5. As Assembleias Legislativas e a Efetivação dos Direitos Sociais
Gomes Canotilho, ao referir-se à dimensão objetiva dos direitos sociais, afirma que:
"as normas constitucionais consagradoras de direitos econômicos, sociais e culturais, modelam a dimensão objectiva de duas formas: (1) imposições legiferantes, apontando para a obrigação de o legislador actuar positivamente, criando as condições materiais e institucionais para o exercício desses direitos; (2) fornecimento de prestações aos cidadãos, densificadoras da dimensão subjectiva essencial destes direitos e executoras do cumprimento das imposições institucionais." [16]
Emergem assim, com as normas constitucionais consagradoras de direitos sociais, verdadeiras imposições legiferantes dirigidas ao legislador ordinário, no sentido da sua atuação positiva, não podendo este, sob a égide de um Estado Social como o consagrado na Constituição Federal de 1988, se omitir desta obrigação, sob pena de violação, por omissão, do preceituado na Carta Magna.
Neste sentido, correto o entendimento expresso por Flora Augusta Varela Aranha, ao afirmar que:
"Assim, há transgressão da Constituição tanto quando se faz o que ela proíbe, como quando não se faz o que ela impõe. Isso conduz à reflexão de que o princípio da constitucionalidade ou conformidade com a Constituição transporta duas dimensões – o princípio da constitucionalidade positiva e o princípio da constitucionalidade negativa – o que pressupõe a existência de limites negativos e de diretivas positivas aos órgãos de direção política." [17]
Destarte, sobre as Assembleias Legislativas, em razão da repartição de competências operada pelo art. 24 da Constituição, a qual se fez referência supra, no ponto 3, recaí a imposição constitucional da prática de uma série de atos legislativos tendentes a efetivar as normas consagradoras de direitos sociais dentro dos seus limites territoriais, adequando as normas de caráter geral editadas pela União a suas peculiaridades.
Acresce, que em virtude da proximidade das Assembleias Legislativas com a comunidade jurídico-política estadual que as elege, e em consonância com o princípio democrático, estas podem, devem e estão, inclusivamente, obrigadas, desde que em total respeito pela repartição de competências constitucionalmente consagrada, a tomar a dianteira, dentro da esfera estadual, na efetivação dos direitos sociais, nomeadamente, através do exercício da competência legislativa plena prevista no § 3º do art. 24 da Constituição, quando se verifique a omissão da União na edição de normas gerais.
Como se observa, o papel das Assembleias Legislativas, em face da simples competência geral da União no tocante aos direitos sociais (art. 24, § 1º CF), é de fundamental importância para a efetivação destes direitos, pois só através da sua atividade legislativa se opera à especificação das normas gerais emitidas pela União para a realidade estadual, o que se constitui como imprescindível para a correta e ampla efetivação dos direitos sociais dos cidadãos, haja vista as naturais peculiaridades de cada Estado-membro.
Vejamos, a título de exemplo, a Lei Estadual nº 9.852/2006, editada pela Assembleia Legislativa da Bahia.
A Lei Estadual do Estado da Bahia nº 9.852/2006, sancionada em 04/01/2006, assegura, logo no seu art. 1º, o direito de toda a gestante "à presença de um acompanhante durante o processo de parto nos hospitais públicos e nos contratados do Sistema Único de Saúde (SUS) no Estado da Bahia." [18]
Complementando, o art. 2º determina que "a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia – SESAB promoverá ações estratégicas para efetivar condições na rede de assistência que permita o cumprimento do art. 1º desta Lei, inclusive preparar os profissionais de saúde e a população quanto à nova realidade assistencial." [19]
Ora, a Lei Estadual nº 9.852/06, editada pela Assembleia Legislativa da Bahia, enquadra-se no exercício da competência legislativa prevista nos incisos XII e XV do art. 24 da Constituição Federal, que prevê a competência das Assembleias Legislativas para legislar, respectivamente, sobre proteção e defesa da saúde e proteção à infância e à juventude.
Nesta medida, a Lei Estadual ora analisada regula de forma específica, promovendo a efetivação da Lei Federal 8.080, de 19/09/1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, norma de caráter geral, de competência da União, editada com base no art. 24, § 1º da Constituição. Outrossim, promove a efetivação das normas constitucionais consagradas, entre outros, nos arts. 196 e 226 da Constituição Federal de 1988, que versam respectivamente, sobre o direito à saúde, nomeadamente, sobre o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, e sobre a especial proteção que o Estado confere à família, base da sociedade.
O exemplo exposto, entre os diversos que aqui poderiam ser mencionados, é paradigmático do papel fundamental das Assembleias Legislativas na efetivação dos direitos sociais, e de como esta efetivação se dá no quadro das competências concorrentes entre a União e os Estados.
Na medida em que a União tem a sua competência limitada ao estabelecimento de normas gerais, cabe às Assembleias Legislativas, o papel importantíssimo de promover a sua concretização no plano concreto, adequando estas normas gerais às suas especificidades locais.
Na verdade, as normas gerais emitidas pela União, se bem que, por um lado, efetivam os direitos sociais constitucionalmente consagrados, por outro lado, tal como as normas constitucionais consagradoras destes, têm um caráter programático, necessitando também de uma atividade legislativa ulterior para a sua efetiva concretização (competência complementar), atividade legislativa ulterior que compete, prima facie, às Assembleias Legislativas, exigindo-se do legislador ordinário estadual uma atividade positiva no sentido de criar as condições materiais e institucionais necessárias para o exercício destes direitos.
Desta forma, as Assembleias Legislativas, sem prejuízo das outras funções já acima apontadas, nomeadamente, a de exercer a competência legislativa plena quando da inexistência de norma geral emitida pela União, suprimindo assim a sua lacuna, têm como principal função, no âmbito da temática dos direitos sociais, a regulação específica das normas gerais editadas pela União, promovendo, consequentemente, a ampliação da efetivação e concretização dos direitos sociais.
Como se vê, as Assembleias Legislativas assumem assim um papel fulcral e essencial na efetivação do catálogo dos direitos sociais constitucionalmente consagrados.
6. Conclusões
A adoção da Constituição Federal de 1988 pela forma de Estado federalista, acarretou a descentralização do poder do Estado, com a necessária repartição de competências entre os diversos entes federativos, como corolário da consagração da sua autonomia política, característica fundamental do federalismo.
Nesta medida, o legislador constituinte, ao fixar o rol de matérias da competência concorrente e suplementar entre a União e os Estados, fixou dentro destas competências amplo catálogo relativo aos direitos sociais, consagrando, portanto, o poder legislativo estadual como um importante precursor na efetivação destes direitos.
Constituindo-se, ainda para mais, os direitos sociais como direitos de eficácia limitada, ou seja, direitos que, para serem efetivados, necessitam de uma atividade legislativa ulterior que os concretize no plano fático-jurídico, crucial e fundamental a atividade legislativa estadual na sua concretização.
Assim, sobre as Assembleias Legislativas, recaem verdadeiras imposições constitucionais, no sentido de estas criarem, através dos competentes atos legislativos, as condições materiais e institucionais necessárias ao exercício dos direitos fundamentais, sob pena de violação, por omissão, das normas constitucionais.
Logo, a par da União, a quem cabe estabelecer as normas gerais relativas aos direitos sociais (art. 24, § 1º), a Assembleia Legislativa surge como o órgão privilegiado para a efetivação destes direitos, na medida em que a esta cabe a regulamentação específica, para o plano da esfera estadual, das normas gerais editadas pela União.
Sem esta atividade legislativa estadual ulterior, concretizadora dos direitos sociais, a efetivação destes direitos no plano estadual será claramente insuficiente ou praticamente nula, razão pela qual têm as Assembleias Legislativas um papel de destaque e suma importância na problemática, cada vez mais premente, da efetivação dos direitos sociais
7. Referências Bibliográficas
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Notas
- MORAES, Alexandre de. "Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional". São Paulo: Editora Atlas S.A., 2002, p. 623; MORAES, Alexandre de. "Direito Constitucional". São Paulo: Editora Atlas S.A., 2006, p. 245.
- VELLOSO, Carlos Mário. "Estado Federal e Estados Federados na Constituição Brasileira de 1988: do Equilíbrio Federativo". In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 74/75, Jan./Jul. 1992, p. 47-48.
- CAGGIANO, Monica Herman S. "Federalismo Incompleto – Descentralização e Indefinição de Competências". In: Revista Direito Mackenzie, nº 2, Ano 1, 2000, p. 33.
- Neste sentido: SILVA, José Afonso da. "Curso de Direito Constitucional Positivo". São Paulo: Malheiros Editores, 2004, 23ª ed., p. 100-101.
- NETO, Manoel Jorge e Silva. "Curso de Direito Constitucional". Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2006, 2ª ed., p. 267-288.
- MORAES, Alexandre de. "Direito Constitucional". São Paulo: Editora Atlas S.A., 2006, p. 281. No mesmo sentido: VELLOSO, Carlos Mário. "Estado Federal e Estados Federados na Constituição Brasileira de 1988: do Equilíbrio Federativo". In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 74/75, Jan./Jul. 1992, p. 60-62.
- Ob. Cit., p. 284.
- Ob. Cit., p. 177.
- MARMELSTEIN, George. "Curso de Direitos Fundamentais". São Paulo: Editora Atlas S.A., 2008, p. 51.
- DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. "Teoria Geral dos Direitos Fundamentais". São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 67.
- GALDINO, Flávio. "Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos – Direitos não Nascem em Árvores". Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 204: "…é preciso ultrapassar a sólida barreira erguida pelo senso comum acerca dos direitos, consoante a qual os direitos fulcrados diretamente na liberdade seriam puramente negativos, não demandando qualquer prestação estatal positiva para sua efetivação."
- Neste sentido: CANOTILHO, J.J. Gomes. "Direito Constitucional e Teoria da constituição". Coimbra: Almedina, 5ª ed., p. 470-471; SILVA, José Afonso da., citado por: ARANHA, Flora Augusta Varela. "Democracia e a Máxima Efetivação dos Direitos Fundamentais: (Re) Pensando Conceitos". In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia – Homenagem ao Professor Nelson Sampaio, nº 15, Ano 2007.2, p. 164.
- ARANHA, Flora Augusta Varela. "Democracia e a Máxima Efetivação dos Direitos Fundamentais: (Re) Pensando Conceitos". In: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia – Homenagem ao Professor Nelson Sampaio, nº 15, Ano 2007.2, p. 162.
- Ob. Cit., p. 163.
- Ob. Cit., p. 163.
- CANOTILHO, J.J. Gomes. "Direito Constitucional e Teoria da constituição". Coimbra: Almedina, 5ª ed., p. 472.
- Ob. Cit., p. 167.
- http://www2.casacivil.ba.gov.br/NXT/gateway.dll?f=templates&fn=default.htm
- http://www2.casacivil.ba.gov.br/NXT/gateway.dll?f=templates&fn=default.htm