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Princípio da legalidade e infrações de trânsito

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Agenda 30/11/2011 às 13:20

3. O artigo 161 do CTB e o princípio da legalidade

Sedimentada a primeira etapa, podemos concentrar nossa atividade intelectiva para o cerne deste trabalho que é outra questão que desperta atenção, inclusive, provocando discussões no universo jurídico, vez que envolve a previsão legal do artigo 161 e seu parágrafo único, no sentido de se permitir que um ato administrativo formalmente consolidado numa resolução possa impor deveres para abrigar direitos que, caso sejam violados, constituirá infração de trânsito. Isso equivale a dizer que uma norma de posição hierarquicamente inferior à lei pode criar modificar, extinguir e direitos, bem como estabelecer obrigações e deveres. Referido entendimento é impiedosamente rechaçado no mundo jurídico, por força do princípio da legalidade insculpido no artigo 5º, inciso II da Constituição da República Federativa do Brasil:

Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Deveras, numa interpretação literal do sobredito artigo, infere-se mesmo que o legislador atribuiu à resolução uma posição privilegiada, tratando-a é certo, como se pudesse amoldurar bens jurídicos em seus preceitos, sem precedente legal que lhe fosse a causa determinante, tornando-se imprescindível sancionar atos que os violassem, semelhantemente ao que ocorre com a lei.

Entretanto, o âmago dessa controvérsia não diz respeito à possibilidade de outra fonte normativa, de peso político inferior, disciplinar as relações jurídicas de natureza pública, tomando o lugar que era destinado apenas à lei – em sentido amplo19 –, eis que, sem sombra de dúvida, compete-lhe, com exclusividade, o papel de inovar a ordem jurídica.

O que ocorre é uma situação sui generis, inacessível aos olhares de alguns que não enxergam que o próprio Código reservou à resolução a incumbência de regulamentar determinadas matérias relevantes, mormente as que se reportam aos variados campos técnicos, cuja menção é expressamente feita em uma pluralidade de dispositivos de seu texto legal, conferindo ao direito de trânsito o caráter de ciência interdisciplinar 20.

Alias, o nosso vigente diploma cria o regime jurídico sobre trânsito com auxílio da legislação complementar21, demonstrando avidez para que as engrenagens de seu microssistema funcionem22.

A mesma assertiva vale para a norma do parágrafo único do artigo 161, eis que a singularidade que lhe dá destaque é exatamente a de que o ato administrativo não é visto como um forasteiro pela lei, pelo contrário, além de lhe reservar competência, deseja ansiosamente o seu eficaz aparecimento.

Feitas tais considerações, resta-nos perguntar: A resolução pode restringir o direito das pessoas quando a própria lei concede tal autorização?

Para responder a essa indagação, buscamos a precisa lição do gênio de Celso Antônio Bandeira de Mello que preleciona:

Nos termos do art. 5º, II, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Aí não se diz “em virtude de” decreto, regulamento, resolução, portaria ou quejandos. “Diz-se em virtude de lei”. Logo, a Administração não poderá proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, não lhe é possível expedir regulamento, instrução, resolução, portaria ou seja lá que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei já existir delineada a contenção ou imposição que o ato administrativo venha a minudenciar 23 .

Concluímos, então, que a dificuldade não está em se afirmar que à lei é conferido o privilégio de ditar as regras jurídicas, podendo, inclusive, instituir diretrizes que sacrifiquem parte de sua competência em prol de um sistema mais dinâmico não condizente com a lentidão de seu procedimento parlamentar, desde que à luz das limitações constitucionalmente estabelecidas. O que realmente se mostra como um desafio ao hermeneuta é saber quando a norma inferior usurpou do poder concedido pela lei ou quando a lei lhe conferiu competência não autorizada, ingressando no campo da inconstitucionalidade. De acordo com abalizada doutrina invocada, não basta dizer, de forma genérica, que aos atos normativos de natureza administrativa cabe miseravelmente regulamentar às leis nos exatos limites de seus termos. Imprescindível é a análise in concreto para se asseverar que a norma infralegal rompeu com as fronteiras estabelecidas pela lei.

No que diz respeito ao parágrafo único do artigo 161 do Código de Trânsito Brasileiro, evidenciada está à ousadia ou atecnia do legislador ao atribuir a resolução competência para criar infrações às condutas devidas no trânsito, espécies do gênero infração administrativa, cuja previsão abstrata cabe exclusivamente à lei em sentido formal24. Incorreu no mesmo equívoco o revogado Código Nacional de Trânsito ao prever em seu artigo 94 que, além do Código, o regulamento e a resolução poderiam estabelecer infrações25.

Como toda a norma que restringe as liberdades públicas, a regra de conduta de trânsito que impõe sanção ao seu transgressor, submete-se, para ter validade, aos mesmos princípios que a infração administrativa, senão vejamos:

Ainda cabe dentro do campo de análise da legalidade, no que concerne a possibilidade das resoluções do CONTRAN estabelecer infrações e cominarem, abstratamente, as respectivas sanções, fazer certas ponderações a fim de não se condenar todo o sistema que, malgrado as críticas, há muito vem sendo construído e é o único que dispomos para disciplinar o direito de trânsito.

Preliminarmente, sem ingressar na vastidão em que se assenta o tema das classificações das infrações administrativas, desenvolvidas pela doutrina frente ao inesgotável supedâneo normativo, ousamos resumir as infrações constantes na legislação de trânsito em três espécies principais, levando-se em consideração o momento da ação ou omissão ilícita, com a finalidade de facilitar a compreensão do instituto em comento:

Forçoso é reconhecer que se rechaçarmos absolutamente a possibilidade de ser criado algum dever administrativo de trânsito por norma outra que não a lei, fadado estará o sistema a ruir por ausência de disciplina técnica específica não acomodada na generalidade legal. Portanto, para o fim de salvaguardar a cadeia normativa que constitui um dos elementos formadores do ordenamento jurídico de trânsito brasileiro, cabe ao jurista antes mesmo de declará-lo, irremediavelmente, inválido, buscar soluções interpretativas para se evitar que, por conta de um artigo de lei, não naufrague todos os microssistemas que lhes são derivados.

Por sorte contamos com a renomada sapiência de juristas do patamar de Celso Antônio Bandeira de Mello48, cuja inesgotável busca científica o levou a se aprofundar no direito administrativo estrangeiro, com especial destaque para a doutrina europeia, donde se iniciaram e se desenvolveram estudos acerca dos diferentes institutos jurídicos denominados “supremacia geral” e “supremacia especial”.

A administração pública, calcada na lei, faz valer a supremacia geral, exercendo seus deveres-poderes (exigibilidade, autoexecutoriedade e autotutela dos atos administrativos) sobre a generalidade dos administrados. A extensão e os limites para tanto são legalmente estabelecidos, o que corresponde a dizer que os poderes da supremacia geral são diretamente extraídos da lei.

No que concerne à supremacia especial ou relação especial de sujeição – nomeação dada pela doutrina alemã ao referido instituto – existiriam poderes outros não sacáveis diretamente da lei, mas assentados em relação específica capaz de criar norma individual entre seleto grupo e a administração pública que, por força das peculiaridades de tal situação jurídica, se apresentaria em posição privilegiada exigida para disciplinar o seu funcionamento interno, podendo então, impor certos deveres e restringir alguns direitos pertinentes àquela relação específica, inclusive, com a imposição de sanção pela violação de seus preceitos. Exemplificando: Os indivíduos cadastrados em uma biblioteca pública, caso venham a retirar alguma obra, descumprindo o prazo para sua devolução, serão sancionados com multa; O horário estabelecido para visitas em hospitais e asilos públicos, cuja insistência em desrespeitar a regra por parte de algum familiar acarrete a sua expulsão do interior do prédio institucional; Os alunos matriculados em determinada faculdade pública, que devem se submeter ao exame em data previamente agendada, vez que a inobservância pode levar a ausência de nota de aprovação naquela disciplina.

Duas observações evidenciam as matizes que diferenciam essas situações da grande gama em que o Estado atua com base na supremacia geral. A primeira é que em todos os casos, o vinculo construído pela supremacia especial alcança o circulo de pessoas que nele se insere, e não a comunidade como um todo. Outro ponto distintivo é que seria impossível, impróprio e inadequado se exigir que disposições desta ordem recebessem o verniz parlamentar para serem válidas como normas jurídicas de conduta. Nos dizeres do professor Celso Antônio Bandeira de Mello:

Exigência dessa ordem simplesmente estaria a pretender do Legislativo uma tarefa inviável, qual seja, a de produzir uma miríade de regras, ademais extremamente particularizadas, dependentes de situações peculiares, e muitas vezes cambiantes, cuja falta, insuficiência ou inadaptação literalmente paralisariam as atividades públicas ou instaurariam o caos. Deveras, não se vê como o legislativo, afora preceptivos gerais, poderia estatuir todas as disposições minuciosamente regedoras do funcionamento das mais variadas Faculdades, Museus, Bibliotecas, Teatros, Hospitais, Asilos e outros estabelecimentos, bem como o regime condicionador ou repressor das condutas de quaisquer pessoas que com eles mantivessem os contatos necessários ao desfrute das utilidades que proporcionam, sem criarem uma autêntica balbúrdia e sem instaurarem uma série de contra-sensos ou de regras visivelmente inadaptadas às circunstâncias.

Mutatis mutandis, temos que o poder conferido ao Conselho Nacional de Trânsito para criar deveres, descrevendo hipóteses normativas que consubstanciam irregularidades passíveis de sanção, advêm não diretamente da lei, mas sim do vinculo jurídico estabelecido entre a administração e as entidades a quem é outorgada a licença ou autorização para prestarem serviços públicos necessários ao funcionamento da sistemática implantada para o trânsito brasileiro.

Importante lembrar que, no Brasil, o instituto da relação especial de sujeição não foi necessariamente desenvolvido, não havendo positivação em nosso ordenamento jurídico.

Sobre o autor
Gustavo Steffen de Azevedo Figueiredo

Delegado de Polícia Titular do Município de Pindorama/SP e Diretor da 201 CIRETRAN, acumulando as funções de Delegado de Polícia do Município de Paraíso/SP, leciona a disciplina de Hermenêutica Jurídica no IMES/FAFICA em Catanduva/SP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FIGUEIREDO, Gustavo Steffen Azevedo. Princípio da legalidade e infrações de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3073, 30 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20533. Acesso em: 15 nov. 2024.

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