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Execução de serviços públicos sociais por entidades privadas.

Questões de uma nova realidade

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Agenda 04/01/2012 às 13:22

4. gestão de recursos públicos por entidades privadas e a pertinência da aplicação de procedimentos licitatórios.

Uma vez celebrado o ajuste (Contrato de Gestão, Termo de Parceria, Convênio) com a Administração Pública, inicia-se para a entidade privada a execução da prestação do serviço público social. Neste ponto reside séria controvérsia.

Ao criar um programa para diminuir a sua atuação em certos segmentos, o Estado permite a entidades privadas que assumam seu lugar. As entidades privadas (associações, fundações, qualificadas ou não) não pertencem ao Estado, são criadas e funcionam sob a égide de normas privadas. Entretanto, ao receber recursos públicos estariam elas obrigadas a se submeter às normas próprias de licitação previstas na Lei 8.666/93? Em relação a esta questão, a produção de normas legais foi incessante e constituiu outro ponto de discordância na doutrina.

O Governo Federal, através da Secretaria do Tesouro Nacional, para normatizar a utilização de recursos públicos repassados através de convênios e congêneres, editou a Instrução Normativa STN nº 01/1997. Nela constam todos os procedimentos para o uso de recursos públicos repassados. Segundo o Art. 27 [15], permitia-se que as entidades privadas, que recebessem recursos públicos da União, contratassem adotando procedimentos análogos ao da Lei 8.666, de 1993, sem a necessidade do cumprimento das formalidades. Entretanto, esta posição foi alterada por recomendação do Tribunal de Contas de União.

Em agosto de 2003 foi analisada a justificativa da Fundação Zerbini, mantenedora do Instituto do Coração do Distrito Federal, que respondia o questionamento da contratação de uma empresa de engenharia sem a realização de processo licitatório.

O ministro relator, Ubiratan Aguiar, apresentou voto no sentido de que a justificativa apresentada era plausível, de que o processo havia respeitado o princípio da proposta mais vantajosa e que não havia legislação cabível para obrigar uma entidade privada à realização de procedimentos licitatórios. Entretanto, encaminhou proposta para que a Secretaria do Tesouro Nacional corrigisse o Artigo 27 da Instrução Normativa n o. 01, de 1997, tornando obrigatória a licitação para entes privados. Posicionando-se da seguinte forma:

".Apenas para argumentar, não se alegue que estaria havendo ingerência indevida do setor público nas atividades desenvolvidas pela iniciativa privada. Note-se que a entidade privada não está obrigada a firmar convênio com a administração pública, mas ao assinar deve ter a certeza que está administrando recursos públicos em sentido estrito e, isto é verbas incluídas em lei orçamentária, dessa forma, deve observar rigorosamente, como todo administrador público, os princípios que informam a gestão da coisa pública, em especial o da legalidade, sob o ponto de vista formal e material. Não pode, por isso mesmo, dar destinação diversa aos recursos, daquela fixada na lei orçamentária, sob pena de ser condenado à devolução das importâncias recebidas por desvio de finalidade; não pode, ademais, deixar de prestar contas dos recursos recebidos, por expressa determinação constitucional; como também não pode descumprir a Lei nº 8.666/93.

Em razão do exposto, compreendo que deve ser fixado prazo, nos termos do art. 71, inciso IX, da Constituição Federal, para que a Secretaria do Tesouro Nacional revogue o parágrafo único do art. 27 da IN/STN nº 01/97, publicada no DOU de 31 de janeiro de 1997, dando-se notícia desse fato ao Exmo. Sr. Ministro da Controladoria-Geral da União." [16]

Em voto divergente, o ministro redator Benjamim Zymler, argumentou que esta orientação, se configuraria como uma ingerência, considerando incabível as prerrogativas da Lei 8.666/93 aos entes privados. Para ele, "não poderia um ente privado, em decorrência de simples pactuação de convênio com a Administração Pública, investir-se de poderes relacionados ao múnus público." [17] Finaliza seu voto da seguinte forma:

"Entendo que o poder constituinte, sempre que desejou estender aos agentes privados regramentos típicos do setor público, o fez expressamente, como lemos no parágrafo único do art. 70, que estende o dever de prestar contas a todos os que manuseiem recursos públicos, sejam pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas. Pelos mesmos motivos, não poderíamos dar aplicação extensiva do art. 116 da Lei 8.666/93, de modo a abranger as relações entre entes privados. Esse dispositivo vincula a aplicação da Lei 8.666/93, no que for possível, aos acordos, convênios e instrumentos congêneres firmados por órgãos ou entidades da administração pública. Nem a Constituição nem a Lei previram expressamente sua aplicação a entes privados quando contratam entre si." [18]

Este voto foi vencido e o resultado prático foi a publicação do Acórdão/TCU 1070/2003, no qual o Tribunal de Contas da União acata a justificativa apresentada pelo convenente, mas manifesta-se pela necessidade de alteração do já referido Artigo 27, da Instrução Normativa STN nº 01/1997. [19] Esta alteração foi feita com a expedição da Instrução Normativa STN nº 03/2003. Nela estava disposto o novo entendimento sobre a obrigatoriedade da realização de procedimentos licitatórios por entidades privadas para a execução de despesas de recursos transferidos pela União.

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Em 2005, após a publicação do citado acórdão, o Procurador-Geral do MP/TCU interpôs um pedido de reexame da decisão entendendo que a Lei nº 8.666, de 1993 não se aplicaria a entidades privadas e que a recomendação para a alteração do artigo 27 da Instrução Normativa STN n o. 01, de 1997, deveria ser revertida ao texto original. Na análise técnica são apresentados pareceres diferentes, de um lado, o analista-instrutor entende pela pertinência do recurso com o retorno da redação do artigo e, de outro, o diretor e o titular da Unidade Técnica propõem a manutenção do texto sugerido no Acórdão 1070/2003.

O resultado prático foi a publicação do Acórdão/TCU 353/2005, que acolhia em parte o pedido do procurador-geral, sugerindo a formulação de decreto regulamentador para a contratação de bens e serviços por entidades privadas em convênio com a União e o encaminhamento de projeto de lei para a reforma do artigo 116, da Lei 8.666, de 1993.

O decreto formulado por esta recomendação é o Decreto 5.504, de 2005, que estabeleceu a exigência de utilização do pregão, preferencialmente na forma eletrônica, para entes públicos ou privados para a contratação de bens e serviços comuns, realizada em decorrência de transferências voluntárias de recursos públicos da União, decorrentes de convênios ou instrumentos congêneres, ou consórcios públicos.

Já em 2007, a vista de muitos problemas com as várias entidades parceiras e os escândalos com repasses de recursos da União, foi expedida uma nova norma regulamentadora do sistema de convênios da União. O Decreto 6.170, de 25 de julho de 2007, estabeleceu novos preceitos para o repasse de recursos e a forma de seu controle pela União. No Artigo 11, [20] está disposto novo entendimento sobre a necessidade de procedimentos licitatórios para as entidades privadas que recebem recursos através de transferências da União.

Este decreto ainda recebeu maior especificação com a publicação da Portaria Interministerial 127 – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ministério da Fazenda e Controladoria Geral da União, de 30 de maio de 2008, que dispõe sobre as normas relativas às transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse. Esta portaria é a norma que atualmente orienta os procedimentos relacionados a entidades públicas e privadas que conveniarem com a União.

Para as entidades públicas, a execução de despesas deve ser feita através da modalidade de pregão eletrônico. [21] Além disto, deve-se publicar todas as informações referentes ao procedimento de compra no Portal de Convênios, na rede mundial de computadores, o SICONV (www.convenios.org.br).

Já para as entidades privadas, a portaria estabelece a necessidade da consulta de preços com fornecedores e o seu registro no Portal de Convênios. Além disto, estabelece uma série de procedimentos com prazos para a realização das aquisições. [22]

Pelos apontamentos realizados até aqui, a discussão do status que as entidades privadas assumem quando celebram ajustes com a Administração Pública e o espectro da aplicação de normas públicas à sua atuação ainda é um tema que merece estudo.


5. Responsabilidade tabalhista Subsidiária Decorrente de Convênios e outros Ajustes

Na realização do objeto pactuado em convênios ou quaisquer outros ajustes, as entidades privadas necessitam contratar pessoas para a execução das tarefas acordadas. Para isto são feitas contratações por tempo determinado ou indeterminado, de acordo com o disposto na Consolidação das Leis do Trabalho, sendo que a entidade privada deve se responsabilizar por todos os direitos do pessoal contratado. Dessa forma, todos os envolvidos (Administração Pública, Entidade Privada contratante e Trabalhadores) estariam felizes e as necessidades dos cidadãos seriam atendidas da forma mais eficiente possível.

Entretanto, não é tão simples assim. Muitas vezes as entidades privadas não cumprem com seus pagamentos e seus trabalhadores ficam desprovidos de quaisquer garantias que lhes garantam a sobrevivência. Aos trabalhadores resta a alternativa de recorrer ao Judiciário e reclamar o pagamento das verbas devidas.

A legislação trabalhista é clara sobre a incidência da responsabilidade do empregador no tocante ao pagamento das verbas trabalhistas. Neste caso, as entidades privadas seriam responsáveis pelo adimplemento de suas obrigações e poderiam ter bens penhorados para a satisfação de uma futura execução.

Neste ponto reside mais uma importante questão que é a pertinência da aplicação da responsabilidade subsidiária ao ente público em decorrência de contratações feitas por entidades privadas que, com ele, tenham convênios ou outros ajustes. Existem divergências sobre a interpretação consubstanciada na Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho e o disposto no Art. 71, da Lei 8.666/93.

A dinâmica das relações de trabalho e de emprego são muito diferentes daquela de meados do século XX, quando a Consolidação das Leis do Trabalho foi promulgada. As novas tecnologias e processos, os novos modelos organizacionais e de gestão, calcados na redução de custos e na especialização da atividade produtiva, constroem um novo mundo do trabalho. Neste cenário, a terceirização da mão-de-obra disseminou-se de tal forma, que foi admitida pela lei e mesmo pela jurisprudência.

Segundo Mauricio Godinho Delgado, "terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente" [23]. Assim, em nome da eficiência, a empresa passa a direcionar seu foco para a atividade fim, deixando que as atividades meio sejam desenvolvidas por outras empresas contratadas.

Desta maneira, admite-se a interação do trabalho humano à atividade produtiva da empresa sem que isto implique, necessariamente, no estabelecimento de vínculo de emprego entre eles. Para tanto, é preciso que os serviços não estejam ligados à atividade-fim do empregador e que não exista pessoalidade e subordinação direta.

Tendo em vista esta realidade desenvolveu-se na doutrina trabalhista o conceito da responsabilidade subsidiária. Para os doutrinadores ela representa o estabelecimento de um vínculo mínimo de responsabilidade do tomador de serviços em relação ao trabalhador empregado da empresa prestadora de serviços, a efetiva empregadora. Por ela, atribui-se ao tomador de serviços a condição de garante do pagamento das verbas trabalhistas devidas pela empresa prestadora de serviços ao empregado.

Após muitas demandas e controvérsias, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula 331 [24] e pacificou o entendimento sobre a ocorrência de responsabilidade subsidiária para os casos de contratos irregulares.

Mas, para o contexto das entidades privadas que prestam serviços públicos sociais esta construção jurisprudencial é aplicável? A natureza do vínculo estabelecido entre o Poder Público e as entidades privadas através de convênio, ou outro ajuste, não é contratual. Além disto, como se tratam de serviços públicos que não são exclusivos do Estado, o Poder Público atua como fomentador de uma atividade que atende o interesse público.

Entretanto, em ação ajuizada pelo Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Londrina e Região (Sindsaúde), contra a Irmandade Santa Casa de Londrina, Centro Integrado de Apoio Profissional (Ciap) e Município de Londrina, que visava a garantia de recebimento das verbas trabalhistas em face da reclamada Centro Integrado de Apoio Profissional (Ciap), houve a condenação do Município de Londrina com responsável subsidiário pelo pagamento das verbas.

Este caso ajuda a compreender a relevância das discussões acerca do modelo de gestão que está sendo adotado pela Administração Pública, no tocante aos serviços públicos sociais. Na sentença há aplicação da Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho, mesmo não sendo uma terceirização típica e não caracterizada qualquer relação de emprego entre o Município de Londrina e os trabalhadores do Centro Integrado de Apoio Profissional (Ciap).

Ademais esta decisão, há que se ressaltar que a responsabilização subsidiária de entes públicos é um ponto extremamente controverso. O Art. 71, § 1º, da Lei 8.666/93, dispõe exatamente o contrário do texto da Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho. [25]

Ao celebrar convênios e outros ajustes com entidades privadas para a prestação de serviços públicos sociais, a Administração Pública fomenta serviços não exclusivos. Entretanto, a condição dos trabalhadores que prestam diretamente os serviços tem de ser melhor considerada.

Este novo modelo de gestão não deve se configurar como uma fuga da norma de contratação de servidores através de concurso público. Bem como, não deve configurar uma forma de contratação em que os trabalhadores não tenham garantias reais, no que tange aos seus direitos.


6. Conclusão

Ao longo da década de 1990, observou-se o aumento de entidades privadas que vêm ocupando espaço e prestando serviços públicos sociais. Segundo Benjamin Zymler,

" a consequente crise do modelo de Estado Social, cujos custos crescentes denotariam a incapacidade de o Poder Público responder ás demandas igualmente crescentes da população. Os déficits fiscais do Estado, têm ensejado um movimento de enxugamento das máquinas administrativas estatais, por meio da desestatização de empresas estatais, descentralização, desconcentração administrativa e da concessão de serviços públicos para particulares. Em especial, destaca-se a atração de entidades civis para ocuparem um espaço público não-estatal, por meio da prestação de serviços públicos não exclusivos do Estado." [26]

Neste novo contexto de atendimento de necessidades públicas, através de entidades privadas, é pertinente a análise da existência de procedimentos administrativos adequados que garantam todos os partícipes desta relação.

Para Ana Claudia Finger, "a clássica dicotomia entre o direito público e do direito privado não pode mais ser sustentada com o mesmo rigor de outrora." [27] Cada vez mais estes conjuntos normativos se interpenetram. O espaço público, com a política de privatizações e do Estado regulador, se apropria de normas privadas e os espaços privados são publicizados com a crescente regulação de sistemas sociais. Segundo a autora

"As radicais transformações operadas em todos os níveis da Administração Pública, desde os moldes organizatórios até à disciplina da pessoa ou às regras procedimentais provocaram uma verdadeira reviravolta no Direito Administrativo." [28]

Para o Ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União, "constata-se a emergência do Terceiro Setor que passa a dividir com o Estado, as responsabilidades de implementação de ações tendentes a alcançar bens públicos." [29] A determinação de soluções é questão de substancial importância para a realização dos direitos dos cidadãos. Através das normas existentes, percebe-se a intenção de que o recurso público seja bem administrado e que realmente alcance o interesse e os anseios da sociedade.

Entretanto, para que este modelo se consolide ainda é necessário que sejam construídas estruturas mais sólidas. A clareza dos comandos é fundamental para que este modelo de prestação de serviço possa ser considerado adequado e pertinente ao contexto do Estado Brasileiro, pós Constituição de 1988.

Este é um ponto de grande relevância para a continuidade das parcerias com entidades privadas. A existência de normas claras para o cidadão, para os órgãos de controle, para as entidades privadas envolvidas é absoluta prioridade. Esta clareza iria contribuir para pacificação da doutrina, o que traria segurança jurídica para o tema.

Cada vez mais é necessário que o sistema normativo, acompanhe, esteja em compasso, com os princípios que vêm norteando as novas formas de gestão. Ao lado disto, também é urgente que o quadro funcional da Administração Pública seja melhor preparado. Segundo Benjamin Zymler, "o domínio de princípios do Direito Público e do Direito Administrativo são imprescindíveis para que os agentes exerçam suas funções." (ZYMLER, 2006, p. 63)

Assim, é necessário que este tema seja discutido de forma livre de preconceitos e direcionado para a consolidação de modelos claros, determinados e satisfatórios aos cidadãos, que são o fim último da Administração Pública. É necessário que o modelo de Estado que o Brasil possui se concretize na realidade social, trazendo a garantia plena de todos os direitos que os brasileiros são destinatários.

Sobre a autora
Solange Cristina Batigliana

Servidora Pública. Advogada. Especialista em Direito Administrativo (UEL/PR) e Direito Aplicado (EMAP-PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATIGLIANA, Solange Cristina. Execução de serviços públicos sociais por entidades privadas.: Questões de uma nova realidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3108, 4 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20778. Acesso em: 19 dez. 2024.

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