6. VALIDADE DO CONTRATO CELEBRADO SEM A OUTORGA UXORIA DO COMPANHEIRO E EFEITOS COM RELAÇÃO A TERCEIROS
Em se tratando de matrimônio, a norma expressa no art. 1649 do Diploma Civil indica a anulabilidade do ato praticado pela pessoa casada sem a anuência do seu cônjuge, nos casos arrolados no art. 1647 do mesmo Código.
Só com o assentimento do consorte o negócio translativo de direitos é eficaz e confere integral disposição sobre o bem [36].
Todavia, na seara das uniões livres, persiste a dúvida quanto à extensão dessa sanção. Saber, portanto, se a ausência do consentimento do companheiro é capaz de invalidar o mencionado ato jurídico ainda é matéria tormentosa para a doutrina e jurisprudência.
Advogando que a ausência de consentimento não suscita a invalidade do ato, Rolf Madaleno averba que no casamento, sem a anuência do cônjuge, o negócio sequer se consolida. Já na união estável, a mera omissão de convivência do alienante, estando de boa fé o adquirente, convalida o ato de disposição do bem imóvel [37].
Na mesma esteira de raciocínio, não é demais verificar o comentário de Cristiano Chaves. Segundo ele, ainda que ocorra alienação sem a autorização do companheiro, o direito do terceiro que adquire de boa fé está protegido, não sendo possível a anulação do negócio jurídico - só será cogitado o acionamento do terceiro adquirente se tiver ele conhecimento de que o alienante vive em união estável [38].
Acrescenta, com propriedade, Zeno Veloso, que tal problema deve ser resolvido entre os próprios companheiros, através de ação indenizatória e de outras que forem cabíveis [39].
Ampliando o rol de medidas judiciais incidentes à hipótese supra aventada, mormente em virtude do ato dispositivo não atingir a metade do patrimônio comum, tornando-se, por isso, ineficaz quanto à meação do convivente, os embargos de terceiro (art. 1.046, Código de Processo Civil [40]) também se afiguram pertinentes.
Mesmo que a tendência seja de reconhecer apenas a ineficácia do ato praticado sem a vênia do par - sem a decretação de sua nulidade -, é de ser resguardada a meação do parceiro [41].
Em sentido oposto, sob a ótica de Flávio Tartuce, em função no disposto no art. 5º da Lei 9278/96 e no art. 1725 do Código Civil, pertencem aos companheiros os bens amealhados onerosamente na constância da união estável. Logo, a respectiva alienação dependerá da manifestação volitiva de ambos, sob pena de invalidade [42].
A justificativa do aludido jurista repousa na idéia de que, sem tal consentimento, trata-se de venda a non domino (por quem não é proprietário), porquanto o companheiro que tem apenas 50% aliena a totalidade do bem.
Sensato, porém, observa que se o terceiro adquirente estiver de boa fé, isto é, ignorar a existência da união estável, o referido negócio jurídico não padecerá de invalidade.
Nesse diapasão, é salutar fazer referência ao seguinte julgado que concluiu a favor do terceiro de boa fé que recebeu o imóvel como garantia:
Penhora. Bem dado em hipoteca. Devedor que vivia em união estável. Desconhecimento do credor. Validade da hipoteca. 1. Os efeitos patrimoniais da união estável são semelhantes aos do casamento em comunhão parcial de bens (Art. 1.725 do novo Código Civil). 2. Não deve ser preservada a meação da companheira do devedor que agiu de má-fé, omitindo viver em união estável para oferecer bem do casal em hipoteca, sob pena de sacrifício da segurança jurídica e prejuízo do credor (STJ, REsp 952.141/RS, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, j. 28.06.2007, DJ 01.08.2007, p. 491)
Por outro lado, tendo conhecimento do vínculo existente entre os companheiros – coproprietários do bem – deve o terceiro adquirente exigir de ambos a respectiva anuência para ter garantida a validade do negócio celebrado.
Numa perspectiva que também se coaduna com a invalidação do ato, Washington de Barros Monteiro afirma que em sendo cabíveis à união estável as regras alusivas à administração de bens, destaca-se a proibição de alienar bem imóvel sem o consentimento do consorte (salvo se a escolha recair no regime de separação absoluta de bens), sob pena de anulação do ato praticado, à luz do que estabelece o art. 1.649 do Diploma Civil [43].
Em face da teoria que admite a aludida anulação, imperioso apontar que o parágrafo único do art. 1649 do Código Civil determina que a aprovação pelo companheiro preterido torna o ato válido, desde que realizada por instrumento público ou particular autenticado. Este último instrumento parece requerer reconhecimento de firma [44].
Em verdade, tal dispositivo apenas consubstancia o comando contido no art. 172 do mesmo Livro que autoriza a convalidação do negócio jurídico anulável (salvo direito de terceiros e obedecido o requisito estabelecido no art. 173 do mesmo "Codex" [45]).
Porém, não sendo esse o intento do convivente enganado, merece destaque a legitimidade ativa e o prazo estabelecido para a propositura da respectiva ação anulatória.
Se à união estável se aplicam o regramento da comunhão parcial de bens, o comando contido no art. 1650 do Código Civil determina que a anulação pode ser pleiteada tanto pelo companheiro lesado como pelos seus herdeiros.
Por derradeiro, no tocante ao prazo, o art. 1649 do aludido Diploma dispõe que a ação anulatória poderá ser proposta até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.
Por conta dessa expressão é que o advogado e professor Rodrigo da Cunha Pereira, em 2007, na IV Jornada de Direito Civil, Volume II, elaborou a seguinte proposta de enunciado, entendendo ser outro o prazo prescricional. Veja-se.
Enunciado: O prazo prescricional para a reivindicação de direitos patrimoniais decorrentes da união estável e do concubinato é o da regra geral do Código, conforme previsto no art. 205.
Justificativa: Não há previsão legal expressa de prazos prescricionais para a união estável e o concubinato. A doutrina e a jurisprudência raramente mencionam a questão, e o CCB/2002 também omitiu-se em relação a isso, tendo a ementa supra a finalidade de preencher verdadeira lacuna nesse aspecto. Entendo, como já disse em meu livro Concubinato e União Estável 1, que a prescrição na união estável/concubinato deve seguir a regra geral do CCB/2002, art. 205, isto é, o prazo de dez anos. Obviamente não se pode perder de vista o direito intertemporal, previsto no art. 2.028, considerando que no Código Civil anterior o prazo era de vinte anos [46].
Destaque-se, no entanto, que se a interpretação do art. 1725 CC deve ser extensiva, de modo a aplicar à união estável todo o regramento da comunhão parcial de bens. Se essa entidade familiar não pode sofrer discriminação nem limitação de direitos se comparada ao casamento, também não é razoável que goze de privilégios.
Assim sendo, o prazo prescricional para propositura de ação anulatória deve ser o mesmo estabelecido pelo art. 1649 CC (2 anos a partir do término da relação estável).
7. CONCLUSÃO
A celeuma doutrinária e jurisprudencial sobre a obrigatoriedade da autorização do companheiro para a alienação de bens imóveis adquiridos de forma onerosa durante a relação convivencial e registrados em nome de apenas um deles repousa na possibilidade ou não de aplicação analógica do art. 1647, inciso I, da Lei Civil à união estável.
Todavia, conforme verificado, em vez de discutir o cabimento da analogia para o preceito supra mencionado, mormente em função de se tratar de regra de exceção - principal argumento que parece impedir a aplicação analógica, é preciso analisar essa discussão sob outro prisma.
Melhor então seria ampliar o alcance da regra contida no art. 1725 CC, interpretando-o conforme a Constituição Federal de 1988.
Ao equiparar a união estável ao casamento, a "Lex Mater" vedou qualquer espécie de discriminação protetiva entre essas entidades familiares.
Dessa forma, seguindo o espírito que anima o preceito constitucional, à norma que regula os efeitos patrimoniais da união estável (art. 1725 CC) devem incidir, na sua totalidade, os preceitos que disciplinam o regime da comunhão parcial de bens, incluindo a obrigatoriedade do consentimento do companheiro para os atos que importem venda de bens imóveis comuns, bem como as conseqüentes sanções previstas em caso de violação desse dispositivo.
8. REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato, 2. edição. São Paulo: Atlas, 2002.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, 7ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, v. 1: Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2007.
FARIAS, Cristiano Chaves; Rosenvald, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumem Juris Editora, 2011.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 1: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2010.
GOZZO, Debora. O Patrimônio dos Conviventes na União Estável. In: Wombier, Teresa Arruda Alvim; Leite, Eduardo de Oliveira.(coord) Repertório de Doutrina sobre Direito de Família, v. 4: aspectos constitucionais, civis e processuais (p. 343). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
MADALENO, R. A Fraude Material na União Estável e Conjugal. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=343, acesso em 11.06.2011
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, v. 2: Direito de Família, 37ª edição. São Paulo: Saraiva, 2004.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2006.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
OLIVEIRA, James Eduardo. Código Civil Anotado e Comentado, 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
PESSOA, Claudia Grieco Tabosa. Efeitos Patrimonias do Concubinato. São Paulo: Saraiva, 1997.
SILVA, Regina Beatriz Tavares. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2008.
SIMÃO, José Fernando. Efeitos Patrimoniais da União Estável - Alvaro Villaça Azevedo - Um Homem à Frente do seu Tempo. In: J. F. Simão, J. S. Fujita, S. J. Chinellato, & M. C. Zucchi, Direito de Família no Novo Milênio: Estudos em Homenagem ao professor Alvaro Villaça Azevedo (p. 358). São Paulo: Atlas, 2010.
TARTUCE, Fernando; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil, v. 5: Direito de Família. São Paulo: Método, 2011.
Notas
-
"Art. 226, § 3º, CF/88:
"para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento".
- Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito das Famílias, p. 441
- "Art. 1º . É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família". (grifo nosso)
- "Art. 1725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens".
- "Art. 1647. Ressalvado o disposto no art. 1648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
- Rolf Madaleno, A Fraude Material na União Estável e Conjugal
- "Art. 1648. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la".
- "Art. 1649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal".
- Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito, p. 263 - 264.
- Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro, p. 64.
- Paulo Nader, Introdução ao Estudo do Direito, p. 279.
- Alexandre Morais, Direito Constitucional, p. 11.
- Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito das Famílias, p. 439.
- Idem, ibidem, p.440.
- Idem, ibidem, p. 442.
- Idem, ibidem, p. 443.
- Idem, ibidem, p. 444.
- Idem, ibidem, p. 444
- Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, p. 166.
- Álvaro Villaça Azevedo, Estatuto da Família de Fato, p. 447.
- Regina Beatriz Tavares da Silva, Novo Código Civil Comentado, p. 1897.
- José Fernando Simão, Efeitos Patrimoniais da união estável... in: Direito de Família no Novo Milênio, p. 358.
- Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito das Famílias, p. 491.
- Cláudia Grieco Tabosa Pessoa, Efeitos Patrimoniais do Concubinato, p. 209.
- Flávio Tartuce e José Fernando Simão, Direito Civil, v. 5: Direito de Família, p. 306.
- Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, p. 177.
- Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro: Direito de Família, p. 556.
- IV Jornada de Direito Civil, v. II, p. 709-710.
- "Art. 5º. Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito".
- Débora Gozzo, Repertório de doutrina sobre direito de família... p. 343.
- "Art. 1314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la".
- Débora Gozzo, Repertório de doutrina sobre direito de família... p. 345
- Rolf Madaleno, A Fraude Material na União Estável e Conjugal
- Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, p. 176.
- Idem, ibidem.
- Rolf Madaleno, A Fraude Material na União Estável e Conjugal
- Rolf Madaleno, apud James Eduardo Oliveira, Código Civil... p. 1581.
- Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direito das Famílias, p. 491.
- Zeno Veloso, Código Civil Comentado, p. 144-145.
- "Art. 1046. Quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, seqüestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer lhes sejam manutenidos ou restituídos por meios de embargos".
- Maria Berenice Dias, Manual de Direito das Famílias, p.176.
- Flávio Tartuce e José Fernando Simão, Direito Civil, v. 5: Direito de Família, p. 307.
- Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, p. 48.
- Silmara Juny Chinelato, Comentários ao Código Civil, p. 312.
- "Art. 173. O ato de confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade de mantê-lo".
- IV Jornada de Direito Civil, v. II, p. 714-715.
I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis"