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O advogado e o pobre

Agenda 17/11/2011 às 13:29

Se na área de saúde tem o paramédico, o técnico em enfermagem aptos a auxiliar os serviços médicos e a prestar socorro de emergência, por que não facilitar, nas pequenas causas, para as próprias partes reclamarem seus direitos, como inicialmente acontecia com os Juizados Especiais?

O direito positivo brasileiro firmou-se no entendimento de que a defesa técnica no processo judicial é indispensável e impõe a todo cidadão, pobres ou ricos, custos que, em muitos momentos, mostram-se desnecessários. É o monopólio da representação em juízo, como, aliás, vigora o monopólio do juiz de dizer o direito da parte.

Não importa o alcance da questão, o tamanho do prejuízo, o certo é que as leis, para proteção de uns e prejuízo de outros, considera o cidadão incapaz de reclamar seus direitos e exige a contratação de um advogado.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, art. 3º, estabelece que ninguém pode descumprir a lei sob a alegação de que não a conhece. Assim, a lei atribui a todos um mínimo de conhecimento e condições para de defesa de seus direitos, dispensando, portanto, aprofundamentos técnicos científicos para ajuda na reclamação de uma pequena causa. Na verdade, o pobre não conhece a lei, mas sabe quando é prejudicado nos seus direitos e tem condições para explicitar os fatos, por vezes, mais adequadamente, do que o próprio advogado.

Se lhe roubarem qualquer bem, por insignificante que seja, não importa, é obrigado a contratar um advogado ainda que o valor do patrimônio seja inferior aos honorários; aí se seguirão as formalidades inerentes ao processo que nem a Lei dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, Lei 7.244/84, revogada abruptamente, muito menos a Lei 9.099/95, editada para substituir a primeira, nem isso foi capaz de solucionar o grande trauma do despossuído.

Um produto defeituoso, uma cobrança indevida, um serviço mal executado, tudo está previsto na lei para que seja submetido a um emaranhado de formalidades que só contribuem para aumentar as dificuldades, porque o pobre, para resolver seus problemas, busca mais a Delegacia, os postos de saúde ou a Igreja, e deixa as Cortes de Justiça como última opção.

O povo necessita dos serviços judiciais da mesma forma que o atendimento nos hospitais, a matrícula de seus filhos nas escolas, a segurança pública e o transporte coletivo.

Se na área de saúde tem o paramédico, o técnico em enfermagem aptos a auxiliar os serviços médicos e a prestar socorro de emergência, por que não facilitar, nas pequenas causas, para as próprias partes reclamarem seus direitos, como inicialmente acontecia com os Juizados Especiais?

O Ministério da Desburocratização, comandado pela mente sadia de Hélio Beltrão, entre 1979 e 1983, legalizou a justiça informal, Conselhos de Conciliação e Arbitramento, iniciada nos anos oitenta pelos gaúchos, paranaenses e baianos, por meio da Lei 7.244 de 7/11/84. Essa lei conferia à própria parte o direito de reclamar seu direito; não precisava escrever nada; bastava comparecer a um Juizado Especial de Pequenas Causas, narrar sua queixa para um serventuário do sistema informal, que se incumbia de marcar para os próximos dez (10) dias uma sessão de conciliação, sem aguardar formalidade alguma, a exemplo da distribuição, como se processa no sistema formal. Nesse encontro entre as partes, se quisessem, seria instalado o juízo arbitral que instruiria a causa e apresentaria o laudo para homologação em cinco (5) dias. Não admitido o juízo arbitral, imediatamente, passaria à instrução e julgamento. Era o julgamento imediato.

Isso aconteceu por poucos anos e o subscritor foi personagem desse fato. Durante a vigência da Lei 7.244/84 tornou-se muito fácil para o pequeno chamar o grande à justiça, mas tal fato não era interessante para os empresários e para os poderosos. Vigorava a expressão EU TE PROCESSO, em demonstração viva da obtenção do direito violado; todavia, pouco tempo depois, sobressaiu outra expressão, VÁ PROCURAR SEUS DIREITOS, em alusão firme de que o processo nunca seria concluído.

Acabou-se com o Ministério da Desburocratização, em 1986, alterou-se a lei dos Juizados e criaram-se as dificuldades inerentes à burocratização.

A Lei 7.244/84 foi substituída pela Lei 9.099/95 e nesta encontrou-se uma máscara para enganar o jurisdicionado: aumentou-se o valor das causas de competência dos Juizados de vinte (20) para quarenta (40) salários mínimos, passando a impor a obrigatoriedade do patrocínio de advogado em causas superiores a vinte (20) salários. Foi o suficiente para a exigência alcançar todas as causas dos Juizados, independentemente do seu valor; hoje, na prática, todas as reclamações que se processam no sistema especial precisam da contratação de um profissional em direito. Aliás, atualmente, na discussão do Projeto do Código de Processo Civil, já se fala na inclusão de dispositivo para a indispensabilidade de advogados para todas as reclamações dos Juizados Especiais.

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É mais uma vez demonstração inequívoca da força do lobby dos advogados que terminou prejudicando os pobres e desvirtuando os Juizados Especiais! Nem se vai adentrar no total desmantelamento dos Juizados que, atualmente, tornaram-se varas judiciais.

Os teóricos levantarão logo a bandeira de que para os pobres tem a Assistência Judiciária gratuita, além dos Defensores Públicos.

A Lei n. 1.060/50 e a Constituição, art. 5º, XXXV asseguram gratuidade para todos aqueles que comprovem insuficiência de recursos para custear o processo sem prejuízo do sustento próprio e de sua família. Todavia, ninguém pode negar que o acesso à Justiça não é igual para todos, sempre na dependência de melhores condições econômicas, sociais e culturais. A contratação de advogado por quem tem dinheiro e a nomeação de advogado dativo para quem não dispõe de recursos não funciona da mesma forma. Por mais que se queira argumentar, não se conseguirá contestar a certeza de que o desprendimento de um profissional está bem distante da dedicação do outro.

A Assistência Judiciária é instituto imperfeito, seja pela dificuldade que o pobre tem para acessar a Justiça, seja pelo próprio sistema que polemiza sobre as pessoas que merecem os benefícios da gratuidade. E mais: o acesso à Justiça não se esgota com a nomeação de advogado dativo ou com a indicação de um Defensor Público, mas se prolonga com a indispensabilidade de assistência jurídica, consistente nas informações sobre o direito e tudo o que se relaciona com a demanda.

O mau atendimento dos órgãos do Judiciário ao pobre, a dificuldade e até mesmo a não obtenção de provas, como a pericial, contribuem para impedir o acesso do pequeno à Justiça. As informações sobre o local onde se dará a audiência, sobre o andamento do processo não são obtidas com a facilidade que merece; dificilmente o despossuído é recebido nos gabinetes e, às vezes, nem nos cartórios e secretarias. Nos Juizados, por exemplo, o cidadão pode prestar queixa num local, SAJ, e a instrução ocorrer em outro ponto.

A aplicação da letra fria da lei pelos juízes, sem observar a realidade social e, portanto, sem oferecer o que é justo, significa negação de Justiça ao pobre.

A Defensoria Pública, apesar do empenho de seus membros, não cumpre sua missão, por culpa dos próprios governos que não oferecem a mínima estrutura possível para seu funcionamento; enquanto premia o Ministério Público com mais vantagens que os próprios juízes, a Defensoria Pública sobrevive mercê da dedicação de seus membros. O Ministério Público não está tão próximo do pobre como os Defensores Públicos. No âmbito federal são menos de quinhentos (500) defensores para defender os cidadãos do Brasil, enquanto o governo dispõe de oito (8) mil advogados para atuar nos seus próprios interesses. No âmbito estadual, a situação não muda, pois há Estados que nem tem Defensoria Pública e a maioria das Comarcas, em torno de 60%, não dispõem de defensores públicos. Assim, o dispositivo constitucional que garante a assistência jurídica integral e gratuita aos cidadãos e assegura que a instituição é essencial à função jurisdicional do Estado, depois de mais de vinte anos continua letra morta.

A lei considera juízes, promotores e defensores como essenciais para a administração da justiça. Todavia, os Defensores Públicos, bacharéis em direito e concursados como os juízes e promotores, encarregados da defesa do cidadão, além de falta de estrutura no trabalho, percebem somente um terço do ganho dos Promotores e dos Juízes.

Para contrabalançar aos maus serviços dos Juizados Especiais e antes mesmo de seu aparecimento, os empresários criaram um Tribunal de Exceção, a Justiça do Crédito. Por meio dos órgãos de restrição ao crédito, sem maiores formalidades, conseguem punir o devedor de seus créditos. Não contratam advogado, é justiça rápida, sem formalidade e sem intervenção de juiz. Basta apresentar a queixa ao SPC/Serasa e outros órgãos dessa natureza para provocar grandes danos ao pobre com a negativação de seu nome e o impedimento de acesso ao crédito para pagar a escola, para suprir as mais urgentes necessidades, tornando-o impedido de acesso até mesmo ao emprego.

Na Justiça Comum a punição aos grandes, quando chega é muito atrasada, mas os pobres recebem imediata aplicação de pena criminal ou patrimonial.

E para complicar ainda mais a situação, o Estado é o cliente mais bem aceito pelo Judiciário, seja porque figura em 80% dos casos, seja porque obtém privilégios de toda natureza: prazos superiores, intimação pessoal aos seus procuradores, precatórios, descumprimento de decisões judiciais sem punição alguma e muitas outras.

Sobre o autor
Antonio Pessoa Cardoso

Ex-Corregedor das Comarcas do Interior do Tribunal de Justiça da Bahia. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Antonio Pessoa. O advogado e o pobre. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3060, 17 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20443. Acesso em: 5 nov. 2024.

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