6) Considerações finais
A paisagem urbana é um microbem ambiental essencial para a qualidade de vida e, como tal, a beleza das cidades deve ser considerada como um direito fundamental, corolário do direito à vida, sendo que função social da cidade prevista no artigo 182 do texto Constitucional está estritamente vinculada à harmonia dos cenários urbanos.
Já se pode falar na existência de um "estatuto jurídico da paisagem" que assegura a sua mais ampla proteção, tanto no ordenamento jurídico estrangeiro quanto no nacional.
Buscando guardar coerência com a matriz constitucional, propomos, então, como critério de responsabilização, a identificação das funções ambientais do microbem lesado (no caso a paisagem), dentre as quais a função estética, cuja violação terá como consequência jurídica a reparação dos danos materiais e morais decorrentes da perda ou deterioração do elemento visual de conexão entre o homem, suas criações e a natureza, bem como de seus reflexos sobre o macrobem ambiental.
Assim, será passível de reparação qualquer ação que impacte negativamente a harmonia do meio ambiente, o equilíbrio ecológico, mas sua análise e quantificação se darão a partir da aferição das funções ambientais do microbem imediatamente lesado e das consequências do dano sobre o macrobem.
No caso da paisagem, a degradação que ocasione perda ou redução de sua função estética poderá, conforme o caso, ter reflexos patrimoniais (vocação turística, p. ex.) e extrapatrimoniais ou morais, estreitamente relacionados à noção de identidade, à segurança e ao prazer da conectividade que a paisagem proporciona entre o ser humano e o meio ambiente, à saúde física e psíquica, ao conforto emocional, à tranquilidade que proporciona ao homem em sua dimensão individual e coletiva, não se limitando à beleza enquanto valor relativo a depender de subjetivismos e critérios como gosto, tempo e espaço. A beleza das cidades é tida, pois, como valor absoluto, direito fundamental corolário do direito ao meio ambiente sadio e atributo da personalidade.
Há ainda que se considerar os reflexos dessa função estética sobre a vida em sociedade. Explica-se: Apesar do pouco conhecimento científico que a humanidade tem sobre as funções ambientais em geral, já existem inúmeras pesquisas científicas demonstrando que o "caos urbano", o adensamento e a ocupação desordenada das cidades são fatores que causam estresse, insônia, e contribuem para o aumento da violência e criminalidade. Por outro lado, a paisagem natural ou a paisagem artificial e suas interações com a natureza, quando adequadamente planejadas, causam bem-estar e melhoria na qualidade de vida. Assim, a lesão a essa função estética traz reflexos negativos à esfera social, hipótese em que se consegue visualizar com clareza elementos para aferição do "dano moral transindividual" decorrente da degradação ambiental.
Nessa linha, a fundamentalidade da paisagem urbana e de sua função estética, bem como a sua relevância enquanto bem jurídico tutelado é irrefutável, não havendo como dar-lhe ares de "Direito supérfluo ou fútil". Por tal razão, os operadores do Direito devem ficar atentos às lesões hodiernamente cometidas, utilizando-se de todos os instrumentos postos pelo ordenamento para a garantia da inviolabilidade desse bem, mormente diante das "armadilhas arquitetônicas" da pós-modernidade.
Não se pode afastar a reparação do dano estético ambiental, ou do dano extrapatrimonial ambiental decorrente da perda ou deterioração de sua função estética, em razão das dificuldades em sua quantificação. A transindividualidade do direito, a indivisibilidade dos bens ambientais, o desconhecimento científico das funções ambientais e todas as demais dificuldades devem se constituir em desafios e não óbices à reparação. No caso da paisagem como microbem ambiental, muitas de suas funções já encontram respaldo científico, afinal, na história da humanidade não é recente o estudo do "belo", da estética e de seus efeitos sobre o ser humano. Já existe respaldo científico para tanto.
Ainda temos muitos desafios em matéria de proteção da paisagem urbana. Na ótica das políticas públicas demanda-se, por exemplo, a recuperação dos centros históricos, que por tantas décadas foram relegados ao abandono, tanto no que tange aos cuidados com o patrimônio cultural, quanto no que toca à economia dessas áreas centrais, que ficou limitada, na maioria das cidades, a um tímido comércio popular. O modelo de recuperação ou "revitalização" ou "requalificação" dessas áreas deve ser fundado na sustentabilidade. Os padrões estéticos devem atentar para a identidade de nossas cidades, às nossas peculiaridades sociais e jurídicas, bem diferentes do modelo "globalizado" que se pretende ver "importado" sem qualquer adequação à realidade brasileira. [49]
Há ainda o grave problema do "empachamento", sobretudo pela utilização abusiva e indiscriminada de elementos de publicidade externa (outdoors, empenas, street tv) e da poluição visual causada pela instalação desordenada das antenas de telefonia/Estações Radio-base. Isso sem falar na poluição luminosa e suas trágicas consequências para a fauna noturna e para a observação astronômica, pondo em risco a sobrevivência de animais noturnos, aves migratórias e do "direito de ver estrelas" [50].
É terrível constatarmos que o novíssimo direito ambiental, enquanto ciência, somente inicia a construção de seus próprios princípios e regras quando seu próprio sujeito-objeto está em fase avançada de destruição. Essa relação paradoxal entre a construção da ciência/destruição do sujeito-objeto remete, por razões óbvias, a um nascimento tardio, "pós-maturo", razão pela qual há pressa, há uma extrema urgência na sua construção e, principalmente, na efetiva produção de seus efeitos sobre o "mundo da vida" [51]. Não há tempo, pois, para purismos, há necessidade de trabalho árduo e conjunto com as demais ciências (interdisciplinaridade) e, como se sugeriu no presente trabalho, de aproveitamento dos avanços já obtidos nas tutelas individuais que guardem compatibilidade com a proteção coletiva pretendida. Os passos devem se direcionar para frente.
Paralelamente, no campo do reconhecimento das diversas funções ambientais dos também diversificados microbens ambientais, mais do que a educação ambiental com vistas à conscientização, é preciso provocar nos operadores do direito um verdadeiro insight. Do mesmo modo que hoje já se é possível sentir literalmente na pele os efeitos da destruição da camada de ozônio, é preciso que todos conheçam e atentem para os dramáticos efeitos do afeamento, da perda de identidade de uma cidade, que vão desde o aumento do estresse e da violência urbana aos efeitos econômicos decorrentes da perda/redução do seu valor turístico.
Não há, portanto, dificuldades intransponíveis na identificação e quantificação do dano extrapatrimonial decorrente da lesão à paisagem urbana. O reconhecimento de um estatuto jurídico da paisagem impõe tanto ações de prevenção quanto de reparação.
A utilização e concretização dos instrumentos jurídicos já existentes, no que concerne à proteção da paisagem urbana, devem assegurar a todos o sagrado direito de usufruir daquela maravilhosa sensação que temos na aterrissagem do avião ao retornar de uma viagem: a volta para o aconchego da cidade que chamamos de casa, com sua beleza peculiar. Aquela que pelo destino ou escolha chamamos de lar.
Notas
- BENJAMIN, Antonio Herman. Paisagem, natureza e direito: uma homenagem a Alexandre Kiss. In: BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e (org). Paisagem, natureza e direito. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2005, v. 2. Não paginado.
- ARRIGHI, G. A ilusão do desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 13
- MARCHEZINI, Flávia de Sousa. Cidade e cidadania no Brasil: uma análise historiográfica da participação popular construída num ambiente urbano. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 8, n. 45, p. 12-25, maio/jun. 2009. Disponível em www.anpm.com.br
- Dentre os defensores da existência de um Direito Urbano-ambiental no Brasil, mencionamos Toshio Mukai , Vanesca Buzelato Prestes, Maria Etelvina Bergamaschi Guimaraens, dentre outros.
- BENJAMIN, 2005. Não Paginado.
- CAMPOS, Ibrahim Camilo Ede. Especificidade do dano ambiental e biodiversidade na esfera da reparação civil ambiental. Tese apresentada no 3º Congresso de Estudantes de Direito Ambiental. Tema do evento: mudanças climáticas, biodiversidade e uso sustentável de energia. São Paulo, JUN/2008. Disponível em http://www.direito.ufmg.br/neda/arquivos/texto-congresso-jun.pdf
- BENJAMIM, 2005. Não Paginado.
- RODRIGUES, Marcelo Abelha. Reflexos do direito material do ambiente sobre o instituto da coisa julgada (in utilibus, limitação territorial, eficácia preclusiva da coisa julgada e coisa julgada rebus sic stantibus).Disponível em www.marceloabelha.com.br . Acesso em 29 out 2009.
- Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em http://www.priberam.pt
- MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Tutela jurídica da paisagem no espaço urbano. Revista de direito ambiental. São Paulo, v. 11, n. 43, p. 07-34, jul. /set. 2006. Disponível em www.iedc.org.br. Acesso em 10 OUT 2009.
- SILVA, JOSÉ AFONSO. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores – 5° edição rev.atual., 2008, p. 307.
- MINAMI, Issao; GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. A questão da ética e da estética no ambiente urbano, ou porque todos devemos ser belezuras. Disponível em www.ambientebrasil.com.br. Acesso em 03/05/2009.
- RODRIGUES, 2009, p. 4.
- SILVA, 2008, P. 308.
- MARCHEZAN, 2006, p.15.
- MARCHEZAN,2006,P.16.
- MORAND-DEVILLER, Jacqueline. A cidade sustentável. Sujeito de Direitos e deveres. In: Políticas Públicas ambientais: estudos em homenagem ao professor Michel Prieur/coordenação Clarissa Ferreira Macedo D’Isep, Nelson Nery Junior, Odete Medauar – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2009, p. 349/350.
- Disponível em http://conventions.coe.int/Treaty/en/Reports/Html/176.htm.
- Preâmbulo do Decreto Português nº 04 de 2005, que ratificou a Convenção Européria da Paisagem.
- Idem.
- A exemplo mencionamos a Ação Popular nº 950209270-8 – 2ª Vara Federal de Santos-SP. Disponível em http://jus.com.br/artigos/16549>
- Bobbio, Norberto. A era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro, Campus, 1992.
- MARCHEZAN,2006, p. 28
- FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Paisagem urbana e sua tutela em face do direito ambiental. Disponível em http://www.saraivajur.com.br/menuEsquerdo/doutrinaArtigosDetalhe.aspx?Doutrina=837. Acesso em 24 out 2009.
- Sobre a "Operação cidade limpa" ver http://www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=14513
- Ref. Processo nº 024.040.035.180 – Vara dos feitos da fazenda pública Municipal de Vitória.
- MINAMI, Issao; GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes. A questão da ética e da estética no ambiente urbano, ou porque todos devemos ser belezuras. Disponível em www.ambientebrasil.com.br. Acesso em 03/05/2009.
- MINAMI, GUIMARÃES JÚNIOR, não paginado.
- MORAND-DEVILLER, 2009, p. 350.
- SILVA, 2008, p. 322.
- MARCHEZAN, 2006,p. 15
- FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 3 ed. rev. Ampl. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 127.
- CAMPOS, Watila Shirley Souza. Poluição Visual no Direito Brasileiro. Dissertação. Santos: Universidade Católica de Santos, 2006, p. 29. Disponível em http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6 Acesso em 02 MAR 2009
- Segundo a pesquisa, o eustress ocorre quando o motivo causador de estress é positivo, agradável e alegre, ao passo que o distress acomete o indivíduo caso o motivo estafante seja negativo, desagradável e irritante.
- VASCONCELLOS, 2003 apud CAMPOS, 2006, p. 30
- MINAMI, GUIMARÃES JÚNIOR, não paginado.
- HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade . P. 67-76 Disponível em www.pdf-search-engine.com/baixar-livro-stuart-hall-identidade-cultural-na-pós-modernidade-pdf.html. Acesso em 12 SET 2008.
- TOPALOV, C. Da questão social aos problemas urbanos: os reformadores e a população das metrópoles em princípios do século XX. In: RIBEIRO, L.; QUEIROZ, C. P. (Org.). Cidade, povo e nação, a gênese do urbanismo moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [s.d]. p. 44.
- MARCHEZINI, Flávia de Sousa. A trajetória da participação popular no planejamento urbano: o caso do Conselho Municipal do Plano Diretor de Vitória (1961-2001). Vitória: 2006. Dissertação (Mestrado em História Social das Relações Políticas) - Universidade Federal do Espírito Santo.
- .SILVA, 2008, p. 307.
- PINTO, Antonio Carlos Brasil. Turismo e meio ambiente: aspectos jurídicos. Campinas, Papirus, 2003, p.108.
- SILVA, 2008, P. 310.
- SILVA, 2008, P. 310.
- BENJAMIN, 2005, não paginado.
- BENJAMIN, 2005, não paginado
- BENJAMIN, 2005, não paginado.
- BENJAMIN, 2005, não paginado.
- LEITE, 2003, P. 297.
- Sobre as ARES – Áreas de Revitalização Econômica das áreas centrais – ver Projeto de Emenda Constitucional e projeto de Lei Complementar em http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/programas-urbanos/Imprensa/reabilitacao-de-areas-urbanas-centrais/noticias-2009/marco/pec-para-reforma-de-centros-urbanos/?searchterm=ARES, sobre os quais temos severas críticas.
- SANTOS, Nadia Palacio. O Direito de ver estrelas: a poluição luminosa sob a égide jurídica, urbanística e ambiental. In: BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e (org). Paisagem, natureza e direito. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2005, v. 2, p. 467.
- Sobre a noção de mundo da vida e, Habermas ver :HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 130.