3. DA VIOLAÇÃO À INTEGRIDADE MORAL DO NASCITURO
Em específico, na apreciação dos danos extrapatrimoniais devem ser observados os danos à tutela dos direitos da personalidade, consoante afirmação de Reis (2010, p. 38). Completa, ainda, o autor:
É que, de acordo com a norma prescrita no art. 5º, inc. X da Constituição Federal de 1988, encontram-se presentes os componentes da personalidade – intimidade, vida privada, honra e imagem. Alexandre de Moraes aponta que "o direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, dentre outros, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana, como fundamento da República Federativa do Brasil. (REIS, 2010, p. 38)
Nesse contexto, elucidam Araújo e Pamplona Filho (2007):
O conceito de dano moral mantém íntima ligação com a esfera pessoal da vítima e com os valores fundamentais e essenciais da vida humana. É a violação a um direito da personalidade, como a honra, a liberdade, a integridade física e psicológica, a reputação, a dor, a paz, a alegria, a imagem, o decoro, a intimidade, o desconforto, o vexame (muitas vezes, sentimentos ligados a bens que possuem proteção constitucional).
A violação à moral do nascituro se concretiza na medida em que o mesmo possui direitos decorrentes de sua personalidade, consagrada pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e capazes de serem infringidos. Nessa senda, temos que:
[...] se atentar contra a vida do nascituro, estar-se-á violando o seu direito fundamental e, por conseguinte, violando a sua dignidade de ser humano em período de desenvolvimento. Afinal, se o direito contempla a proteção à fauna, seria inverossímil imaginar que não deve proteger aquele ser vivo que possui forma e todas as características de ser humano. (REIS, 2010, p. 40)
Nesse sentido, a análise do dano moral em favor do nascituro prescinde da adoção de uma das teorias da personalidade, tendo em vista que:
A polêmica em torno do início da personalidade humana ganha maiores contornos, quando se verifica que conferir possibilidade de reparação ao dano moral causado ao nascituro é direito corolário ao sistema de proteção já consubstanciado pelo ordenamento jurídico, independente da existência de sua personalidade. Ou seja, assegurar o direito à reparação de dano ao não nascido é corroborar a proteção dos direitos da personalidade que já lhes são assegurados de uma maneira geral, como por exemplo, o respeito à sua vida e à sua integridade física. A reparação seria mais um meio de coibir práticas que atentem contra direitos já constitucionalizados. (ARAÚJO; PAMPLONA FILHO, 2007)
Porém, in casu, a colocação do homem como centro do Estado Democrático através do reconhecimento da dignidade da pessoa humana implica na adoção da personalidade do nascituro desde a sua concepção, reconhecendo-o como pessoa. Desta forma, "considerar-se-ia que o dano foi causado a filho menor, ampliando as possibilidades de indenização e, ainda que de forma indireta, o quantum indenizatório" (PUSSI, 2008, p. 422).
A adoção da teoria natalista não protege diretamente o nascituro dos atos lesivos a sua moral. Esse é o entendimento adotado por Araújo e Pamplona Filho (2007), para quem, "[...] em havendo dano a aquele que está por nascer, haveria a possibilidade de indenização à família, não por conta de dano a uma pessoa, já que para a teoria, o nascituro não é tido como tal". Exemplifica Pussi (2008, p. 421):
O mesmo problema ocorreria se o nascituro fosse vítima de medicamento ministrado à mãe durante a gravidez, resultando em seqüelas físicas terríveis (v.g., o famoso caso dos "filhos da talidomida"). O dano a ele causado dificilmente seria indenizado, já que à época do eventus damni não detinha a titularidade do direito à integridade física. Poderia ser tentada a indenização à mãe, que resultaria numa compensação reflexa e, seguramente de menor valor pecuniário.
Da mesma forma, restaria ineficiente a adoção da teoria da personalidade condicional:
Como na teoria natalista, em caso de dano ao nascituro, haveria possibilidade de reparação a ser pleiteada pelos ascendentes, mas não com o fulcro em dano causado a pessoa (caso do filho já nascido), pois, para a referida teoria, o nascituro só adquire o status de pessoa quando nasce com vida. (ARAÚJO; PAMPLONA, 2007)
Assim, a reparação concedida também seria reflexa e, consequentemente, de valor inferior. Pussi (2008, p. 421) cita o caso do natimorto como um entrave para a adoção da teoria da personalidade condicional. Para o citado autor "a indenização por um filho morto seguramente seria maior que pela morte de um feto que jamais teve o status de ser humano" (PUSSI, 2008, p. 421).
Já pela aplicação da teoria concepcionista, o nascituro é sujeito de tutela jurídica quando da violação de seus direitos. Nery Júnior e Andrade Nery citados por Reis (2010, p. 40) apregoam que "a personalidade é inerência do homem. Personalidade é atributo da dignidade do homem. É o que faz sua figura se distinguir do outros seres animais". Diante da transcrita afirmação, Reis (2010, p. 40 - 41) conclui:
Não faz sentido deixar de atribuir a condição de dignidade ao nascituro porque ainda não nasceu. Ora, mesmo não tendo nascido, não perdeu a sua atribuição de um ser humano em fase de desenvolvimento. Nele se encontram presentes todos os elementos fundamentais e identificadores da pessoa humana e, por conseqüência, os direitos da personalidade suscetível de assegurar o direito à proteção jurídica através da tutela dos danos morais dentre outros. Aliás, é exatamente esse ser humano que anseia por nascer, totalmente indefeso, que merece a maior e a mais irrestrita proteção do ordenamento jurídico. A dignidade que se encontra presente neste ser indefeso é certamente maior em relação àqueles que possuem mecanismos de defesa própria, a exemplo dos animais irracionais. Nesse particular, a ordem jurídica é contraditória. Na medida em que oferece proteção aos enfermos e idosos, como a recente Lei sobre o Estatuto do Idoso, não assinala a especial tutela que deve merecer os nascituros.
O fato de o concepto estar no ventre materno não o faz desmerecedor da tutela jurídica como sujeito de direitos. A existência do que está por nascer, atrelada à de sua genitora, como uma fase de seu desenvolvimento, torna-o fragilizado e, por tal situação, merecedor de maior proteção aos seus direitos. Aliás, consoante pensamento de Szaniawski apud Reis (2010, p. 41) "o concepto, qualquer que seja o local em que seja o local em que se desenvolva, é sempre uma pessoa portadora de personalidade natural".
3.1 O posicionamento da jurisprudência brasileira acerca da reparação por dano moral em favor do nascituro
A evolução da jurisprudência brasileira, a respeito do dano moral em favor do nascituro, ainda é diminuta. É o que explica Pussi (2008, p. 422):
Apesar da grande polêmica acerca da personalidade jurídica do nascituro e a possibilidade de reparação de danos morais e materiais a ele infligidos, o assunto não vem sendo abordado com muita freqüência nos tribunais brasileiros. Grande parte dos julgados que envolvem este problema referem-se apenas a questões de herança, doações e vendas realizadas pelos pais em nome do ainda não nascido, apesar da grande gama de interesses que envolvem o nascituro.
Da análise jurisprudencial específica, observa-se a existência de decisões espaçadas, que, porém, com muita freqüência, se referem ao dano moral resultante do falecimento do genitor do nascituro. Por exemplo:
ATROPELAMENTO - VIA FERREA - CULPA EXCLUSIVA - INOCORRÊNCIA - NASCITURO - DANO MORAL.
Em locais densamente povoados, a responsável pela linha férrea, que, por falta de fiscalização ou de proteção adequada, permite o trânsito usual de pedestres em suas linhas férreas, obriga-se a indenizar os males provenientes da sua desídia. O filho nascido após o falecimento do pai em decorrência de acidente ferroviário, faz jus a reparação por danos morais. Não há parâmetros legais versando sobre a determinação do valor de danos morais. Daí caber, ao juiz, fixá-lo sob seu prudente arbítrio, evitando que ele seja irrisório ou, ainda, de molde a converter o sofrimento em móvel de captação de lucro. Primeira apelação provida e segunda não provida. (TJMG: 101940403916670011 MG 1.0194.04.039166-7/001(1); Relator(a): Alberto Aluízio Pacheco de Andrade; Julgamento: 22/07/2008; Publicação: 15/08/2008)
Aliás, de igual forma, está assente no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a possibilidade de concessão de danos morais em favor do nascituro também quanto ao falecimento de seu genitor anteriormente ao seu nascimento:
DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. MORTE. ATROPELAMENTO. COMPOSIÇÃO FÉRREA. AÇÃO AJUIZADA 23 ANOS APÓS O EVENTO. PRESCRIÇÃO INEXISTENTE. INFLUÊNCIA NA QUANTIFICAÇÃO DO QUANTUM. PRECEDENTES DA TURMA. NASCITURO. DIREITO AOS DANOS MORAIS. DOUTRINA. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO NESTA INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
I - Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum.
II - O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum.
III - Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional.
(STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 399028 SP 2001/0147319-0; Relator(a): Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA; Julgamento: 25/02/2002; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Publicação: DJ 15.04.2002 p.232 RSTJ vol. 161 p.395 RT vol. 803 p. 193)
Em que pese a predominância de pleitos reparatórios em casos semelhantes aos supramencionados, é plenamente possível a reparação de danos decorrentes de situações outras, como, por exemplo, o caso de sequelas que acometem o nascituro e advindas de medicamentos ministrados à genitora durante a gestação. Andrade apud Reis (2010, p. 39) defende a mencionada possibilidade:
Ante o reconhecimento legal dos direitos do nascituro, não há como negar a possibilidade de, com o seu nascimento com vida, vir ele a pleitear indenização por deformações ou problemas físicos permanentes, resultantes, por exemplo, de mau acompanhamento médico, falta de exame ou prescrição errada de medicamentos em exame pré-natal. A falta de consciência do problema por parte do infante não exclui essa possibilidade.
No mais, pode o concepto, inclusive, ter direito à reparação em virtude de danos sofridos por injúria ou difamação. Nesses termos, Capelo citado por Pussi (2008, p. 424) assegura:
A tutela da personalidade do concebido abrange inclusivamente a sua personalidade moral, devendo, por exemplo, ser civilmente indenizáveis as injúrias ou difamações ao nascituro concebido.
Também nesse contexto, "como exemplo, cita a hipótese de terceiro fazer alusão ofensiva de que o concebido não é filho do marido de sua mãe [...]" (PUSSI, 2008, p. 424).
Importante destacar que no já citado Estatuto do Nascituro (Projeto de Lei n.º 478/2007) consta, em seu art. 21, previsão expressa da reparação civil pelos danos morais sofridos pelo nascituro.
3.2 Do arbitramento do quantum indenizatório da reparação por danos morais em favor do nascituro
No arbitramento dos danos morais, em regra, são adotados critérios como "circunstâncias do caso, a gravidade do dano, a situação do ofensor, a condição do lesado, preponderando, em nível de orientação central, a idéia de sancionamento ao lesado (punitive damages)" (GONÇALVES, 2008, p. 380). Desta forma, a reparação ao nascituro deve ser reflexo de tais considerações. Assim, "o valor do quantum indenizatório, no caso de danos morais ao nascituro, deverá ser de tal natureza, que represente valores compatíveis com a realidade dimensional do ser humano presente no ventre materno" (REIS, 2010, p.43).
Para Reis (2010, p. 43), a concessão de uma indenização ínfima violaria o princípio da significância da personalidade, assim como da dignidade. Prontamente, completa o autor:
Assim, tendo em vista o valor da vida e da incomensurável fragilidade do nascituro, nada mais justo que a indenização seja arbitrada levando-se em consideração, o seu apreciável valor, bem como, o profundo respeito que ele mereceu da ordem jurídica e, particularmente, daqueles que reconhecem o seu inalienável direito à saúde e à integridade do próprio corpo. (REIS, 2010, p. 43)
Em 17 junho de 2008, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n.º 931.556 / RS (20070048300-6), emitiu o entendimento de que "é forçoso admitir que esta – a gravidade da ofensa – é a mesma, ao contrário o abalo psicológico sofrido – que não é quantificável – seja ele suportado por filho já nascido ou nascituro à época do evento morte" (ANDRIGHI, 2008). No julgado fica assente que não importa o tamanho da dor do nascituro, que é mera conseqüência do fato danoso. Para a julgadora, no caso em concreto:
[...] se fosse possível alguma mensuração do sofrimento decorrente da ausência de um pai, arriscaria dizer que a dor do nascituro poderia ser considerada ainda maior do que aquela suportada por seus irmãos, já vivos quando do falecimento do genitor. Afinal, maior do que a agonia de perder um pai, é a angústia de jamais ter podido conhecê-lo, de nunca ter recebido dele um gesto de carinho, enfim, de ser privado de qualquer lembrança ou contato, por mais remoto que seja, com aquele que lhe proporcionou a vida. (ANDRIGHI, 2008)
A quantificação do dano, conforme já explicitado, deve ser realizada de modo a não se conceder a menos que o suficiente para compensar o mal sofrido, assim como, também, não deve ser aplicada a ponto de levar ao enriquecimento sem causa da parte ofendida. Entretanto, alerta Cavalieri Filho (2010, p. 99) para o fato de que:
Na verdade, em muitos casos o que se busca com a indenização pelo dano moral é a punição do ofensor. [...] quando a vítima do dano moral é criança de tenra idade, doente mental ou pessoa em estado de inconsciência. Nesses casos – repita-se – a indenização pelo dano moral atua mais como forma de punição de um comportamento censurável do que como compensação.
Por isso, explana Reis (2010, p. 46) que "[...], o magistrado, ao estabelecer o quantum indenizatório, em face da orientação jurisprudencial do STJ, deverá considerar as peculiaridades de cada caso, observando o grau de culpa do ofensor, confrontando-o com a absoluta falta de culpa da vítima, em face dos comandos contidos no parágrafo único do art. 944, combinado com o art. 945 do Código Civil.
Por conseguinte, será devida a indenização pelos danos infligidos ao nascituro por toda ofensa aos seus direitos da personalidade, por ser pessoa humana, consagrando a dignidade, princípio regente de toda a ordem jurídica e fundamentador do Estado Democrático de Direito.