4.Considerações Finais
Essa é a realidade 20. Mas como poderemos combater isso? Como enfrentarmos algo que já não está vinculado a fatores circunstanciais, atinentes a desvios pontuais de personalidade de determinados indivíduos, mas, muito pelo contrário, incorpora-se ao próprio âmago da atividade empresarial, da gestão de pessoas? Algo, portanto, que é objetivamente lesivo, violento? Eis uma angústia que ouso compartilhar. O que fazer quando o próprio paradigma reinante, a própria cosmovisão imperante demanda práticas que desprezam a saúde física e mental do trabalhador? Fechar a empresa? Proibir a ideologia?... Seria isso razoável?!
E qual o papel do Ministério Público do Trabalho nisso? E o papel da Justiça do Trabalho? E o papel dos sindicados e dos próprios trabalhadores?
Precisamos refletir a respeito disso. É algo que se impõe. É um debate que não pode mais ser adiado. Como ensina Jorge Luiz Souto Maior 21 – de modo sempre muito percuciente –, a preocupação com o relacionamento humano travado no ambiente laboral expressa uma autêntica mudança na própria concepção do Direito do Trabalho. De fato, nessa linha de ideias, o Direito do Trabalho se desprende daquela exclusiva feição patrimonial que tanto lhe deturpa a face e mergulha de vez na portentosa dimensão existencial, talhando-se à luz da silhueta constitucional. O objetivo está em alcançar aquele tão dificultoso e almejado ponto de equilíbrio entre capital e trabalho: desenvolvimento empresarial, sempre; ofensa à dignidade humana, jamais.
Cumpre-nos, enfim, resgatar o prazer no e pelo trabalho. Ambiente de trabalho não deve ser espaço de destruição da personalidade; deve ser lugar de afirmação da dignidade. Escancaremos nossas mentes para reconhecer que trabalhamos não apenas para construir um patrimônio. Nós trabalhamos, também e sobretudo, para construir a nossa própria identidade.
Trabalho não envolve apenas "dinheiro no bolso".
Trabalho também envolve "paz no coração".
Notas
Apud OST, François. O tempo do direito. Tradução: Maria Fernanda Oliveira. Lisboa : Instituto Piaget, 2001, p. 392.
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução: Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo : Companhia das Letras, 2011, p. 31.
"Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela fostes tomado; pois és pó, e ao pó tornarás" (Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 3, versículo 19).
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"As Escrituras ensinam que Deus criou o Universo e nos fez à sua imagem (...). Mesmo assim, Deus nos amou de tal maneira que nos deu a dignidade única de sermos agentes morais livres – criaturas com habilidade de fazer escolhas, optar entre o bem ou o mal. Com o propósito de criar as condições nas quais pudessem exercitar essa liberdade, Deus estabeleceu um limite moral aos nossos primeiros ancestrais: Ele os proibiu de comer do fruto da árvore da sabedoria do bem e do mal. Os humanos originais, Adão e Eva, exerceram sua liberdade de escolha e optaram por fazer o que Deus mandara que não fizessem. Assim, rejeitaram o modo de vida proposto por Deus, bem como a sua vontade, abrindo o mundo para a morte e o mal. O termo teológico para esta catástrofe é Queda" (COLSON, Charles; PEARCEY, Nancy. E agora, como viveremos? Tradução: Benjamim de Souza. 3ª Edição. Rio de Janeiro : CPAD, 2005, p. 185-186). Nessa esteira de raciocínio, afirma C. S. Lewis que "o homem decaído não é simplesmente uma criatura imperfeita que precisa ser melhorada; é um rebelde que precisa depor as armas" (LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Tradução: Álvaro Oppermann; Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 76).
"O Senhor Deus tomou o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar" (Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 2, versículo 15).
"Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, trouxe-os ao homem, para ver como lhes chamaria; e tudo o que o homem chamou a todo ser vivente, isso foi o seu nome. Assim o homem deu nome a todos os animais domésticos, às aves do céu e a todos os animais do campo..." (Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 2, versículos 19 e 20).
"Para ser um homem autêntico, realizado, em plena posse de sua humanidade, deve o ser humano trabalhar (...). De princípio, o trabalho era alegre, desprovido de toda fadiga que o marca hoje. (...) A corrupção da humanidade, porém, privou-a da graça que acompanhava o trabalho. (...) de espontâneo e agradável que era, tornou-se o trabalho para o homem uma obrigação, a que se deve submeter por obediência. (...) pondera Calvino que a maldição não abole completamente a bênção que se associava primitivamente ao trabalho; perduram nele ´sinais´ que dão ao homem o gosto do labor" (BIÈLER, André. O pensamento econômico e social de Calvino. Tradução: Waldyr Carvalho Luz. São Paulo : Casa Editora Presbiteriana S/C, 1990, p. 523-524).
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Noutra oportunidade, ao refletir sobre o fenômeno da constitucionalização do Direito e a necessidade de impor força normativa aos princípios da Constituição Federal brasileira de 1988, assentei: "Nesses mais de 20 anos de Constituição, muita coisa ainda há por fazer. E a principal delas talvez seja justamente a conscientização de todos da sociedade – principalmente daqueles que diuturnamente lidam com o Direito – acerca do próprio papel da Constituição de 1988. Muitos falam da Constituição, ensinam sobre a Constituição, lidam com a Constituição. Poucos, porém, conhecem a alma da Constituição, a sua essência, a sua vocação, o seu propósito de vida. Vai aqui um pouco da porosidade pós-moderna: nosso vínculo com a Constituição tem sido muitas vezes tíbio, indolente, superficial, líquido. A Constituição está em nossas mesas, mas não ocupou ainda a nossa pauta de prioridades. Seus inúmeros artigos, gravados em nossa mente; seus elevados propósitos, todavia, continuam longe do nosso coração. (...) Esse é o ousado projeto neoconstitucionalista. Um constitucionalismo compromissório, dirigente. A Constituição ocupa o centro do ordenamento jurídico. Os direitos fundamentais vicejam como o coração da Constituição. A dignidade da pessoa humana é o precioso líquido carmesim que circula por todas as células do corpo jurídico. Essa novel disposição alinha o sistema, dispondo-o em um lindo arranjo constitucional dotado de perfeita sincronia humanista e vocacionado a homenagear, em alta dosagem, o ser ao invés do ter, as pessoas ao invés das coisas, o existencial ao invés do patrimonial. Razão e sentimento se unem para conduzir, tudo e todos, ao mais glorioso de nossos anseios constitucionais: a paulatina construção de uma sociedade efetivamente livre, realmente justa e verdadeiramente solidária" (MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade: uma perspectiva civil-constitucional. São Paulo : GEN/Método, 2010, p. 141-143). Vale o registro de que "construir uma sociedade livre, justa e solidária" constitui um dos expressos objetivos da República Federativa do Brasil (Constituição Federal/1988, artigo 3º, inciso I). Ainda segundo o texto constitucional, também são objetivos da República Federativa do Brasil: i) garantir o desenvolvimento nacional; ii) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; iii) promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Constituição Federal/1988, artigo 3º, incisos II, III e IV).
Constituição Federal/1988, artigo 7º, XXII: "Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança".
"A doutrina pátria define o assédio como uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica, de forma repetitiva e prolongada, e que expõe o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tem por efeito excluir o empregado de sua função ou deteriorar o ambiente de trabalho" (NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Assédio moral. São Paulo : Saraiva, 2009, p. 02).
Constituição Federal/1988, artigo 5º, XXIII: "a propriedade atenderá a sua função social"; Código Civil/2002, artigo 421: "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato".
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Não sem razão nossa Constituição Federal, ao elencar os fundamentos da República Federativa do Brasil, também aponta como tal "os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (Constituição Federal/1988, artigo 1º, IV). Perceba-se, por oportuno, que, pela clara dicção do texto constitucional, nem o "trabalho" e nem a "livre iniciativa", em si mesmos considerados, constituem fundamento da República Federativa do Brasil, mas, isto sim, a expressão social desses fenômenos, a sua incontornável conformação axiológica aos ditames constitucionais, ou seja, se e somente se densificados na realidade prática enquanto elementos que se harmonizem para a construção de uma sociedade cada vez mais livre, justa e solidária (Constituição Federal/1988, artigo 3º, I), com a promoção o bem de todos (Constituição Federal/1988, artigo 3º, IV). Logo, quando uma empresa permite, tácita ou expressamente, que um sórdido ambiente de assédio se instale em suas dependências, a estruturação jurídica daí advinda deixa de cumprir sua finalidade social, desborda das balizas ético-sociais que lhe foram constitucionalmente impostas, seja por ofensa direta à dignidade de um ou de alguns trabalhadores específicos – vítimas do assédio –, seja por ofensa indireta à própria sociedade – que, ali, naquele "microcosmos" fático-social, vê frustrado o intento constitucional de garantir o bem de todos –.
GUEDES, Márcia Novaes. Terror psicológico no trabalho. São Paulo : LTr, 2003, p. 36.
"O exame mais superficial dos fenômenos ocorridos no mundo no último quarto de século logo mostrará a extraordinária vitalidade do capitalismo nesse período. Ele se expandiu a agora ocupa todo o globo. (...) Em todos os aspectos do ´mundo da vida´, o capitalismo descobriu o material necessário para transformar tudo em novas mercadorias e em consumismo. (...) Desse modo, não é difícil compreender porque numerosos teóricos acham que a força propulsora da mudança contemporânea continua a ser o capitalismo, qualquer que seja a forma que tenha assumido. (...) A lógica interna das mudanças continua a ser a acumulação do capital e a ampliação cada vez maior do mercado" (KUMAR, Krishan, Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. 2ª Edição. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2006, p. 228-229).
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"A identificação do assédio moral organizacional, em que o assédio individual nada mais é que uma expressão parcial, rompe o tratamento psicológico do problema e devolve a discussão sobre as condições de trabalho e os mecanismos de gestão de mão-de-obra aos espaços coletivos. A sua visualização explica a inércia dos setores internos da empresa diante das denúncias individuais e a desconfiança dos trabalhadores em relação a esses órgãos" (ARAUJO, Adriane Reis de. Assédio moral organizacional. Revista do TST. Brasília, vol. 73, nº 2, abr/jun/2007, p. 214).
Justicia, a inteligência artificial do Jus Faça uma pergunta sobre este conteúdo: "Em suma, o tema aqui sugerido pretende pôr em discussão – para buscar uma resposta jurídica que lhe seja adequada – o grande paradoxo do mundo do trabalho moderno, que nos desafia, diariamente, e que assim se enuncia: enquanto uma grande parcela da população não tem acesso ao trabalho e isto põe em risco a sua sobrevivência, uma outra parcela, não menos considerável, está se matando de tanto trabalhar ou alienando-se no trabalho!" (MAIOR, Jorge Luiz Souto. Do direito à desconexão do trabalho. Fonte: <https://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18466/Do_Direito_%C3%A0_Desconex%C3%A3o_do_Trabalho.pdf?sequence=2> Acesso em: 16.09.2011).
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"Que um suicídio possa ocorrer no local de trabalho indica que todas essas condutas de ajuda mútua e solidariedade (...) foram banidas dos costumes e da rotina da vida de trabalho. Em seu lugar, instalou-se a nova fórmula do cada-um-por-si; e a solidão de todos tornou-se regra. Agora, um colega afoga-se e não se lhe estende mais a mão. Em outros termos, um único suicídio no local de trabalho – ou manifestamente em relação ao trabalho – revela a desestruturação profunda da ajuda mútua e da solidariedade. Ou seja: a intensa degradação do viver-junto em coletividade" (DEJOURS, Christophe; BÈGUE, Florence. Suicídio e trabalho: o que fazer? Tradução: Franck Soudant. Brasília : Paralelo 15, 2010, p. 21).
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"... a retração ou redução gradual, embora consistente, da segurança comunal, endossada pelo Estado, contra o fracasso e o infortúnio individuais retira da ação coletiva grande parte da atração que esta exercia no passado e solapa os alicerces da solidariedade social. [...] Os laços inter-humanos [...] se tornam cada vez mais frágeis e reconhecidamente temporários. A exposição dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão-de-obra e de mercadorias inspira e promove a divisão e não a unidade. [...] A ‘sociedade’ é cada vez mais vista e tratada como uma ‘rede’ em vez de uma ‘estrutura’ (para não falar em uma ‘totalidade sólida’): ela é percebida e encarada como uma matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de permutações possíveis. [...] Uma visão assim fragmentada estimula orientações ‘laterais’, mais do que ‘verticais’. [...] A virtude que se proclama servir melhor aos interesses do indivíduo não é a conformidade às regras (as quais, em todo caso, são poucas e contraditórias), mas a flexibilidade, a prontidão em mudar repentinamente de táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento" (BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2007, p. 08-10).
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A respeito do assunto, destaco o seguinte julgado: "Assédio Moral Organizacional. Troféus ´Lanterna´ e `Tartaruga`. O pseudo procedimento de incentivo de vendas adotado pela empresa, consistente em atribuir troféus lanterna e tartaruga aos vendedores e coordenadores de vendas com menores desempenhos na semana, trouxe-lhes desequilíbrio emocional incontestável, independentemente de quem efetivamente os recebiam, visto que na semana seguinte qualquer deles poderia ser o próximo agraciado com este abuso patronal, que ocorreu de forma generalizada e reiterada. Ficou evidente que o clima organizacional no ambiente de trabalho era de constante pressão, com abuso do poder diretivo na condução do processo de vendas. Não há outra conclusão a se chegar senão a de que todos que ali trabalhavam estavam expostos às agressões emocionais, com possibilidades de serem o próximo alvo de chacota. Nesse contexto, o tratamento humilhante direcionado ao autor e existente no seu ambiente de trabalho mostra-se suficiente para caracterizar o fenômeno do assédio moral organizacional, máxime quando presente prova de que a conduta desrespeitosa se perpetrou no tempo, de forma repetitiva e sistemática. Configurado o assédio moral e a culpa patronal, é devida a indenização pretendida pelo Reclamante" (TRT 23ª Região, 1ª Turma, RO 00795.2010.002.23.00-3, Relator: Desembargador Tarcísio Valente, publicado em 09.09.11).
Infelizmente, no Brasil, ainda não existe legislação federal tratando da figura do assédio moral. Apenas em relação ao serviço público municipal e estadual alguns regramentos podem ser encontrados. Portanto, os trabalhadores da iniciativa privada e os servidores públicos federais ainda não recebem a incidência de lei específica versando sobre o tema. Entretanto, vale o importante registro de que a Constituição Federal de 1988, com sua principiologia altamente protetiva, é detentora, por si só, de carga jurídica mais que suficiente para salvaguardar a dignidade humana de todo e qualquer trabalhador, em toda e qualquer circunstância. Não à toa a Carta Magna dispõe em seu artigo 5º, § 2º, que: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
Apresentação da obra: GUEDES, Márcia Novaes. Terror psicológico no trabalho. São Paulo : LTr, 2003, p. 13.