RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica na sua forma inversa no ordenamento jurídico brasileiro, a eficácia das leis existentes e a sua maturação por parte dos operadores do direito.
PALAVRAS-CHAVE: Personalidade. Abuso. Desconsideração. Alcance. Legalidade.
ABSTRACT:
This paper aims to review the implementation of the Institute of disregard of legal personality in its reverse in the Brazilian legal system, the effectiveness of existing laws and its maturation by law operators.
KEY-WORDS: Personality. Abuse. Disrespect. Scope. Legality.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Escorço Histórico. 3. Teorias Quanto ao Alcance da Aplicação do Instituto. 3.1. Teoria Menor. 3.2. Teoria Maior. 3.3. Pressupostos para utilização da teoria. 3.3.1. Dolo e Fraude. 3.3.2. Desvio de Finalidade. 3.3.3. Confusão Patrimonial. 4. Efeitos da Desconsideração Inversa. 5. Momento da Aplicação da Teoria. 6. A Eficácia da Aplicação do Instituto no Direito Pátrio. 7. Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a aplicação do instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, sob um novo enfoque jurídico, qual seja, na sua forma inversa. Assim, será demonstrado desde o seu cabimento, nos diversos ramos do direito, até a demonstração do comportamento do judiciário frente a essa nova perspectiva que vem ganhando força entre os doutrinadores e operadores do direito.
Na sua forma inversa, a desconsideração da personalidade jurídica ocorre ao revés, noutras palavras, os bens da empresa respondem por atos praticados pelos sócios, ao contrário da forma mais conhecida de desconsideração da personalidade jurídica, em que os bens dos sócios respondem pelas dívidas da empresa, nos limites estabelecidos pela lei.
Assim, serão aplicados os mesmos princípios da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma contrária, atingindo os bens da empresa por dívida dos sócios com algumas peculiaridades próprias.
Ademais, será analisada a existência no ordenamento jurídico de legislação capaz de embasar a aplicação do instituto na sua nova vertente, suas discussões e aceitação pelos operadores do direito, ou se ocorre uma lacuna legal quanto à aplicação da Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica.
Destarte, serão colacionados e discutidos alguns julgados, com o intuito de demonstrar no caso concreto como ocorre a aplicação da disregard of legal entity na sua forma inversa, demonstrando, assim, a importância de fortalecer o instituto, tendo em vista sua colaboração para a segurança jurídica, no sentido de coibir a utilização da personalidade jurídica das sociedades com fins inescrupulosos.
2 ESCORÇO HISTÓRICO
O ato de personificar coisas diferentes do ser humano tem origem recuada, desde os primórdios da humanidade, como mostram os índios através do animismo. Tal prática consiste, segundo Mamede (2008, p. 234), em atribuir às coisas vida e alma, como às árvores, às rochas, aos rios e ao sol.
Da mesma forma, desde a fonte estrutural do nosso direito – Direito Romano –pode-se constatar a personificação de seres místicos, divindades, seres sobrenaturais, deixando clara a separação que existia, entre nascer humano e ter personalidade. Nesse diapasão, ter personalidade não pressupõe ter nascido humano, ao revés, a personalidade tinha que ser conquistada como fazia os escravos, os quais eram tratados como coisas despersonificadas.
Vê-se que o direito à personalidade não tem seus fundamentos já definidos, pelo contrário, é uma construção humana, em que homens personificam seres e coisas para conseguirem atingir seus objetivos em comum.
Com a evolução da sociedade, começam a surgir grandes demandas em todos os campos das necessidades humanas, a sociedade passou a perceber que fazia parte de um grupo social e que agindo sozinha não conseguiria atingir os objetivos e necessidades requeridas pela população, passando, assim, a unir esforços em torno de um objetivo, somando forças e matéria-prima.
Diante desse contexto histórico, a personalidade jurídica surgiu como artifício da criação humana, com o intuito de viabilizar a união entre aqueles que tinham empreitadas, ou projetos maiores que a sua capacidade humana poderia materializar de forma individual, possibilitando a criação de um ente que transcendesse à pessoa de cada um dos interessados, ainda que referido ente constituísse uma pessoa supraindividual com direitos e obrigações inerentes à personalidade, mais distinta da figura de cada sócio que compunham a formação deste, ou mesmo atribuindo personalidade a uma massa de coisas.
Assim, foram criadas as associações, sociedades e fundações, com responsabilidade sobre seus atos, ou melhor, praticados pelos seus representantes, com isso retirando a responsabilidade pessoal de cada componente da nova pessoa jurídica.
Dentro dessa nova forma de personificação de coisas, viu-se a possibilidade de utilizar esse novo instituto para encobertar fraudes e ilegalidades em benefício próprio, em detrimento de terceiros que se relacionavam com a pessoa jurídica criada. Essa prática era mais latente nas pessoas jurídicas que possuíam limitadores de responsabilidades, diferenciação entre o patrimônio dos sócios e do empreendimento.
Nesse diapasão, passou a imperar grande insegurança entre aqueles que relacionavam economicamente com pessoas jurídicas, transformando o instituto que tinha o escopo de colaborar com a sociedade, na consecução de objetivos maiores, em um meio fraudulento de prejudicar credores e a coletividade.
Dessa forma, surge a necessidade da criação no direito, de mecanismo para coibir os intentos nefastos que estavam ocorrendo com o abuso do véu das pessoas jurídicas pelos seus sócios, surgindo, assim, a teoria da Desconsideração da personalidade jurídica.
De acordo com Wormser (1912, p. 498), a gênese do instituto remonta ao século XIX, mais precisamente ao ano de 1809, no caso de Bank of United States V. Deveaux, no julgamento realizado pelo juiz Marshall, em que o mesmo manteve a jurisdição das cortes federais sobre as corporations – a Constituição Americana no seu art. 3°, seção 2ª, reservava a tais órgãos judiciais as lides entre cidadãos de diferentes Estados. Ao fixar a competência das cortes federais, para julgar o litígio entre os sócios, acabou por desconsiderar a personalidade jurídica, sob o fundamento de que não se tratava de sociedade, mais sim de sócios contendores.
Pode-se destacar como fato mais importante para o delineamento do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, o julgamento que ocorreu na Inglaterra, no caso Salomon v. Salomon & co., em 1897, em que Aaron Salomon com mais seis membros de sua família criou um company, em que cada sócio era detentor de uma ação, reservando 20.000 (vinte mil) ações a si, integralizando-as com o seu estabelecimento comercial, sendo certo que Aaron Salomon já exercia a mercancia, sob a forma de firma individual. Os credores oriundos de negócios realizados pelo comerciante individual Aaron Salomon viram a garantia patrimonial restar abalada em decorrência do esvaziamento de seu patrimônio em prol da company.
Com esse quadro, o juízo de primeiro grau declarou a fraude com o alcance dos bens do sócio Aaron Salomon. Ressalte-se, entretanto, que a House of Lords, reconhecendo a diferenciação patrimonial entre a companhia e os sócios, não identificando nenhum vício na sua constituição, reformou a decisão exarada. Como aponta Verrucoli (1964), a teoria da desconsideração teve sua difusão contida em virtude de efeito vinculante das decisões da Casa dos Lordes.
Por ter o seu berço nos Estados Unidos e Inglaterra, alguns termos em língua estrangeira são de uso comum: disregard of legal entity; piercing the corporate veil e lifting the corporate veil.
A teoria chegou à legislação brasileira pelas mãos de Rubens Requião, em palestra proferida na universidade Federal do Paraná, tendo como base a fraude e o abuso de direito.
A desconsideração da personalidade jurídica tinha cabimento somente quando os sócios transferiam os bens da sociedade para seus patrimônios pessoais, deixando os débitos com a sociedade e consequentemente burlando o adimplemento das dívidas com os terceiros que negociavam com a pessoa jurídica. Só recentemente a doutrina e jurisprudência têm aceitado a aplicação inversa do instituto.
Essa nova terminologia vem sendo utilizada por parte da doutrina e jurisprudência como sendo a busca pela responsabilidade da sociedade no que diz respeito aos débitos ou por práticas diversas dos sócios, de forma a burlar a legalidade, levantando momentaneamente a personalidade da pessoa jurídica.
Em consonância com a definição do mestre Coelho (2002. p. 47), a "desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigações do sócio". Dessarte, o termo desconsideração inversa da personalidade jurídica tem utilização no momento em que se pretende responsabilizar a sociedade por dívidas pessoais dos sócios.
Nesse sentido, tem como objetivo a inversão do instituto, atacar o patrimônio da sociedade coletiva, e buscar a restituição do patrimônio do sócio fraudulento transferido para a sociedade em prejuízo de terceiros, ou melhor, de credores pessoais do sócio que se locupletou ilegalmente.
Desse modo, o sócio transfere seus bens para a pessoa jurídica a qual detém certo controle sobre seu patrimônio deixando-o protegido pelo "véu" da pessoa jurídica em total segurança. Assim, o sócio livra-se de qualquer esbulho da sua propriedade por credores pessoais os quais deviam antes da transferência do seu patrimônio pessoal para a massa empresarial. Pode-se verificar ainda que a disregard of legal entity, na sua forma inversa, tem cabimento sempre que for constatada a utilização de forma abusiva, fraudulenta ou simulada da pessoa jurídica, em detrimento de direitos de terceiros ou credores dos sócios da pessoa física.
3 TEORIAS QUANTO AO ALÇANCE DA APLICAÇÃO DA DESCONSIERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA
No ordenamento jurídico brasileiro está previsto a quebra da autonomia da pessoa jurídica em diversas leis. Ocorre que há discussão doutrinária no tocante à amplitude no momento de empregar o instituto. Nesse sentido, o mestre Coelho (2002, p. 51-52) desenvolveu duas teorias relacionadas aos requisitos auferidos no momento da aplicação da desconsideração da personalidade, quais sejam: Teoria Menor e Teoria Maior.
3.1 TEORIA MENOR
Não há critérios muito rígidos para sua aplicação. Seus requisitos são demasiadamente simplórios, visto que basta haver obstáculo à satisfação de credores, por motivo de separação do patrimônio do sócio e da sociedade. Assim, todas as vezes que a pessoa jurídica não tiver bens suficientes para adimplir os seus débitos, o patrimônio particular dos sócios responderia pela iliquidez da sociedade.
Como exemplo, até mais abrangente, podemos citar o julgado da 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça, em que foi responsabilizada outra pessoa jurídica não-sócia, tendo como espeque simplesmente a igualdade da marca do produto, senão vejamos:
DIREITO DO CONSUMIDOR. FILMADORA ADQUIRIDA NO EXTERIOR. DEFEITO DA MERCADORIA.
RESPONSABILIDADE DA EMPRESA NACIONAL DA MESMA MARCA ("PANASONIC"). ECONOMIA GLOBALIZADA.
PROPAGANDA. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR. PECULIARIDADES DA ESPÉCIE. SITUAÇÕES A PONDERAR NOS
CASOS CONCRETOS. NULIDADE DO ACÓRDÃO ESTADUAL REJEITADA, PORQUE SUFICIENTEMENTE
FUNDAMENTADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO NO MÉRITO, POR MAIORIA.
I - Se a economia globalizada não mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas, multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País.
II - O mercado consumidor, não há como negar, vê-se hoje "bombardeado" diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca.
III - Se empresas nacionais se beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinarem-se ao consumidor as conseqüências negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos.
IV - Impõe-se, no entanto, nos casos concretos, ponderar as situações existentes.
V - Rejeita-se a nulidade arguida quando sem lastro na lei ou nos autos.
Nessa medida, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não pode ter como base, requisitos tão superficiais no momento de aferir os motivos ensejadores da sua aplicação, sob pena de se tornar um ordenamento jurídico inseguro, sem parâmetros, transformando as relações jurídicas empresariais em uma verdadeira "babel".
Conforme aduz o professor Coelho (2005, p. 40), a desconsideração refere-se
[...] em toda e qualquer hipótese de execução do patrimônio de sócio por obrigação social, cuja tendência é condicionar o afastamento do princípio da autonomia à simples insatisfação de crédito perante a sociedade. É a Teoria Menor, que se contenta com a demonstração pelo credor da inexistência de bens sociais e da solvência de qualquer sócio para atribuir a este a obrigação da pessoa jurídica.
Se forem adotados requisitos tão frágeis, corremos o risco de desestabilizar toda uma economia, pois, nenhum investidor, acionista, terá interesse de investir em uma empresa sabendo que, futuramente, podem ser responsabilizados pelos débitos da companhia com o seu patrimônio particular.
Vale destacar, portanto, que foi esse o motivo do direito conceder às pessoas jurídicas personalidade própria respondendo pelos seus atos e fatos protegendo, assim, o patrimônio pessoal dos que dispuseram investir na sua constituição.
No mesmo sentido, merece críticas o disposto no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, por estabelecer hipóteses totalmente inseguras para a aplicação do disregard doctrine, mormente no tocante a insolvência ou falência, de forma pura e simples da sociedade empresária, afugentando qualquer interesse dos sócios em investirem em atividades de risco.
Nesta linha, a estabilidade dos investidores é de fundamental importância para o fortalecimento da economia do país, como dispõe Cantidiano (2002, p. 11), ao citar parecer do Deputado Antonio Kandir, oferecida à Comissão de Finanças e Tributação, quando da tramitação do projeto de lei que culminou na Lei 10.303/2001. Nesses termos, apresenta-se o ensejo para aprimorar as instituições do mercado de capitais, cuja democratização conduzirá a um maior dinamismo do capitalismo no país, visto que se trata de um mercado através do qual o empresário no Brasil poderá obter capital a um preço mais acessível, facilitando o processo de mobilização da poupança pública em atividade produtiva. Com o incremento desse mercado, poderemos nutrir sólidas expectativas no desenvolvimento das empresas que atuam no país, consolidando sua competitividade no cenário interno e externo, o que se traduzirá em uma maior oferta de empregos e melhor distribuição de rendas e riquezas.
3.2 TEORIA MAIOR
A Teoria Maior tem como características uma acuidade maior, visto que os seus fundamentos e requisitos têm solidez, isto é, estão bem delineados, têm um norte claro, para que no momento da aplicação da teoria não ocorra um insegurança jurídica.
Nas palavras de Coelho (2002, p. 51-52), "é a teoria mais elaborada, de maior consistência e abstração, que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto".
Assim sendo, parte-se da regra que as personalidades jurídicas dos sócios e da sociedade são distintas. Assim, em casos excepcionais, terá guarida a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, mas com observância dos requisitos acima expostos, pois não se pode olvidar do por que teleológico da criação da ficção jurídica denominada Personalidade Jurídica.
Corroborando com o explicitado, Serick (1958. p. 278), em monografia sobre o assunto, preleciona o seguinte:
A jurisprudência há de enfrentar-se continuamente com os casos extremos em que resulta necessário averiguar quando pode prescindir-se da estrutura formal da pessoa jurídica para que a decisão penetre até o seu próprio substrato e afete especialmente a seus membros.
Importa ainda observar pontos importantes no momento da aplicação da teoria, como confusão patrimonial, abuso da personalidade, ou mesmo fraude, e dolo no uso da empresa.
Nessa direção, o lecionado pelo jurista Requião (1969, p. 14) disciplina argumentos que vêm ao encontro do ora exposto:
Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito, ou desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar os pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.
Nesses termos, deve-se observar o preenchimento dos requisitos ensejadores da desconsideração da personalidade, conforme o disposto no art. 50 do Código Civil, para que não ocorra aplicação do instituto de forma desenfreada, tornando as relações jurídicas um campo onde reina a balburdia e a insegurança.
Ademais, não se deve esquecer que o instituto também vem disciplinado na Lei 8884/94, no seu artigo 18, também conhecida com lei Anti-truste, bem como na Lei de Crimes Ambientais, Lei 9605/98, artigo 4°. Destarte, verifica-se o surgimento de variados dispositivos legais, nos diversos ramos do direito, com o intuito de combater o uso de forma ilegal do "véu" empresarial.
3.3 PRESSUPOSTOS PARA A UTILIZAÇÃO DA TEORIA
Com espeque no examinado, constata-se que a teoria do disregard of legal entity não pode ser utilizada de forma indiscriminada, na sua forma inversa,em todos os casos em que se constatar o esvaziamento do patrimônio da pessoa física.
Para ensejar a aplicação, bem como legitimar a subsunção do instituto ao caso concreto, deve ser preenchida, ao menos, uma das hipóteses abaixo elencadas para que não se incorra em ilegalidades esvaziando a ficção legal da personificação de pessoa jurídica, que tem sido de grande utilidade para a sociedade, fomentando a produção de bens e consumo, e, por conseqüência, acarretando o desenvolvimento de toda a sociedade, sem que o patrimônio do sócio ou da empresa seja atingindo de forma indiscriminada, de maneira a desestabilizar a segurança dos patrimônios envolvidos.
3.3.1 DOLO E FRAUDE
A primeira hipótese enseja a aplicação do disregard, consistindo na utilização da personalidade jurídica de forma fraudulenta e dolosa. Toda pessoa jurídica no seu ato constitutivo, seja contrato ou estatuto social, traz no seu bojo os fins os quais nortearão a atuação futura da pessoa que vem nascendo. Ademais, têm-se outros requisitos de ordem pública que devem ser observadas no momento e durante toda a vida da pessoa jurídica até a sua baixa, após a dissolução e liquidação. Tais preceitos vêm estampados no artigo 104 do Código Civil, dentre os quais estão o objeto lícito, forma prescrita ou não defesa em lei.
Um ponto que merece destaque diz respeito ao objeto pretendido pela nova pessoa jurídica. Tal ponto deve ser observado nas suas duas facetas, de forma a unir o escritural, ou seja, o que vem especificado nos seus atos constitutivos e o material, o que realmente é executado pela azienda, sob pena de ter a sua personalidade cassada por dolo ou fraude a terceiro, quando a atividade realmente praticada pela pessoa jurídica não corresponde com o disposto no seu contrato ou estatuto, ou quando fere preceitos legais de observação obrigatória.
Nosso ordenamento não define o que significa o termo dolo. O artigo 145 do Código Civil limita-se a descrever: "São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for sua causa". Dolo, assim, consiste em artifício, engodo, encenação, astúcia, desejo maligno tendente a viciar a vontade do destinatário, a desviá-la de sua correta direção.
O dolo tem em vista o proveito ao declarante ou a terceiro. Não integra a noção de dolo o prejuízo que possa ter o declarante, porém, geralmente, ele existe, daí por que a ação de anulação do negócio jurídico, como regra, é acompanhada de pedido de indenização de perdas e danos. A prática do dolo é ato ilícito, nos termos do art. 186 (antigo 159) do Código Civil.
Já a fraude é processo astucioso e ardiloso tendente a burlar a lei ou convenção preexistente ou futura. O dolo, por seu lado, surge concomitantemente ao negócio e tem como objetivo enganar o próximo. O dolo tem em mira o declaratório do negócio. A fraude, que na maioria das vezes se apresenta de forma mais velada, tem em vista burlar dispositivo de lei ou número indeterminado de terceiros que travam contato com o fraudador. A fraude geralmente visa à execução do negócio, enquanto o dolo visa à sua própria conclusão.
Desse modo, pode-se exemplificar: há dolo quando alguém omite dados importantes para elevar o valor do seguro a ser pago no caso de eventual sinistro; há fraude se o sinistro é simulado para o recebimento do valor do seguro. De qualquer modo, é preciso encarar tanto o dolo quanto a fraude como circunstâncias patológicas do negócio jurídico, como aspectos diversos do mesmo problema.
Nesses termos, tem-se a utilização fraudulenta ou dolosa em todos os casos em que os sócios de forma direta ou indireta fazem uso da pessoa jurídica de forma ilícita ou nociva ao interesse público.
3.3.2 DESVIO DE FINALIDADE
Finalidade de qualquer objetivo consiste na razão de ser da sua constituição. Nesse sentido, a razão de existir, o propósito de criação da pessoa jurídica, além de preencher os requisitos legais, vem estampada nos seus atos constitutivos, assim, como as balizas a serem seguidas, das quais os sócios ou administradores não podem fugir como finalidade a ser alcançada pela nova pessoa jurídica.
Logo, os atos da pessoa jurídica têm que ter respaldo nos seus atos constitutivos, ao revés, o que extrapolar do estipulado não caracterizará ato da pessoa jurídica e sim da pessoa natural que está a sua frente, ensejando ações além do mandato ou ultra vires contratual, legitimando a aplicação da desconsideração da personalidade, pois, no percurso traçado pelo contrato ou estatuto, ocorreu desvio do que foi proposto como finalidade a ser galgada pela ficção jurídica, dando azo à responsabilização com o patrimônio próprio, daquele que utilizou além do delegado pela pessoa jurídica.
3.3.3 CONFUSÃO PATRIMONIAL
As pessoas jurídicas no seu ato constitutivo, de acordo com o artigo 997, III, do Código Civil, terá seu capital social definido, expresso em moeda corrente, constituindo obrigação dos sócios realizarem sua participação na formação desse capital comum, seja por aporte de dinheiro, bens ou serviços, no que dizem os artigos 1.004 a 1.006 do codex civilista. A partir desse capital, e com o registro, constitui-se um patrimônio societário que, a exemplo da personalidade jurídica, é distinto dos sócios, servindo à consecução das finalidades da nova sociedade.
Vê-se que a sociedade é, por si só, uma universidade de direito, cuja identidade e unidade são garantidas pela necessidade de manutenção de uma escrituração contábil específica, que o artigo 1.179 do Código Civil estipula ser obrigatória e que, ademais, atende à entidade.
As relações jurídicas próprias da sociedade devem guardar relação com sua finalidade e apresentarem-se claramente identificadas com tal, tanto para a preservação dos interesses da sociedade e, via de consequência, de cada um de seus sócios, bem como o interesse de terceiros, nomeadamente de credores.
Nesse sentido, a pessoa jurídica tem relações jurídicas próprias, que não se confundem com as relações dos sócios, do administrador ou mesmo, de outras entidades com as quais sejam definidas relações de fato ou de direito. Sempre que se apresentar tal confusão patrimonial, o artigo 50 do Código Civil considera-se uso abusivo da personalidade jurídica, autorizando a despersonalização da sociedade. Tudo isso dependerá do caso concreto, para conhecer a obrigação do sócio, do administrador e da pessoa jurídica.
Diante do exposto, verifica-se que para a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, o operador do direito usará os mesmos motivos utilizados para a aplicação da teoria na sua forma tradicional, com poucas adaptações ao contexto fático.