata do reconhecimento da união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar e da facilitação de sua conversão em casamento, ainda não foi regulamentado de maneira satisfatória.
As leis que se seguiram (Leis nº 8.971/94 [02] e 9.278/96 [03]), bem assim o Código Civil de 2002 [04], foram tentativas tímidas e, sob certos aspectos, frustradas de facilitar a conversão da união estável em casamento. Tentou o legislador esclarecer, mas culminou por gerar dúvidas até hoje ainda não satisfatoriamente solucionadas pela doutrina e jurisprudência.
Nesse cenário de incerteza jurídica, os Tribunais de Justiça de vários Estados da Federação passaram a expedir "Provimentos", na tentativa de suprir a omissão legislativa e orientar os Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais de todo o país, quanto à forma de se converter a união estável em casamento, bem como quanto aos requisitos para tanto [05].
Mas, negaram, por exemplo, a possibilidade de se fazer qualquer menção no assento do Registro Civil ao período inicial de união estável desfrutado pelos conviventes anteriormente à conversão em casamento, o que gerou – e ainda gera – acalorada discussão doutrinária acerca dos efeitos ex tunc ou ex nunc da conversão, com argumentos inteligentes para ambos os lados.
É nesse contexto que o presente artigo foi idealizado e concebido pelo autor. Obviamente, não é um trabalho isento de crítica; antes, procura demonstrar a diversidade de entendimentos acerca do tema, ocasionado pela mixórdia legislativa.
Porém, não nos furtamos à responsabilidade de emitir nosso entendimento sobre cada questão, sempre que considerado oportuno. Quiçá possa o presente trabalho contribuir de algum modo para uma ampla reavaliação do tema, corrigindo-se os erros e omissões do passado.
1.ESCORÇO HISTÓRICO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
O artigo 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988, dispõe que:
"Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".
O reconhecimento da união estável como entidade familiar é, pois, a grande inovação da Constituição vigente, representando a valorização do amor e do afeto.
Entretanto, nem sempre foi assim. Anteriormente à Constituição Federal de 1988, vigorava a regra de que a família era constituída pelo casamento (artigo 175 da Constituição Federal de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/69), sem que se fizesse qualquer referência à inegável existência das uniões de fato. A lei insistia em não ver o que toda a sociedade via, ou seja, que muitos casais, por mera opção, preferiam constituir suas famílias sem as formalidades e limitações impostas ao casamento, refletindo um tipo de relacionamento, por assim dizer, "aberto".
A Lei do Divórcio (Lei nº 6.515, de 26.12.1977 [06]), a seu turno, significou um extraordinário avanço na regularização das uniões de pessoas que se achavam separadas judicialmente, mas jamais se preocupou em proteger direitos decorrentes das uniões de fato então existentes.
Sem dúvida, a inovação se deu com a Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 226 [07] define a família como base da sociedade, tendo especial proteção do Estado. Embora o texto constitucional deixe claramente transparecer sua preferência pelo casamento, este não mais figura como pressuposto único de constituição de família, restando estendida a proteção do Estado à união estável entre homem e mulher (i.e., não entre pessoas do mesmo sexo) [08], considerada como "entidade familiar", devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (artigo 226, § 3º, da Constituição Federal).
Ainda digno de nota, o artigo 226, § 4º, da Constituição Federal [09], arrola, também, como entidade familiar, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, prestigiando e protegendo a denominada "família monoparental", cada vez mais frequente em nossa sociedade.
Não há dúvida que a Constituição Federal de 1988 avançou – e muito – ao reconhecer e atribuir existência jurídica à união estável, bem como ao admitir a possibilidade de sua conversão em casamento. Entretanto, coube à legislação ordinária, mais tarde, regular o disposto no artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, o que foi feito – ainda que a nosso ver de maneira não totalmente acertada –, por intermédio das Leis nº 8.971/94 e 9.278/96, bem como pelo Código Reale de 2002, conforme será demonstrado na sequência deste trabalho.
2.CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL
Conceituar, a princípio, é tarefa que cabe à doutrina. Assim sendo, Marco Aurélio S. Viana [10] define a união estável como sendo "a convivência entre homem e mulher, alicerçada na vontade dos conviventes, de caráter notório e estável, visando a constituição de família".
Não obstante, ao tratar da união estável, a própria lei (Código Civil Brasileiro, artigo 1.723) assim dispôs:
"É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".
Do conceito legal acima transcrito – que reproduz, em parte, o da Constituição Federal (artigo 226, § 3º) –, podemos extrair os requisitos necessários para a caracterização da união estável, ou seja, a publicidade, a continuidade e a durabilidade.
Conforme ensina Moacir César Pena Jr. [11]:
"o requisito da publicidade deve ser visto com uma certa cautela, até pelo respeito que se deve ter à vida privada das pessoas. Há companheiros que se mostram de forma ostensiva no meio social, outros preferem não se fazerem (sic) notar com tanta intensidade. Nenhum deles é obrigado a declarar em ato ou documento oficial que vive em união estável. O importante é que a relação afetiva não tenha caráter clandestino e não passe despercebida perante os olhos da sociedade.
A continuidade é requisito subjetivo que não deve ser aferido com tanta rigidez, até porque ninguém consideraria estável uma relação cheia de interrupções. Deve-se entender que, assim como no casamento, podem ocorrer eventuais desentendimentos entre os companheiros que os levem a uma rápida separação, logo seguida de reconciliação, o que, ao (sic) nosso ver, não seria suficiente para descaracterizar a estabilidade da união.
De difícil análise é o requisito da durabilidade, visto que, ao contrário da Lei nº 8.971/94, o Código Civil, ao (sic) nosso ver, acertadamente, não determinou um prazo específico para a caracterização da união estável. Apesar de algumas leis fixarem prazo para que os companheiros se façam merecedores de alguns benefícios, muitas vezes só saberemos o tempo de duração da união estável ao término da relação".
Atentos aos requisitos acima, é necessário que os companheiros tenham em mente que a união estável deve sempre ser estabelecida com o fito de constituição de família (do contrário, defrontaríamo-nos com a instabilidade da união), sendo indispensável que a representação social do casal estabeleça, ab initio, comunhão plena de vida, afeto e interesses, com base na igualdade de direitos e deveres entre os companheiros (Código Civil Brasileiro, artigo 1.511 [12]).
Note-se, a propósito, que assim como no casamento, desimporta que os companheiros gerem ou não prole, tampouco desimportando que mantenham ou não relações sexuais, para que reste caracterizada a união estável.
Por outro lado, na legislação estrangeira, notadamente no artigo 521.1 do Código Civil de Quebec [13], Canadá, a união estável (ou civil union) é definida como sendo:
"a commitment by two persons 18 years of age or over who express their free and enlightened consent to live together and to uphold the rights and obligations that derive from that status. A civil union may only be contracted between persons who are free from any previous bond of marriage or civil union and who in relation to each other are neither an ascendant or a descendant, nor a brother or a sister."
Na Nova Zelândia, o Civil Union Act [14],de 09 de dezembro de 2004, dispõe:
Overview of civil union"
(1) Two people, whether they are of different or the same sex, may enter into a civil union under this Act if:
(a) they are both aged 16 or over (but people aged 16 or 17 must obtain consent);
(b) they are not within the prohibited degrees of civil union as set out in Schedule 2 (but in some cases a court may dispense with this prohibition);
(c) they are not currently married or in a civil union with someone else (but married couples may enter into a civil union with each other).
"E, ainda, no Uruguay, foi aprovada, em 18 de dezembro de 2007, a Ley de Unión Concubinaria, para heteros e homossexuais [15].
Como se vê, tanto na legislação brasileira quanto na alienígena, a união estável guarda íntima relação com o desejo de os companheiros constituírem família, embora em algumas jurisdições, como, por exemplo, Quebec, Nova Zelândia e Uruguay, destine-se a casais de diferente ou mesmo sexo, no que se diferencia do Brasil, que até o presente estágio admite, apenas, a configuração da união entre homem e mulher.
3.ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO À LUZ DAS LEIS Nº 8.971/94 E 9.278/96
A Lei nº 8.971/94, que regulou o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão, nada dispôs acerca da possibilidade de conversão da união estável em casamento. Entretanto, teve o mérito de regular, pela primeira vez, o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, dispondo em seu artigo 1º que:
"A companheira comprovada de um homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de 5 (cinco) anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade".
De maior interesse, portanto, dentro do escopo do presente trabalho, é a análise da Lei nº 9.278/96 que, também regulamentando o § 3º do artigo 226 da Constituição Federal, atribuiu melhores contornos à união estável, inclusive com expressa menção à possibilidade de conversão da união estável em casamento.
Com efeito, o artigo 8º da referida lei assim dispôs:
"Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio".
Foi aí que, passou-se à tentativa de operacionalizar a conversão antes prevista na Constituição Federal de 1988, embora de forma deficiente, eis que deixou a lei ordinária de especificar aspectos importantes, tais como as formalidades, a necessidade da expedição de editais e proclamas, os efeitos da conversão etc.
Conforme lembra Euclides Benedito de Oliveira [16]:
"a CGJSP baixou o Provimento nº 10/96, alterando as Normas de Serviço para constar que o requerimento, formulado em conjunto pelos conviventes, sujeita-se aos procedimentos normais de habilitação perante o Cartório do Registro Civil, ultimando-se com a conversão da união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade de celebração, e vedada menção de data do início da convivência".
No nosso sentir, porém, não havia motivo para se vedar a menção à data de início da convivência, eis que continuaria valendo como união estável, com consequente sujeição à divisão dos bens havidos em comum pelo casal, durante esse período.
4.A CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Inovou o Código Civil de 2002 ao inserir a união estável no livro da Família (Livro IV – Do direito de família; Título III – Da união estável).
A previsão da possibilidade de conversão da união estável em casamento vem inserida no artigo 1.726 do Código Civil, que dispõe:
"A união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil".
No entanto, deixou o dispositivo acima de cumprir o comando do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, eis que não estabeleceu qualquer facilidade para o procedimento, nem mesmo esclarecendo a forma pela qual a conversão se operaria.
Fez referência "ao Juiz", mas não esclareceu se esse juiz seria o Juiz de Direito, o Juiz de Casamentos ou, ainda, o Juiz de Direito Corregedor do Cartório de Registro Civil [17]. Tampouco informou se o procedimento do pedido de conversão da união estável em casamento seria administrativo ou judicial.
É nosso entendimento, entretanto, que o artigo 1.726 do Código Civil não cogitou da atuação do Juiz de Casamentos (ou Juiz de Paz), porquanto o ato de conversão da união estável prescinde de celebração solene.
Logo, parece-nos sempre necessária a intervenção do Juiz de Direito, a quem caberá zelar, principalmente, pela verificação de eventuais impedimentos matrimoniais dos conviventes, além, é claro, da intenção de se constituir família, sem o que a conversão da união estável em casamento não poderá ser admitida.
Por fim, dissentimos da parcela da doutrina que aduz ser o pedido judicial de conversão um fator dificultador, pelo que se estaria deixando de dar cabal cumprimento ao disposto no artigo 226, § 3º, da Constituição Federal [18]. É que, custa-nos aceitar que, deliberadamente, possa algum Juiz de Direito criar qualquer dificuldade ou embaraço injustificado ao pedido de conversão da união estável em casamento. Ao contrário, certamente zelará o magistrado pela segurança jurídica do procedimento de conversão, o que, presume-se, seja de interesse dos conviventes. Não ignoramos, entretanto, que haja certa demora – justificada – do Poder Judiciário em julgar as questões que lhe são submetidas à apreciação, mas isso jamais poderá ser entendido como "embaraço" à concessão da conversão, nem mesmo fator "dificultador" da aplicação do comando constitucional.
Com efeito, não se pode pretender incentivar os conviventes a casar diretamente, ou mesmo compeli-los a converter sua união estável em casamento no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, sob o falso argumento de que o Poder Judiciário dificultaria, supostamente, dita conversão. Isso seria partir de uma premissa equivocada, o que, certamente, levaria a uma conclusão que não condiz com a realidade.
Ao contrário, o Judiciário vem afastando a necessidade de expedição de editais e proclamas, para a concessão da conversão [19], o que, de outro lado, ainda vem sendo exigido pelos Cartórios de Registro Civil.
Nem mesmo a necessidade de contratação de advogado para dar início ao procedimento de conversão poderia ser invocado como um fator dificultador, pois seria um profissional a mais – além do magistrado – a zelar pela observância da lei e dos interesses dos conviventes, posto se tratar a conversão de um procedimento inter volentes. Ademais, não custa lembrar, "O advogado é indispensável à administração da justiça..." (Constituição Federal, artigo 133 [20]).
Outrossim, para aqueles conviventes hipossuficientes, assim enquadrados nos termos do artigo 2º, parágrafo único, da Lei nº 1.060/50 [21], restaria aberto o caminho de aconselhamento jurídico e acompanhamento processual junto à Defensoria Pública, mercê do disposto no artigo 134 da Constituição Federal [22].
Logo, verifica-se que, em tudo e por tudo, vem o Poder Judiciário cumprindo o seu papel de garantia do comando constitucional, não sendo razoável tachá-lo de "empecilho" ou "fator dificultador" da concretização da conversão da união estável em casamento, mesmo porque, na maioria dos casos, a prova da convivência se fará mediante a oitiva de testemunhas, cabendo apenas ao Juiz de Direito proceder às respectivas oitivas.
5.NATUREZA JURÍDICA DA SENTENÇA DE CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO
O artigo 1.514 do Código Civil Brasileiro dispõe que:
"O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados". (grifamos)
Outrossim, o artigo 1.535 do mesmo Codex estabelece que:
"Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos:
De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados". (grifamos)
Não será outra, portanto, a natureza da sentença de conversão da união estável em casamento, pois se limitará a declarar os então conviventes, agora, casados, procedendo à alteração do estado civil, bem como ordenando o respectivo assento no Livro "B" do competente Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais.
A embasar essa assertiva, Arruda Alvim [23] ensina que:
"Do ponto de vista dos elementos constitutivos da ação e sentença declaratória, deve ela ser considerada a mais simples de todas, pois nela encontramos exclusivamente o elemento declaração. Daí ser ela denominada ação e sentença de mera declaração, para ser distinguida das demais ações do processo de conhecimento que, lato sensu, também são declaratórias (ao lado de conterem outro(s) elemento(s) que lhes conferem especificidade)".
O entendimento acima, inclusive, vem de encontro ao mandamento constitucional insculpido no artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, que determina que é reconhecida a união estável, entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo "a lei facilitar sua conversão em casamento".