RESUMO: O artigo analisa os caracteres do Estado brasileiro contemporâneo em busca da definição do múnus público inerente à advocacia. Examina-se a relação entre a função pública do advogado e seu ministério privado, objetivando a construção de uma teoria da ética para o exercício da profissão. Conclui-se pela necessidade de submissão do interesse particular aos princípios da função pública, qualificando como antijurídica a conduta do profissional que, a pretexto de exercitar a ampla defesa, descumpre o dever de proteção da ordem jurídica constitucional.
ABSTRACT: This paper analyzes the characters of the modern Brazilian State investigating the definition of the 'public feature' inherent to advocacy. It examines the relationship between the civil service of the lawyer and his private ministry, aiming the building of a ethics theory for the profession. These results emphasize the need for submission of particular interest to the principles of civil service, qualifying as antilegal the conduct of the professional that, on the pretext of exercising full defense, violates the duty of protecting the constitutional legal order.
SUMÁRIO: Introdução. Caracteres do Estado brasileiro contemporâneo. 1.1 Estado constitucional.1.2 Estado republicano. 1.3 Estado federativo. 1.4 Estado democrático. 1.5 Estado de Direito. 2 O papel do advogado na ordem constitucional de 1988. 2.1 Defesa da constituição. 2.2 Defesa do Estado Democrático de Direito. 2.3 Defesa dos direitos humanos e da justiça social. 2.4 Defesa da cidadania, da moralidade pública e da paz social. 3 A função pública do advogado e a ética no ministério privado. Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
O art. 44, inciso I, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, dispõe que a instituição tem por finalidade "defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas." [1] Em igual sentido, o Código de Ética e Disciplina da OAB, em seu art. 2º, estabelece ser o advogado "defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade de seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce." [2]
Destinados, primordialmente, a atribuir a agentes independentes dos Poderes do Estado a incumbência de defesa das instituições democráticas, os dispositivos acabaram por atribuir à advocacia e à OAB caráter distinto na ordem constitucional pátria, encerrando significado profundo, com relevantes efeitos no campo da ética profissional. A correta compreensão do alcance dos referidos dispositivos passa pela análise dos caracteres essenciais do Estado brasileiro contemporâneo, que, fruto de diversas influências decorrentes da filosofia liberal do séculos XVIII e XIX, resultou em estrutura complexa, de intrincada composição.
No presente trabalho, examina-se em que medida o caráter público da função do advogado deve interferir no âmbito privado de sua atuação. Para tanto, parte-se de uma consideração analítica do texto legal que atribui munus público à advocacia, examinando-se caracteres do Estado brasileiro contemporâneo, de sorte a elucidar institutos como a democracia, a federação e a república. Em seguida, de posse dos conceitos estudados na seção anterior, analisa-se o papel do advogado na ordem jurídica de 1988, explicitando em poucas linhas até que ponto a missão institucional da OAB e a função pública atribuída ao advogado interferem na ética do seu ministério privado. Conclui-se o trabalho pela proposição de uma teoria da ética pautada no conceito de advocacia enquanto serviço público, aliada ao princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
1 CARACTERES DO ESTADO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
A adequada compreensão da função pública do advogado passa pelo exame dos caracteres primordiais do Estado brasileiro da ordem jurídica de 1988. Com efeito, a defesa da "constituição" e da "ordem jurídica do estado democrático de direito" exige o correto entendimento dos fenômenos a eles inerentes, a saber, o constitucionalismo do século XVIII, o liberalismo legalista e os atributos próprios do Estado contemporâneo, estruturado sob o regime republicano de base democrática, e organizado sob a forma federativa.
Nesse sentido, examinam-se, a seguir, o sentido jurídico e político das expressões que qualificam o Estado brasileiro como constitucional, republicano, federativo, democrático e de direito. A análise servirá de base para a reflexão posterior, que, aprofundando a noção da "função pública" do advogado, investiga em que medida o múnus público a ele conferido deve repercutir no âmbito privado de sua atuação.
1.1 Estado constitucional
O movimento do início da Idade Contemporânea que se convencionou denominar de "constitucionalismo" consiste na aplicação de uma idéia antiga, que remonta à Antiguidade Clássica. A proposta de um Estado Constitucional foi preconizada inicialmente por Platão, que concebia o primado da lei como a garantia dos administrados. [3] Não obstante o sentimento de lei, para os gregos, divergisse da noção adotada atualmente pela comunidade jurídica internacional, a idéia básica de restrição do poder político pela norma jurídica permanece. Sendo a Constituição o instrumento que regula o inteiro sistema normativo, definindo, igualmente, a própria estrutura do Estado em formação, é possível afirmar ser nela "que se exterioriza a idéia de constitucionalismo". [4]
Uadi Lammêgo Bulos coloca que o termo "constitucionalismo" pode ser adotado em dois sentidos: numa acepção ampla, denota o fato de que todos os Estados, em qualquer época da humanidade, possuíram uma constituição, independentemente do regime político adotado ou do perfil jurídico que se lhes possa atribuir; em sentido estrito, significa "a técnica jurídica de tutela de liberdades, surgida nos fins do século XVIII, que possibilitou aos cidadãos exercerem, com base em constituições escritas, os seus direitos e garantias fundamentais, sem que o Estado lhes pudesse oprimir pelo uso da força e do arbítrio." [5]
Com efeito, sempre existiu uma norma básica para conferir poderes ao soberano, fosse ela escrita ou costumeira, explícita ou tácita. A organização de qualquer Estado nunca prescindiu de um conjunto de princípios, preceitos, praxes, usos ou costumes que viesse a legitimar os atos de dominação sobre a coletividade, com a manutenção do status quo. "Constituição", nesse sentido, representa o conjunto de regras que estruturam e asseguram os poderes de um Estado, não se fazendo presente, no âmbito do conceito, a idéia de limitação das possibilidades de atuação dos governantes.
O moderno conceito de Estado constitucional, contudo, está associado à concepção estrita de constitucionalismo, qual movimento de busca pela tutela jurídica das liberdades, ocorrido em fins do século XVIII, no alvorecer da Idade Contemporânea. José Pedro Galvão de Sousa assim define o instituto:
Constitucionalismo. Movimento ideológico que, a partir da Revolução Francesa (1789), promove a implantação dos princípios liberal-democráticos na estruturação jurídico-política do Estado. A constituição escrita é o instrumento de efetivação desses princípios, segundo os quais a sociedade política é concebida como se fosse composta unicamente de indivíduos e se origina do contrato social, regendo-se por uma ordem jurídica estabelecida mediante um voluntarismo racionalista, com base no qual o homem pode montar o Estado de acordo com formulações puramente ideais. [...] Pretendiam os revolucionários de 1789 que, garantindo-se os ‘direitos dos cidadãos’ e a ‘separação dos poderes’, por meio de uma constituição escrita, as liberdades individuais estariam a salvo dos arbítrios do poder, tanto mais que este já agora não passava de mero delegado do povo soberano. Demais disso, os governantes, bem como os governados, ficariam submetidos à ordem legal, ou seja, à constituição escrita. Configurava-se, desta forma, o Estado liberal de direito. [6]
A definição parte da distinção entre o Estado materialmente considerado e o que, no esteio do pensamento liberal burguês pós Revolução Francesa, pode ser construído a partir de proposições normativas, independentemente de guardarem relação ou não com a realidade fática da sociedade que se organiza. [7] Com o avanço da teoria jurídica do Estado, sobretudo em decorrência da filosofia alemã dos séculos XIX e XX, prevaleceu a concepção de Constituição enquanto norma básica que inaugura a ordem jurídica, estruturando o Estado sob o primado da lei, e assegurando aos cidadãos direitos fundamentais, aos quais estaria o legislador obrigado a respeitar. Tal é a razão pela qual se define o constitucionalismo, em sentido estrito, como o movimento de busca pela garantia jurídica das liberdades individuais, o que seria obtido a partir da declaração de direitos fundamentais e da separação dos poderes do Estado. [8]
Apesar de se ter intensificado somente em fins do século XVIII, o processo de estruturação do Estado sob diretrizes pré-definidas, em limitação ao poder soberano, teve início já na Baixa Idade Média. A figura do Estado Constitucional surgiu na Inglaterra, em 15 de junho de 1215, com a Magna Charta Libertatum, imposta pelos barões ingleses ao Rei João, filho de Henrique II, sucessor de Ricardo Coração de Leão, posteriormente conhecido como João Sem Terra. [9] O documento se propunha a "limitar o poder absoluto do monarca, estabelecer os direitos da cidadania e criar processos de controle das finanças públicas por quem as provia de recursos." [10] Conforme bem pontuado por Bulos,
a Magna Charta foi o reflexo das necessidades sociais do seu tempo, abrindo precedentes que se incorporariam, em definitivo, às constituições vindouras. Mencione-se, a propósito, o direito de petição, a instituição do júri, a cláusula do devido processo legal, o habeas corpus, o princípio do livre acesso à justiça, a liberdade de religião, a aplicação proporcional das penas etc. Além da Magna Charta, existiram outros documentos de garantia dos direitos fundamentais que antecederam a moderna disciplina constitucional das liberdades públicas. Funcionavam como verdadeiras constituições não escritas, destacando-se os seguintes: Estatuto ou Nova Constituição de Merton, de 1236; Petition of Right, de 1628; Habeas Corpus Act, de 1679; Bill of Rights, de 1689; e Act of Settlement, de 1701. Alguns se apresentavam sob a forma de pactos escritos. [...] Além dos pactos, vigoraram na Idade Média os forais e os contratos de colonização. [...] A grande importância dos pactos, dos forais e dos contratos de colonização foi o prenúncio de alguns dos pilares do moderno constitucionalismo, dentre os quais a tutela de direitos individuais em documentos escritos e a organização do governo pelos governados. Ambos os itens passaram a integrar, mais tarde, o coração das instituições setecentistas." [11]
O processo de transformação dos Estados soberanos em monarquias constitucionais, iniciado na Baixa Idade Média, alcança seu clímax no início da Idade Contemporânea. Baseadas, sobretudo, nas idéias do filósofo inglês John Locke, que, no princípio do século XVIII, foi "o primeiro a justificar juridicamente o individualismo e o liberalismo como as bases naturais para a estrutura das sociedades humanas", [12] as Constituições Americana (1787) e Francesa (1791), marcaram, do ponto de vista formal, o início do constitucionalismo moderno. [13]
Desde então, a constituição é a dogmático-formal, ou seja, o documento solene, elaborado por um órgão composto de mandatários do ‘povo soberano’ e investido das prerrogativas genéticas do pouvoir constituant, apto, desse modo, a criar as normas fundamentais de certa ordem jurídico-política. Por isso, somente é atribuída legitimidade à constituição ungida pelo ‘poder constituinte’ – inerente ao povo ou à nação – e que é exercido por seus delegados reunidos em ‘assembléia nacional constituinte’, eleita por ‘sufrágio universal’, instrumento indispensável à manifestação da ‘soberania do povo’ ou ‘soberania nacional’. Essa vontade nacional é sempre legal, pois ela é a lei em si mesma, e é legal independentemente de qualquer outra condição, visto que é a origem de toda legalidade. [14]
O Estado constitucional contemporâneo, portanto, é aquele regido por uma constituição escrita, formal, que declara direitos e garantias fundamentais, define a estrutura do governo, delimita as competências dos órgãos internos e estabelece as formas de aquisição e exercício do poder político. Ademais, sobretudo a partir do século XX, as constituições têm revelado outras preocupações, tais como a justiça social, a repartição das rendas nacionais, os direitos inerentes às relações de trabalho, a organização da economia e o papel que nela deve ter o Estado, a educação e a seguridade social (que incorpora a previdência, a saúde e a assistência social). [15] Por figurarem no contexto do que Carl Schmitt denominou de "lei constitucional", [16] tais normas conferem caráter mais perene a disposições de importância primária para o alcance dos objetivos de uma sociedade, posto que o processo de reforma do texto constitucional, em regra, é mais complexo e dificultoso que o de elaboração de normas infraconstitucionais. No que tange às liberdades e prerrogativas individuais e coletivas, não raro, são inseridas na condição de cláusulas pétreas, imutáveis, de sorte que sua revogação exigiria, necessariamente, a ruptura com a ordem jurídico-constitucional vigente.
No Brasil, o constitucionalismo apresentou, segundo Paulo Bonavides, três fases históricas, que caracterizaram o processo de formalização das instituições. A primeira, verificada no período do Império (1822 a 1889), estava vinculada ao modelo constitucional francês e inglês do século XIX; a segunda, identificada como a primeira etapa da República (1891 a 1930), consistiu na adoção do modelo americano, com destaque para o federalismo e o presidencialismo; a terceira, do constitucionalismo do Estado social (1934 em diante), apresenta profunda influência da filosofia jurídica alemã do século XX, tendo forte inspiração nas constituições de Weimar e Bonn. [17]
A Constituição Federal de 1988 encontra-se inserida no contexto do constitucionalismo do Estado social, [18] e incorporou elementos do movimento jusfilosófico da segunda metade do século XX, atualmente denominado de pós-positivismo jurídico. Cuida-se de pensamento que, em oposição à teoria kelseniana da ordem jurídica enquanto sistema puramente formal, atribui maior importância aos princípios do Direito que às regras emanadas das fontes formais do Estado, lastreada por uma teoria dos direitos fundamentais, pautada na noção de dignidade humana. Tal perspectiva, que considera as relações entre valores, princípios e regras, conduz a uma reaproximação do Direito com a Ética, [19] na medida em que atribui eficácia jurídica a princípios fundamentais, por vezes formulados sob a forma de conceitos abertos ou indeterminados, propositalmente assim estabelecidos com a finalidade de propiciar interpretações que se conformem às especificidades dos distintos casos concretos.
O atual Estado constitucional brasileiro, assim, para além de abarcar a noção originária de limitação do poder dos governantes pelos governados, contempla: 1) a previsão de direitos prestacionais aos administrados, sob a forma de políticas públicas impostas aos governantes, mediante normas de caráter programático, que implementam a idéia de Estado social; 2) um constitucionalismo principiológico, a exigir o esforço por uma hermenêutica tópica, concretizadora e estruturante, a par da metodologia jurídica clássica, própria do incompleto pensamento positivista.
1.2 Estado republicano
Do latim res publica, "coisa pública", a expressão "república" designa, etimologicamente, aquilo que é público, cuja propriedade é comum, pertencente a todos. Segundo De Plácido e Silva, o vocábulo é utilizado, no âmbito jurídico, em oposição a "monarquia", para designar o regime político em que o chefe do Poder Executivo é escolhido ou eleito pelo povo. [20] Diz respeito, pois, a uma forma de governo, traduzindo o modo como é exercido o poder político.
Na república, pois, o dirigente do Estado entende-se um representante do povo, desde que, por sua livre vontade e escolha, é levado ao posto ou cargo. Está, assim, o vocábulo, conforme seu sentido etimológico, república, exprimindo o sistema de governo; traduz o governo do povo, governo instituído pela vontade popular. A república, desse modo, importa num regime político de representação ou regime representativo. [21]
Há, contudo, um elemento primordial de que se ressente a definição acima. Por designar o sistema de governo em que a "coisa", ou o aparato burocrático do Estado, é pública, é traço intrínseco do sistema republicano que, além de o poder político ser desempenhado por um representante eleito pelo povo, seja esse mandato temporário, posto que atribuir caráter definitivo à escolha popular seria equivalente a transferir a titularidade do poder ao governante escolhido. República, assim, é a "forma de governo em que a autoridade suprema é eleita e temporária." [22]
José Pedro Galvão de Sousa afirma que o sentido original da res publica estava associado ao "interesse geral" ou à "administração pública", como nos aforismos "O rei não é dono da república, mas o seu primeiro servidor" ou "O rei existe para a república e não a república para o rei". Nesse contexto, a palavra não caracterizava uma forma específica de governo, mas funcionava como sinônimo da vontade geral ou próprio do Estado, qual nação politicamente organizada. Somente no século XVI, quando Maquiavel publicou "O Príncipe", a expressão "república" foi utilizada no seu sentido contemporâneo, em oposição a "monarquia", ante a afirmação do autor de que "todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre repúblicas e monarquias". [23] Em palavras de Saïd Farhat:
A república contrasta com a forma monárquica, em primeiro lugar, em termos de temporalidade de todos os mandatos e preenchimento dos cargos dos poderes Legislativo e Executivo. O provimento desses cargos nas repúblicas faz-se por meio de eleições baseadas no sufrágio universal, no voto secreto e na renovação a prazo certo dos mandatos. [24]
A referência de Farhat a "sufrágio universal" traz a lume a questão da relação da república com a democracia. O conceito trazido pelo autor adéqua-se à realidade atual dos Estados republicanos, mas peca quando se pretenda uma definição aplicável a qualquer momento histórico, de sorte a abarcar a essência do instituto.
De fato, não há que se confundir república com democracia: a primeira é uma forma governo, explicitando o modo como é exercido o poder político; a segunda é regime político, designando quem é o titular do poder soberano. [25] Há monarquias em que o Estado é administrado de forma democrática (a exemplo da Inglaterra, Espanha, Bélgica e Dinamarca), e já houve repúblicas em que, a despeito de o governante ser eleito, não o era pela totalidade do "povo", mas por uma minoria pertencente à elite sócio-econômica, caracterizando uma república aristocrática (caso de Gênova, Veneza e Florença). [26] Democracia diz respeito à existência de institutos que assegurem o direito de participação do povo na vida política, a possibilidade de todos os que compõem o Estado-nação interferirem nas decisões governamentais, ante a compreensão de que o titular do poder soberano é o povo (do grego demo kratos, "governo do povo"); [27] república, por sua vez, expressa, simplesmente, o sistema de governo em que a autoridade máxima do Estado não advém de uma linhagem real, mas é eleita a partir de um universo de cidadãos capazes, sendo tal regime considerado democrático somente na medida em que seja assegurado a todos o direto ao voto.
Atualmente, porém, como pontuado por Farhat, o conceito de república parece abranger o de regime democrático, tendo por pressuposto o sufrágio universal. [28] Como observa Galvão de Sousa, numa perspectiva contemporânea para o instituto, pode-se afirmar que "na república, o direito de eleger e ser eleito para a chefia do governo pertence a todos, observadas certas exigências gerais e legais, como as referentes à idade mínima, à nacionalidade, ao gozo dos direitos políticos." [29]
Corroborando com a inserção do caráter democrático no conceito de república, Gilmar Ferreira Mendes, referindo ao princípio republicano, assim se expressa:
Estampado no caput do art. 1º da Constituição de 1988, esse princípio traduz a nossa opção por uma república constitucional, ou seja, por uma forma de governo na qual – em igualdade de condições ou sem distinções de qualquer natureza – a investidura no poder e o acesso aos cargos públicos em geral – do Chefe do Estado ao mais humilde dos servidores – são franqueados a todos os indivíduos que preencham tão somente as condições de capacidade estabelecidas na própria Constituição ou, de conformidade com ela, em normas infraconstitucionais. Nesse sentido, o princípio republicano opõe-se radicalmente ao princípio monárquico, pois enquanto nas repúblicas os dirigentes são escolhidos pelo povo, diretamente ou através de seus representantes, para o exercício de mandatos temporários, já nos regimes monárquicos – mesmo naqueles que se consideram modernos porque são regidos por constituições normativas, como é o caso da Espanha e da Suécia, por exemplo – ainda aí essa investidura é de caráter hereditário e vitalício, recaindo, por sucessão, em algum membro da família reinante. [30]
Nessa perspectiva, seria a república um estágio mais avançado, em termos de organização social, que o mero governo democrático. Um governo estruturado sob a forma de monarquia pode caracterizar-se como democracia, bastando, para tanto, a mudança da perspectiva popular acerca da figura do rei, que, no regime democrático, governa consoante as diretrizes estabelecidas pelo povo e sob a fiscalização constante deste, a partir de um Parlamento. Em um sistema republicano, porém, parte-se do pressuposto de que reside no povo o poder de escolha dos ocupantes de qualquer cargo do Estado, o que constitui inegável aumento das prerrogativas populares de participação política.
Se a república, no seu sentido histórico, representa, tão somente, o regime segundo o qual o Chefe do Estado é eleito, não importando se pela totalidade dos cidadãos ou por uma elite minoritária, pelo que poderia apresentar-se como sistema democrático ou não, modernamente, é vista como a forma de governo democrática por excelência que, para além disso, encerra traços específicos, fruto da maturação das estratégias políticas dos séculos XIX e XX. Como caracteres da república moderna, apresentam-se, dentre outros: a) a existência de uma estrutura político-organizatória garantidora das liberdades civis e políticas; b) a elaboração de um catálogo de liberdades, contemplando o direito de participação política e os direitos de defesa individuais; c) o reconhecimento de corpos territoriais autônomos, seja pela organização federativa, seja pela constituição de autarquias territoriais, como na Itália e em Portugal; d) a legitimação do poder político, mediante o reconhecimento do princípio democrático, segundo o qual a soberania pertence ao povo, que se autogoverna mediante leis elaboradas diretamente ou por meio de seus representantes; e, por fim, e) a opção pela eletividade, colegialidade, temporariedade e pluralidade, como princípios ordenadores do acesso aos cargos políticos, em contraposição aos critérios da designação, hierarquia e vitaliciedade, típicos dos regimes monárquicos. [31]
1.3 Estado federativo
Federação ou federalismo é a forma organização político-administrativa do Estado que se estrutura pela união de entidades políticas distintas, as quais, mantendo poderes autônomos, convencionam a existência de uma única entidade soberana. [32] Idealizado pelo constituinte norte-americano de 1787, que, valendo-se de uma construção histórica peculiar – a existência de 13 colônias britânicas dotadas de relativa independência – elaborou um modelo de Estado adequado às necessidades específicas daquela nação, o pacto federativo, ou pactum foederis, como ficou conhecido, espalhou-se pelo mundo como a forma de Estado padrão das nações que obtiveram a independência nos séculos XIX e XX, tendo sido adotado pelo Brasil, mediante o Decreto n.º 1, de 15 de outubro de 1889, e incorporado no texto da Constituição republicana, de 1891. [33]
Federalismo é termo prestigiado na doutrina e na pregação política, dado que encerra a idéia de união (foedus, foederis = união, aliança) simultaneamente com a de liberdade (autonomia). Seu uso, no entanto, tem padecido de um certo unilateralismo, pois quase sempre se atém a um sentido técnico-jurídico específico: a aglutinação de Estados que, mantendo poderes autônomos, convencionam a existência de uma única entidade soberana. Ao longo da história, há vários exemplos desse fato. Clássicos, a respeito, são os casos dos Estados Unidos da América, da Suíça e da Alemanha. Esses países se formaram por força de injunções históricas que levaram entidades soberanas à união a fim de terem condições de subsistir, já agora integradas sob um único poder supremo. Surgia, assim, a federação de Estados, de que se extraiu a teoria do Estado Federal, cuja fórmula institucional veio a ser copiada ou preconizada para as mais variadas finalidades. [34]
É a federação, pois, genuína técnica de distribuição do poder, que coordena as competências constitucionais das pessoas políticas de direito público interno. Reservando-se aos entes federados relativa liberdade normativa e ampla capacidade administrativa, confere-se ao Estado federal, com exclusividade, o atributo da soberania, entendido como a capacidade de autodeterminação plena e de reconhecimento pela comunidade internacional.
Na federação, embora não se verifique um regime unitário, há um laço de unidade entre as diversas coletividades federadas, de modo a mostrá-las, em suas relações internacionais e mesmo em certos fatos de ordem interna, com um Estado único. Há, assim, um só Estado soberano, embora se indiquem as subunidades federadas, senhoras de uma autonomia administrativa, referente à gestão de seus negócios dentro dos limites jurisdicionais que lhes são atribuídos. [35]
Assim, somente o Estado federal, resultado da união indissolúvel dos entes que o integram, ostenta as prerrogativas típicas dos Estados soberanos, a saber, o poder de responder à agressão bélica, firmar tratados internacionais e enviar e receber representantes diplomáticos (jus belli, jus tractum e jus legationis). Os demais entes, a despeito da relativa autonomia, somente se relacionam com Estados internacionais na forma prevista no instrumento constitucional, sempre intermediada pela entidade representativa do Estado federal.
Segundo Uadi Lammêgo Bulos, a federação caracteriza-se pelos seguintes elementos: a) associação de Estados-membros autônomos, os quais integram o Estado federal soberano; b) impossibilidade de secessão, dado que, uma vez criada, a federação não pode ser desfeita (indissolubilidade do vínculo federativo); c) o todo, o Estado federal, bem como as suas partes indissociáveis, os Estados, retiram sua força da constituição, fonte primária de todas as competências administrativas, legislativas e tributárias, exercidas pelos governos locais; d) descentralização político-administrativa, sendo o poder central do Estado federal compartilhado com as entidades federadas, que exercem poderes autônomos; e) participação dos Estados no poder legislativo federal; f) existência de um órgão representativo dos Estados-membros, o Senado Federal; g) as diferentes entidades federativas têm competência administrativa, legislativa e tributária; h) possibilidade de intervenção federal, para preservar o equilíbrio federativo, nas hipóteses excepcionais previstas na constituição; i) possibilidade de criação de Estados-membros ou de modificação dos já existentes; j) previsão de um órgão de cúpula do Poder Judiciário, com o fim de resguardar a soberania nacional. [36]
A federação se contrapõe a três outras formas de organização do Estado. No regime unitário, o Estado é estruturado em uma única pessoa política, podendo apresentar-se, por sua vez, em três variantes: a) Estado unitário "puro", fortemente centralizado, reunindo as atribuições político-administrativas em um só centro produtor de decisões, sendo que as coletividades territoriais menores usufruem de uma autonomia delegada; b) Estado unitário descentralizado administrativamente, em que o governo central transfere serviços e responsabilidades a pessoas descentralizadas; e c) Estado unitário descentralizado política e administrativamente, quando as decisões são tomadas de forma compartilhada entre o governo central e o povo, que as executa perante o comando central (modalidade comum no continente europeu e a mais utilizada na atualidade). Pela forma regional, que, ontologicamente, é um desdobramento do Estado unitário, o legislador prevê a possibilidade de descentralização política para alcançar formas mais avançadas de regionalismo. É hipótese prevista na constituição monárquica da Espanha, de 1978 e na Carta italiana de 1947 (Estado unitário com descentralização regional). Por fim, na confederação, tem-se, em verdade, uma união de Estados que, diversamente do que ocorre na federação, resguardam o atributo da soberania. Rege-se por um tratado e seguem uma política comum de segurança interna e defesa externa. São exemplos a Confederação dos Países Baixos, de 1579 e a Confederação do Reno, de 1806, que, a despeito de representarem referência histórica, ilustram a viabilidade do instituto. [37]
A organização do Estado sob a forma federativa, sobretudo em países de grande extensão territorial, mostra-se alternativa eficiente, na medida em que possibilita ao governo maior aproximação dos administrados, favorecendo o sentir das necessidades locais. Por estabelecer uma administração descentralizada, que, ademais, é dotada da capacidade de legislar segundo o interesse local, obtém-se uma gestão pública mais adequada, tanto mais bem sucedida quanto mais bem distribuídas forem as atribuições entre as esferas de poder.
A organização federativa de alguns Estados enseja a descentralização dos poderes, entre um ente federal, a União, e os entes federados, os Estados, províncias ou cantões que a integram. Desse modo, a função de governar fica tanto mais próxima dos governados quanto mais equilibradamente distribuídas forem as atribuições das várias esferas de poder: a federal, a estadual, provincial ou cantonal e a local, ou municipal. [38]
No Brasil, a federação resulta da união indissolúvel de quatro entidades distintas, a saber, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Estados e Municípios são autarquias territoriais a que se conferiu autonomia política; Distrito Federal é o ente criado para abrigar sede do governo federal; e União é a pessoa jurídica incumbida de agir em nome do Estado federal, reunindo as competências de representação internacional e de governo central, incluindo o poder de editar leis nacionais, dirigidas aos habitantes do País e aos demais entes da federação. São estabelecidas três ordens político-administrativas, a saber a federal, sob o encargo da pessoa jurídica da União, a estadual, de competência dos Estados federados, e a municipal, de responsabilidade dos Municípios. Ao Distrito Federal incumbem competências administrativas e legislativas reservadas aos Estados e Municípios.
Diversamente do que ocorreu nos Estados Unidos, Suíça e Alemanha, em que Estados soberanos optaram pela união sob a forma federativa, a federação brasileira surgiu a partir de um Estado unitário, que se desmembrou em entidades a que se conferiu autonomia. Tal é a razão pela qual se verifica, no Brasil, grande concentração de competências na pessoa da União, o que prejudica a tônica do sistema federalista.
Federações nascem, geralmente, de um pacto entre entes autônomos, muitas vezes preexistentes à própria federação. Assim é nos países de longa tradição federativa – como, por exemplo a Suíça, a Alemanha e os Estados Unidos: os cantões da Confederação Helvética, os antigos reinos alemães e as colônias inglesas, que formaram os Estados Unidos, gozavam de autonomia regional anterior à soberania coletiva. Naqueles países, a União resultou de um pacto federativo voluntário, após o qual passou a existir um poder central, com competência limitada originalmente a questões pertinentes à soberania externa. Depois, certas necessidades históricas contribuíram para o crescimento do poder federal – quase sempre em detrimento do poder regional. Mas, em todos eles, as autoridades locais têm grande soma de competências diretamente relacionadas ao bem-estar das populações, que desconhecemos no Brasil. Aqui, como se sabe, o poder tende a concentrar-se na União, da qual todos esperam providências e, sobretudo, verbas. [39]
Não obstante a problemática da repartição de receitas e competências, passível de solução por reformas que resguardem o pacto federativo, ou mesmo por uma hermenêutica constitucional mais consentânea às necessidades regionais, é a federação sistema que busca atender aos anseios sociais, na medida em que é capaz de "preservar a particularidade no âmbito de uma união estatal maior, mantendo o equilíbrio entre a soberania da nação como um todo e a autonomia dos entes federados, concomitantemente à sua interdependência." [40] Fruto do esforço teórico por um regime político que abarcasse as diferenças, o sistema federativo regula e administra os conflitos entre as diferentes esferas de governo, possibilitando um esquema institucional que melhor se adapte às condições locais, garantindo a autonomia de cada ente, em verdadeira distribuição do poder. A busca pela harmonia e pelo equilíbrio entre os entes federados é a base do pacto federativo. [41]
1.4 Estado democrático
Democracia (do grego demo + kratos, "governo do povo") é um regime de governo em que o poder de tomar importantes decisões políticas está com a totalidade dos cidadãos (povo), que o exerce direta ou indiretamente, por meio de representantes eleitos. [42] Exprime a idéia de que a as diretrizes políticas da sociedade são determinadas pela própria população, que interfere nas decisões do Estado. [43] Pressupõe um governo limitado em termos de poder, com a garantia de direitos e liberdades fundamentais. Pode existir num sistema presidencialista ou parlamentarista, republicano ou monárquico. Opõe-se a regimes totalitários, despóticos, ditatoriais ou tirânicos, a exemplo do nazismo e do fascismo.
O ideário democrático é creditado a Atenas, não obstante o fato de, nos gregos, a maior parte da população ser excluída do processo. Surge após a tirania de Pisístrato e seu filho, valendo-se da legislação produzida por Clístenes. Era estruturada em três órgãos principais: a) o Conselho dos Quinhentos, com funções administrativas, financeiras, militares e de proposição legislativa; b) a Ekklesia, assembléia geral da população, responsável pela votação das leis; e c) a Heliáia, incumbida das funções judiciais. [44]
A democracia grega era baseada em três grandes garantias, destinadas a todos os cidadãos: a isonomia, a isotimia e a isagoria. Pela isonomia era proclamada a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de grau, classe ou riqueza. Qualquer discriminação de ordem jurídica importaria em quebra do princípio da isonomia. Com a isotimia, restava abolida a instituição de títulos ou funções hereditárias, abrindo-se a todos os cidadãos o livre acesso ao exercício de funções públicas, para cuja investidura bastariam a confiança e honradez depositadas no administrador pelos demais cidadãos. Quanto à isagoria, representava o direito à palavra, assegurando-se a todos a oportunidade de falar nas assembléias populares, realizadas na Ágora. [45]
Para Aristóteles (384-322 a.C.), democracia é uma forma de governo, a par da monarquia e da aristocracia. Apesar de amplamente difundida, a proposição aristotélica é criticada, posto que os institutos mencionados se referem a regimes políticos, conceito bem mais abrangente. De fato, "aristocracia e democracia são tipos de organização social que podem existir em governos de forma republicana ou monárquica." [46]
Há que se distinguir entre a democracia clássica e a moderna. A primeira, dos tempos de Heródoto e Aristóteles, verificada nas cidades gregas, e com reflexo em Roma, bem como nas repúblicas medievais (cidades italianas, cantões suíços), foi, basicamente, um modo de designação de governantes, consubstanciada em serem escolhidos pelos governados. A segunda (democracia moderna) "se reveste de matizes ideológicos, pressupondo uma concepção do homem e da sociedade da qual decorre o critério para a legitimação do poder." [47]
Tem-se aplicado à democracia a famosa fórmula de Abraham Lincoln (1809-1865): "governo do povo, pelo povo, para o povo", o que, evidentemente, não passa de um slogan, pois é óbvio que o povo não se pode governar a si mesmo. Na Grécia Antiga, o povo de uma cidade (Polis), com exercício de direitos políticos, não era formado por toda a população, cuja maioria estava na multidão de escravos, estrangeiros e metecos, excluídos da cidadania e, conseqüentemente, impedidos de votar; o que havia, a bem dizer, era uma ampla aristocracia. A democracia moderna surge quando constituído o Estado nacional – não mais o antigo Estado-cidade – e ao povo, entendido como nação, se atribui o poder soberano. Não se trata da comunidade nacional no sentido orgânico e no seu desenvolvimento histórico, mas prevalece a idéia do povo na totalidade dos cidadãos que a integram, considerados individualmente. Daí resulta o sufrágio universal igualitário, como expressão da vontade geral. [48]
Com efeito, a moderna democracia, mais que um regime político, tem sido compreendida como elemento de justificação do poder constituído. Por oportunizar a participação popular em igualdade de condições para todos os cidadãos, possibilita a conformação do resultado à noção de "vontade geral", configurando um estado de coisas legítimo, porquanto definido a partir de um processo decisório igualitário.
Democracia é o regime de governo no qual a legitimação, justificação do poder, encontra-se alicerçada pelo povo, e no qual o cidadão é que toma as decisões políticas. Legitimação é a aquiescência que os cidadãos outorgam a seus representantes e ao sistema político, o que contribui para a harmonia social e evita conflitos com segmentos da população que não compartilham em igualdade na distribuição dos bens produzidos. A justificação democrática é a melhor forma hodierna de estruturação coletiva porque permite que uma sociedade extremamente dividida em estratificações sociais possa chegar a consensos para proferir suas decisões mais importantes. [49]
A democracia se verifica sob as formas direta e representativa, ou indireta. Na sistemática direta, todos os cidadãos decidem diretamente cada assunto por votação. Trata-se de forma que se tornou cada vez mais difícil, sendo necessariamente convertida na democracia representativa, quando o número de cidadãos cresce. [50] Na Antiguidade e na Idade Média, dada a dimensão restrita da população, era possível a democracia direta, como na Suíça. Nos Estados modernos, de grandes proporções – e em que, ademais, a luta pela subsistência impede o sujeito de caracterizar-se qual "homem livre" – é apenas viável a democracia indireta ou representativa, cabendo ao povo a escolha dos que devem representá-lo no governo e nas assembléias legislativas. [51]
o homem na democracia direta, que foi a democracia grega, era integralmente político. O homem do Estado moderno é apenas acessoriamente político, ainda nas democracias mais aprimoradas, onde todo um sistema de garantias jurídicas e sociais fazem efetiva e válida a sua condição de "sujeito" e não apenas de "objeto" da organização política. Nos sistemas compactos de ordem totalitária, o homem, perante as esferas políticas, deixa de ser politicamente "sujeito" ou "pessoa", para anular-se por inteiro como "objeto", que fica sendo, da organização social. Se o homem moderno tem apenas uma banda política do seu ser, é porque antes de mais nada aparece também como homo oeconomicus. Quando dizemos homem econômico e político, estamos principalmente aludindo à possibilidade que tem o homem de conceder ou deixar de conceder mais cuidado ao trato dos assuntos políticos. [52]
Para Rousseau, a democracia legítima somente pode ser alcançada sob a forma direta, na medida em que a sistemática representativa proporciona um governo não do povo, mas dos políticos. Em palavras do pensador:
A Soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não pode ser alienada; é ela mesma ou é outra; não há meio-termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser, seus representantes, não passam de seus comissários; nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o Povo diretamente não ratificou é nula; não é uma lei. O povo inglês pensa ser livre, mas está muito enganado; só é livre durante a eleição dos membros do Parlamento: uma vez estes eleitos, ele se torna escravo, não é mais nada. Nos curtos momentos de sua liberdade, pelo uso que desta faz, bem merece que a perca [53]
A reflexão encontra guarida no conceito de efetividade social da legislação. Em um sistema democrático, uma norma de inequívoca reprovabilidade social ou que seja reiteradamente desobedecida, a despeito da aplicação das sanções jurídicas previstas, acaba por cair em desuso. Trata-se de realidade que demonstra a manutenção do poder nas mãos do povo, ainda quando formalmente tenha sido relegada a representantes eleitos a faculdade de editar normas para o corpo social.
Apesar disso, a democracia oriunda da Revolução Francesa de 1789 organizou-se sob a forma representativa, inclusive por razões de ordem prática, em função da elevada dimensão da população e da ordenação dos assuntos econômicos que, como já visto, inviabilizaram a democracia direta.
O homem moderno, via de regra, "homem massa", precisa de prover, de imediato, às necessidades materiais de sua existência. Ao contrário do cidadão livre ateniense, não se pode volver de todo ele para a análise dos problemas do governo, para a faina penosa das questões administrativas, para o exame e interpretação dos complicados temas relativos à organização política e jurídica e econômica da sociedade. Evidentemente, só há, pois, uma saída possível, solução única para o poder consentido, dentro no Estado moderno: um governo democrático de bases representativas. [...] Para os opositores do filósofo contratualista, uma verdade fica patente: não há fugir ao imperativo de representação, porquanto, do contrário, não haveria nenhum governo apoiado no consentimento, tomando-se em conta a complexidade social, a extensão e a densidade demográfica do Estado moderno, fatores esses que embaraçam irremediavelmente o exercício da democracia direta. [54]
Como características da moderna democracia indireta, Paulo Bonavides destaca: a) a soberania popular, como base de todo poder legítimo; b) o sufrágio universal, com pluralidade de candidatos e de partidos; c) a separação dos poderes; d) a igualdade de todos perante a lei; e) a manifesta adesão ao princípio da fraternidade social; f) a representação como base das instituições políticas; g) a limitação de prerrogativas dos governantes; h) o Estado de direito, com a prática e proteção das liberdades públicas por parte do Estado e da ordem jurídica, abrangendo todas as manifestações de pensamento livre, tais como a liberdade de opinião, de reunião, de associação e de fé religiosa; i) a temporariedade dos mandatos eletivos; j) a existência garantida das minorias políticas, com direitos e possibilidades de representação, bem como das minorias nacionais, onde estas porventura existirem. [55]
Mais recentemente, tem-se falado na existência de uma terceira forma de democracia, denominada de semidireta. Trata-se de "modalidade em que se alteram cada vez mais as formas clássicas da democracia representativa para aproximá-la cada vez mais da democracia direta." [56]
Verifica-se com o Estado moderno a impossibilidade irremovível de alcançar-se a democracia direta contida no ideal e na prática dos gregos. Mas do mesmo passo percebeu-se ser possível fundar instituições que fizessem do governo popular um meio-termo entre a democracia direta dos antigos e a democracia representativa tradicional dos modernos. Na democracia representativa tudo se passa como se o povo realmente governasse; há, portanto, a presunção ou ficção de que a vontade representativa é a mesma vontade popular [...] O poder é do povo, mas o governo é dos representantes, em nome do povo: eis aí toda a verdade e essência da democracia representativa. Com a democracia semidireta, a alienação política da vontade popular faz-se apenas parcialmente. A soberania está com o povo, e o governo, mediante o qual essa soberania se comunica ou se exerce, pertence por igual ao elemento popular nas matérias mais importantes da vida pública. Determinadas instituições, como o referendum, a iniciativa, o veto e o direito de revogação, fazem efetiva a intervenção do povo, garantem-lhe um poder de decisão de última instância, supremo, definitivo, incontrastável. [57]
De fato, valendo-se de institutos como o referendo, o plebiscito, a iniciativa popular, o direito de revogação – consistente no recall (revogação individual) e no Abberufungsrecht (revogação coletiva) [58] – e o veto, a democracia semidireta permite ao povo não apenas eleger, mas também a estatuir; não interfere apenas no âmbito político, mas também no jurídico, posto que além de eleger, legisla. [59]
Para De Plácido e Silva, o poder do povo, nas grandes democracias ocidentais, expressa-se pelo voto direto, por meio do qual os cidadãos elegem os representantes dos poderes Legislativo e Executivo para defenderem seus interesses, sendo possível a intervenção do povo, qual titular do poder, através do plebiscito, referendo e outros meios. [60] Consigna-se, assim, a opção generalizada, dos Estados modernos, pela democracia semidireta, com aplicação de, senão todos, alguns de seus institutos.
Modernamente, tem-se proposto um conceito de democracia bastante abrangente. Para Saïd Farhat, democracia é o sistema político caracterizado pelos seguintes elementos: a) soberania do povo, exercida principalmente através do voto direto, secreto, universal e periódico; b) limitação dos poderes conferidos ao Estado, com separação das funções executiva, legislativa e judiciária; c) prevalência da vontade da maioria sobre a da minoria, expressa aquela de modo e conforme instrumentos predeterminados e de conhecimento geral; d) elenco de direitos e garantias fundamentais, de supressão ou restrição difícil, senão impossível; e) temporariedade da investidura em funções de poder; f) primado da lei sobre a vontade das pessoas; e g) existência de uma sistemática de mudança das normas constitucionais, exceto para dispositivos declarados imutáveis pela própria constituição. [61]
A legitimidade democrática teria por pressuposto, assim, a garantia formal e o exercício efetivo dos princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana. É o que lecionam Carlos Velloso e Walber Agra:
Três princípios são essenciais para o desenvolvimento da legitimidade do regime político democrático: igualdade, liberdade e dignidade da pessoa humana (não necessariamente nessa ordem). Igualdade, vislumbrada não em seu sentido material, em que todos devem ter o mesmo direito ao acesso a bens materiais mínimos, mas em sua definição de que todos os cidadãos devem ter as mesmas oportunidades em influenciar as decisões políticas tomadas pelos órgãos estatais e também em ocupar qualquer cargo público. Liberdade no sentido de que os homens são livres para escolher suas opções, com capacidade de decidir sobre seus destinos sem que sofram interferências de outrem. Dignidade da pessoa humana, porque a democracia não pode desrespeitar os valores inerentes aos homens, sob pena de se transformar em simulacros de participação do povo, como ocorreu com a ascensão do nazismo na Alemanha em 1933. [62]
Nesse sentido, a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, entende que, "embora existam pequenas diferenças nas várias democracias, certos princípios e práticas distinguem o governo democrático de outras formas de governo." Haveria, pois, um conjunto de características do regime democrático, a par do elemento central da eleição por parte da totalidade de cidadãos.
Democracia é o governo no qual o poder e a responsabilidade cívica são exercidos por todos os cidadãos, diretamente ou através dos seus representantes livremente eleitos. [...] é um conjunto de princípios e práticas que protegem a liberdade humana; é a institucionalização da liberdade. A democracia baseia-se nos princípios do governo da maioria associados aos direitos individuais e das minorias. Todas as democracias, embora respeitem a vontade da maioria, protegem escrupulosamente os direitos fundamentais dos indivíduos e das minorias. [63]
Por fim, registre-se que a democracia tem sido exercida sob várias modalidades, a saber, a cristã (conservadora e direitista não radical); industrial, (que permite a participação dos operários nos destinos da empresa); liberal (em que o Estado se abstém de intervir na ordem econômica e social); social (primando pela redistribuição da renda nacional); representativa (estruturada sob um sistema de votação); e popular (socialista, com a supressão das classes sociais). [64]
Na ordem jurídica brasileira de 1988, o regime democrático se afirma pelas seguintes características: a) sufrágio universal, consubstanciado no voto direto, secreto e periódico, exercido por todos os cidadãos em igualdade de condições; b) institutos da democracia direta, a saber, o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular; c) o pluripartidarismo, com garantia de representação das minorias políticas; d) a existência de direitos e garantias fundamentais, assegurando o respeito às liberdades individuais e à dignidade da pessoa humana.
1.5 Estado de Direito
Segundo Mateus Costa Pinheiro, a idéia de "Estado de Direito" surgiu primeiramente no meio acadêmico, a partir da doutrina alemã do século XIX, vindo, em seguida, a se tornar um princípio presente em diversas constituições. Foi exposta pela primeira vez em 1829, por um alemão, Von Mohl, para quem o Estado de Direito se baseava na razão, no conhecimento humano e em uma Constituição, sendo contra despotismos e arbitrariedades. [65]
O Estado de Direito emerge do que se convencionou denominar de Estado Liberal e da necessidade básica de controlar o uso arbitrário do poder por parte do Estado. A concepção dos direitos fundamentais se baseava no liberalismo, filosofia política que prevaleceu no século XVIII e início do século XIX, pautada numa teoria dos direitos naturais, que afirmava a existência de prerrogativas inalienáveis do gênero humano. [66]
Para De Plácido e Silva, Estado de Direito é "a organização de poder que se submete à regra genérica e abstrata das normas jurídicas e aos comandos decorrentes das funções estatais separadas, embora harmônicas." [67] É o Estado organizado sob o primado da lei, que estrutura a distribuição do poder e impossibilita o arbítrio governamental.
O Estado de direito pode ser definido com simplicidade com as palavras que o senador Milton Campos, ex-governador de Minas Gerais e ex-ministro da Justiça, gostava de empregar: ‘Mais das leis que dos homens’. É aquele, portanto, fundado sobre princípios e normas de direito, e que dispõe dos instrumentos necessários a oferecer à sociedade a garantia da aplicação invariável de uns e de outras, independentemente de circunstâncias de tempo, lugar ou pessoa. O Estado de direito é organizado sob uma Constituição, decretada pelo povo, através de seus representantes eleitos, e por todos aceita, respeitada, cumprida e praticada. [68]
O Estado de Direito é aquele em que existe o denominado "império da lei". A expressão abarca alguns significados: em primeiro lugar, pretende dizer que, neste tipo de estado, as leis são criadas pelo próprio Estado, através de seus representantes politicamente constituídos; em segundo lugar, traduz a realidade de que, uma vez que o Estado criou as leis e estas passam a ser eficazes, aplicáveis, o próprio Estado fica adstrito ao cumprimento das regras e dos limites por ele mesmo impostos; o terceiro aspecto, que se liga diretamente ao segundo, é a limitação do poder estatal pela lei, o que se alcança, inclusive, em virtude do acesso de todos ao Poder Judiciário, que, no Estado de Direito, possui autoridade e autonomia para garantir que as leis existentes cumpram o seu papel de impor regras e limites ao exercício do poder estatal. [69]
Outro aspecto da expressão refere-se a que tipo de "direito" exercerá o papel de limitar o exercício do poder estatal. No estado democrático de direito, somente o direito positivo, que foi codificado e aprovado pelos órgãos estatais competentes, como o Poder Legislativo, tem o condão de limitar a atuação estatal, e somente ele poderá ser invocado nos tribunais para garantir o chamado "império da lei". Todas as outras formas de direito, como o Direito Canônico ou o Direito natural, ficam excluídas, a não ser que o direito positivo lhes atribua esta eficácia, e apenas nos limites por ele expressamente estabelecidos. [70]
Nesse contexto, destaca-se o papel exercido pela Constituição. Nela delineiam-se os limites e as regras para o exercício do poder estatal (onde se inscrevem as chamadas "garantias fundamentais"), e, a partir dela, e sempre tendo-a como baliza, redige-se o restante do chamado "ordenamento jurídico", isto é, o conjunto de leis que regem uma sociedade. O estado democrático de direito não pode prescindir da existência de uma Constituição. [71]
É, pois, o Estado de Direito, no sentido originário, estrito, da expressão, aquele que decorre da ordem jurídica constitucional, confundindo-se com a própria noção de Estado constitucional. "Caracteriza-se pela submissão do Estado à ordem jurídica, de maneira a salvaguardar as liberdades, evitando as arbitrariedades do poder." [72]
A concepção dominante do Estado de Direito abrange os seguintes aspectos: 1) supremacia da lei – rule of Law – da tradição britânica, ou seja, a limitação do exercício do poder por uma supralegalidade à qual devem subordinar-se as leis dele emanadas; 2) o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; 3) o princípio da isonomia – ou igualdade perante a lei – significando a aplicação da norma jurídica a todos, sem acepção de pessoas; 4) a independência da magistratura, assegurando-se aos juízes e tribunais condições que lhes permitam o desempenho de suas funções sem ficarem à mercê de qualquer coação ou influência inibidora; 5) garantias eficazes aos direitos individuais e sociais; 6) responsabilidades dos governantes e agentes do poder por atos de transgressão da ordem jurídica, devendo eles, nesta hipótese, responder a processo, dentro do legalmente estabelecido. [73]
O princípio da legalidade é, assim, o elemento nuclear do conceito de Estado de Direito. Em face do particular, significa a necessidade de abstenção de tudo quanto seja vedado pela ordem jurídica, a par da realização compulsória dos atos descritos como obrigatórios sob certas e determinadas condições. Para a Administração Pública, corresponde à norma basilar de que somente é permitido agir diante de expressa autorização legal. Acerca da relação entre o princípio da legalidade e o Estado de Direito, elucidativas são as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:
Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – o administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos. Pretende-se através da norma geral, abstrata e por isso mesmo impessoal, a lei, editada, pois, pelo Poder Legislativo – que é o colégio representativo de todas as tendências (inclusive minoritárias) do corpo social – , garantir que a atuação do Executivo nada mais seja senão a concretização desta vontade geral. O princípio da legalidade contrapõe-se, portanto, e visceralmente, a quaisquer tendências de exacerbação personalista dos governantes. Opõe-se a todas as formas de poder autoritário, desde o absolutista, contra o qual irrompeu, até as manifestações caudilhescas ou messiânicas típicas dos países subdesenvolvidos. O princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois tem como raiz a idéia de soberania popular, de exaltação da cidadania. [74]
Estado de Direito não é forma de Estado nem forma de governo. "Trata-se de um statu quo institucional, que reflete nos cidadãos a confiança depositada sobre os governantes como fiadores e executores das garantias constitucionais". [75] Teve sua base ideológica principal nos combates entre a liberdade e o absolutismo, pelo que tem estreita relação com o ideário liberal burguês do século XIX.
Há que se considerar, contudo, que a expressão toma, hoje, sentido muito mais abrangente que o da mera legalidade do Estado liberal. Com efeito, as profundas transformações por que passaram as sociedades, no bojo da problemática socioeconômica causada pela Revolução Industrial, conduziram à formação de ideologias intervencionistas, que culminaram no Estado social, tido por muitos como uma perspectiva "material" do Estado de direito. Nesse sentido, interessante é a observação de José Adelino Maltez, quando afirma que:
muitos ainda continuam a confundir o Estado de Direito com o mero Estado de Legalidade. Houve, e há, Estados que nem eram democráticos nem de direito, mas que sempre se assumiram como Estados de Legalidade, acirrando o normativismo positivista na formação dos juristas e inscrevendo no portal dos tribunais o lema do dura lex, sed lex [...]. Houve, e há, Estados democráticos que começaram por não ser Estados de Direito [...]. Há ainda Estados de Direito que ainda não assumiram a plenitude do Estado de Justiça [76]
Com efeito, para caracterizar-se o Estado de Direito, não basta a existência de leis editadas por um Poder autônomo, sob a égide de normas constitucionais. É preciso que se guiem pelo ideal de justiça, refletindo adequadamente as questões enfrentadas pela ética e pela moral, que dizem respeito aos direitos naturais e humanos. Mais que isso, evolui o Estado de Direito para o Estado social, preocupado com o bem estar da população, pelo que entram na ordem do dia questões relativas à pobreza, à subnutrição, à falta de moradias adequadas, escolas e oportunidades de trabalho. Enfim, assume o Estado de Direito a conotação de Estado Social de Direito. [77]
No Brasil, a existência de um Estado de Direito esteve sujeita a constantes abalos e interrupções. A começar pelo levante militar que, sem o consentimento popular, destituiu o Império e implantou a República, o País vivenciou uma sucessão de avanços e retrocessos em termos de legitimação democrática e de promoção de um Estado do bem-estar social. Com a Constituição de 1946, instituiu-se um Estado de Direito, que, menos de vinte anos depois, seria derrubado pelo golpe militar de 1964. [78] Somente em 1988, retomou o País à democracia, com a formulação de um Estado de Direito, de forte cunho social.
A idéia de Estado de Direito, na Constituição de 1988, encontra-se ligada aos princípios fundamentais, dentre os quais avultam os direitos e garantias fundamentais, enumerados nos 77 incisos do art. 5º, e aos direitos sociais, a que se referem o art. 6º e seguintes, dedicados ao trabalho, à saúde, à previdência, à assistência social, à infância, à adolescência, aos idosos, à educação, à cultura, ao desporto e ao lazer. Trata-se de princípios imutáveis, que, juntamente com a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, com valor igual para todos, a separação dos poderes, e os direitos individuais e coletivos formam as denominadas "cláusulas pétreas" da Constituição Federal – em verdade, o núcleo do sistema constitucional vigente.