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Inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores

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Agenda 08/02/2012 às 10:26

A exigência do pagamento das multas como requisito para o licenciamento de veículos atenta contra o princípio da razoabilidade e da ampla defesa, contra os limites para a concessão da auto-executoriedade aos atos passíveis de afetação econômica dos administrados e contra o próprio Código de Trânsito.

1. Da apresentação do tema

Desde a edição da Lei Federal nº 9.503/97 [01] (Código de Trânsito Brasileiro, doravante "CTB") tem-se discutido diuturnamente os problemas relacionados com o tráfego viário em nosso País. Na verdade, temas que sempre foram relevantes, mas que passavam como que desapercebidos, de uma hora para outra, viram-se noticiados a todo o momento pela imprensa. Primeiro, foi a questão da obrigatoriedade do uso de cintos de segurança; logo em seguida, deu-se a ampla divulgação do uso e do respeito à "faixa de pedestres"; posteriormente – e ainda muito constantemente –, dão-se debates sobre o uso de aparelhos de telefonia móvel, enquanto se está na condução de um veículo; ultimamente, debate-se sobre os eventuais abusos do poder punitivo dos agentes de trânsito. E são tantos os assuntos do CTB, que não nos cabem maiores comentários e informações, sob pena de, na tentativa exaurirmos esta lista, acabarmos passando por omissos.

Com esta massiva informação através da imprensa, principalmente, ocorreu com o CTB o fenômeno à brasileira denominado "lei que pega". Por certo, todos nós já ouvimos as expressões populares: "esta lei pegou" e "esta lei não pegou", significando, sucessivamente, uma lei que teve ampla aceitação social (ou pelo menos, ampla respeitabilidade social, por conta de seu potencial coativo) e, no segundo caso, uma norma jurídica que não encontra qualquer respaldo social (seja desde seu nascimento, seja por ter caído em desuso). O importante é reconhecer que, bem ou mal, com suas virtudes – que são inúmeras –, e com seus desacertos – que igualmente somam alguns bocados –, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) encontrou respeitabilidade social, e está sendo aplicado. O CTB é "uma lei que pegou"!

Nada obstante, alguns temas conflituosos, decorrentes do Código, poderão, com o passar do tempo, fazer com que a respeitabilidade da norma jurídica ceda lugar à execração pública. No afã de buscar uma lei rígida, o legislador pode, em certos momentos, ter resvalado em excessos; ou, pior, o aplicador da norma, na busca de efetividade, pode acabar cometendo abusos.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra! Faz-se imperioso avaliarmos certos problemas do CTB (seja no ato legislativo, seja na sua execução, mediante atos administrativos), para que resguardemos a norma jurídica, tanto quanto possível; para que tenhamos eficiência na execução dos programas e metas previstos na lei; mas, aliado a isto, mantenhamos resguardados princípios constitucionais e outras normas jurídicas, que, a pretexto da fiel execução do CTB, não podem ser vilipendiados.

Particularmente neste artigo avaliaremos a questão da exigência do pagamento de multas, como requisito para o licenciamento de veículos, na forma decorrente do art. 131, § 2º, do CTB, verbis:

"Art. 131 - O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN.

[...]

§ 2º - O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas."

A norma jurídica em referência estabelece como requisito para o licenciamento o recolhimento de multas de trânsito vinculadas ao veículo. Antecipando nossas conclusões, desde já entendemos o citado dispositivo como violador da legalidade e da constitucionalidade, pois:

a) o art. 131, § 2º, do CTB é inconstitucional, pois viola o Direito à Ampla Defesa e ao Contraditório;

b) o art. 131, § 2º, do CTB é inconstitucional, pois viola os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade;

c) o art. 131, § 2º, do CTB é inconstitucional, pois afronta o art. 164 do CTN, sendo este último Lei Complementar em sentido material, enquanto o Código de Trânsito é Lei Ordinária; e finalmente

d) o art. 131, § 2º, do CTB é ilegítimo, pois concede autoexecutoriedade para a cobrança de supostos créditos ainda não inscritos em dívida ativa (portanto, ainda não liquidados, incertos e inexigíveis).

Assim estando expostas nossas premissas, vamos aos argumentos que acumulamos para a defesa de nossas conclusões.


2. Antes de tudo, o que se pode entender como licenciamento?

A despeito do que estiver (ou não) contido na lei, temos de identificar o conteúdo jurídico do licenciamento, até mesmo para sabermos quais os seus limites. O tema é óbvio. Licenciamento é espécie de licença. Melhor dizendo, o licenciamento é o procedimento necessário à obtenção de uma licença.

Mas, o que é uma licença? Vejamos, inicialmente, o que é uma licença, na lição de Meirelles [02]:

"[...] licença é o ato administrativo vinculado e definitivo pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização de fatos materiais antes vedados ao particular, como, p. ex., o exercício de uma profissão, a construção de um edifício em terreno próprio."

Zanella Di Pietro [03] conceitua a licença como sendo "o ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade".

Como visto, a doutrina indica que as licenças, dentre as quais as licenças para conduzir veículos e a própria licença para o veículo estar em circulação – que nos interessa particularmente – somente podem ser expedidas se observados os requisitos legais. Daí decorrem duas conclusões:

a) a primeira: sem o preenchimento dos requisitos, a licença não pode ser expedida; e

b) a segunda (tão óbvia quanto primeira): quando preenchidos os requisitos, a administração não dispõe de discricionariedade, sendo direito subjetivo do requerente obter a licença pleiteada.

Nada obstante, ainda subjaz nesse discurso uma dúvida recôndita; uma dúvida subliminar; mas, uma dúvida que merece e deve ser esclarecida: o que pode ser escolhido pelo legislador como requisito para a expedição de uma licença? Seria o legislador livre para escolher os requisitos? Haveria a liberdade amplíssima, típica das decisões políticas? Ou, deveríamos encontrar um termo razoável para a fixação dos requisitos legais para a obtenção de uma determinada licença?

2.1 Os requisitos para obtenção de licenças: vinculação com o valor jurídico tutelado

Defendemos, desde há muito tempo, e o reforçamos aqui neste artigo, que o legislador, ao fixar os critérios para a obtenção de uma licença, deverá fazê-lo com peias e limites. Não estamos, obviamente, adentrando no campo político de opção do legislador; tão-somente, estamos advertindo que, logicamente, o legislador não poderá ser arbitrário e, muito menos, o produto legislado poderá ter um conteúdo de arbitrariedade.

Não há nada melhor, para a defesa de certos pontos de vista, que a redução ao absurdo. Suponhamos que o cidadão A, pretendendo construir uma casa, ingresse com o requerimento de sua licença. É estreme de dúvidas que a administração pública poderá fixar requisitos para a concessão da licença de construir. Nada obstante, estes requisitos devem portar uma referência lógica com os valores jurídicos tutelados no ato de licenciar. No ato de licenciamento de uma construção, os valores jurídicos tutelados são facilmente identificáveis: salubridade das instalações, proteção ambiental, adequação urbanística, segurança da obra a ser construída e situações congêneres. O licenciamento não tem um viés meramente arrecadatório. Ele se presta à execução do poder de polícia. Visa, portanto, a adequação da pretensão privada de construir, com um dos interesses públicos previstos no nosso ordenamento jurídico, e que estejam vinculados (e de certa forma ameaçados) por uma suposta potencialidade de exercício desenfreado do interesse privado. Diante destas observações, seria lícita a fixação de requisitos legais para a concessão da licença de construção, tais como projeto sanitário, projeto hidráulico, adequação ao Plano Diretor Urbano, verificação de que a obra não agride ao meio ambiente.

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Porém, haveria licitude em se exigir do responsável pela obra que, para a obtenção da licença de construção, este arque com os IPTUs em atraso do terreno? Em casos que tais, o Poder Judiciário tem-se posicionado firmemente, como bem demonstra o seguinte Acórdão:

"Tributária/Proc. Civil - Apelação cível - Sentença concessiva de segurança - Negativa da municipalidade em fornecer alvará/licença para construção sob o argumento de que os requerentes estão em débito com a municipalidade no que se refere ao IPTU - Impossibilidade de negativa quanto à expedição de alvará pelo simples fato da existência de débitos - Reiterada jurisprudência nesse sentido - Identificação com as matérias constantes dos enunciados das Súmulas nºs 70, 547 e 323 do STF -Argüição de inconstitucionalidade da norma municipal impertinente para a solução do caso concreto - Recurso conhecido e desprovido - 1. Não é facultado ao município indeferir expedição de alvarás/licenças sob o pretexto de que o requerente possui dívida perante o Fisco Municipal. 2. Há reiterada jurisprudência formulada no sentido de o ente público não pode condicionar a expedição de alvarás à quitação de débitos preexistentes, ressalvada à Fazenda Pública a possibilidade de fazer constar, na certidão ou alvará, o débito tributário. 3. O Supremo Tribunal Federal, através das Súmulas nºs 70, 547 e 323 uniformizou solução semelhante (não poder condicionar) para situações quase idênticas à ‘negativa de expedição de alvará por existência de débitos’. 4. A inconstitucionalidade da Legislação Municipal que ensejou o débito fiscal, que sequer deve ser analisada por não ser condicionante ao acolhimento do pedido mandamental, cujo objeto é apenas a ilegalidade do vinculação da expedição de alvarás, licenças e autorizações a não-existência de dívida fiscal. 5. Recurso conhecido e desprovido." [04]

Bem se refere o desembargador Álvaro Bourguignon, do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, no voto acima referido, que, em situações assemelhadas o Supremo Tribunal Federal editou as Súmulas nºs 70, 547 e 323:

Súmula nº 70 –

"É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo. (D. Trib.)."

Súmula nº 323 – "É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos."

Súmula nº 547 – "Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais."

Mutatis mutandi, não seria lícito, no caso da construção de uma residência, que a Administração Pública utilizasse o ato de licenciamento como coerção para a quitação de tributos e multas. Mesmo que a lei assim o previsse, pois, tal critério legalmente eleito, seria atentatório à Constituição.

Voltemos ao caso específico do presente artigo, qual seja, o que tange à eleição de critérios legais para o licenciamento de veículos.

O art. 130 do CTB esclarece o que vem a ser o ato de licenciamento:

Do licenciamento

"Art. 130 - Todo veículo automotor, elétrico, articulado, reboque ou semi-reboque, para transitar na via, deverá ser licenciado anualmente pelo órgão executivo de trânsito do Estado, ou do Distrito Federal, onde estiver registrado o veículo. [...]"

O veículo, portanto, deve ser licenciado para a verificação de suas condições para transitar na via. E isto é confirmado pelo art. 131, § 3º, do CTB:

"Art. 131 - [...]

[...]

§ 3º - Ao licenciar o veículo, o proprietário deverá comprovar sua aprovação nas inspeções de segurança veicular e de controle de emissões de gases poluentes e de ruído, conforme disposto no art. 104."

Isto fica ainda mais patente com a leitura do art. 22, III, do CTB:

"Art. 22 - [...]

[...]

III - vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa, e licenciar veículos, expedindo o Certificado de Registro e o Licenciamento Anual, mediante delegação do órgão federal competente;"

Como visto, o licenciamento veicular resguarda os seguintes interesses públicos: a segurança das vias públicas, o sossego público (ruídos) e a proteção ambiental (emissão de gases). Portanto, a interposição de um requisito financeiro, como o caso do art. 131, § 2º, já citado, que exige o recolhimento de multas como elemento essencial ao ato de licenciamento, parece-nos um atentado à razoabilidade, posto que a razão deflagradora do ato de licenciar não é de índole arrecadatória mas, isto sim, de natureza assecuratória, como típica do poder de polícia do Estado.

Vale ainda ressaltar, a verve arrecadatória não tem qualquer vinculação com os valores jurídicos tutelados pelo ato de licenciamento (segurança das vias e das pessoas, proteção ambiental e resguardo do sossego público).

Em síntese, a eleição do critério legal afeiçoa-se como violação da Constituição e da Legalidade. Postos esses elementos iniciais, vejamos outras razões que nos conduzem a entender a exigência de multas, no ato de licenciamento, como requisito totalmente descabido.


3. Da inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, do CTB: violação à ampla defesa e ao contraditório

O ato de licenciamento do veículo, através do pagamento da obrigação principal (IPVA), e pelo recolhimento de obrigações acessórias (Seguro DPVAT e Taxa de Licenciamento), consubstancia-se em obrigação relacionada a determinado bem, para seu regular uso e gozo. Frise-se, neste ato de licenciamento, incide o pagamento de obrigações tributáriasa saber:

a) o IPVA, imposto que tem como hipótese de incidência a propriedade de veículo automotor; e

b) a Taxa de licenciamento, que verifica as condições do veículo, para saber se ele apresenta possibilidade de tráfego com segurança.

Conforme transcrito anteriormente, prescreve o art. 22, III, do Código de Trânsito que no ato de licenciamento compete à respectiva autoridade pública "vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular". Logo, o licenciamento é fato gerador de taxa pela vistoria (Poder de Polícia), sendo ainda o meio arrecadador do imposto (IPVA, pela propriedade do veículo automotor). Tanto a taxa quanto o imposto envolvidos no ato de licenciar o automóvel não possuem qualquer conteúdo de penalidade; até mesmo por que, se fossem penalidades, fugiriam à definição de tributo, insculpida no art. 3º do Código Tributário Nacional, literis:

"Art. 3º - Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada." [05]

Quanto às multas e penalidades, por seu turno, em nada se referem ao bem. Ora, bens não delinqüem; esta atividade ilícita é reservada às pessoas físicas e, em casos de exceções expressas e explícitas, às pessoas jurídicas (caso, v. g., das infrações ambientais). Neste sentido, é totalmente irregular exigir-se do contribuinte, para o pagamento do licenciamento, que o recolha multas pendentes.

Vale mesmo salientar, o Código de Trânsito deixa claro que as multas devem ter seus respectivos procedimentos de cobrança:

"Art. 22 - Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição:

[...]

VI - aplicar as penalidades por infrações previstas neste Código, com exceção daquelas relacionadas nos incisos VII e VIII do art. 24, notificando os infratores e arrecadando as multas que aplicar;

[...]

XIV - fornecer, aos órgãos e entidades executivos de trânsito e executivos rodoviários municipais, os dados cadastrais dos veículos registrados e dos condutores habilitados, para fins de imposição e notificação de penalidades e de arrecadação de multas nas áreas de suas competências;"

É de se sopesar, que a exigência das multas como pré-requisito para o licenciamento do veículo, afronta ao Princípio da Ampla Defesa, pois, caso o sujeito ativo para a cobrança das multas desejasse, poderia ingressar com a devida execução, onde seria aberta a via de embargos aos proprietários de veículos. Também por este argumento, atesta-se a ilegitimidade da cobrança de multas como requisito para o licenciamento.

Aceitar-se a situação, seria violar o art. 5º, LV, da CF/88, verbis:

"Art. 5º - [...]

[...]

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;"

3.1 Exegese canhestra do art. 131, § 2º, do CTB: nova inconstitucionalidade

Os DETRANs têm-se negado a licenciar os veículos que tenham pendência de multas. Não bastasse a emissão dos boletos de cobrança do IPVA e da taxa de licenciamento juntamente com as multas, temos ainda uma forma transversa de coerção ao pagamento das multas, qual seja, em alguns locais não se expedem guias de recolhimento do seguro DPVAT, sem a quitação das multas. O resultado final será o mesmo, pois sem o pagamento do seguro, o veículo não está licenciado.

Portanto, de uma forma ou de outra, seja por coação direta ou por meios indiretos de coerção, está-se exigindo o recolhimento de multas como requisito essencial para o licenciamento de veículos.

Não bastasse a alegação de inconstitucionalidade já veiculada anteriormente, devemos ainda notar que a vinculação do pagamento de multas de um condutor para se licenciar o veículo nos conduz ao seguinte absurdo:

a) duas pessoas adquirem, em sociedade, um veículo;

b) as duas pessoas usam o veículo para trabalho;

c) se uma delas for multada, o veículo não pode ser licenciado, enquanto a multa não for quitada;

d) portanto, as duas pessoas são proibidas de dirigir?

A exegese absolutista que se está emprestando ao art. 131, § 2º, do CTB acaba concedendo à administração pública um poder de auto-executoriedade velado para certos atos administrativos (multas de trânsito), quando é pacífico que tais atos, quando influenciam em valores pecuniários, dependem da intervenção do Poder Judiciário, mediante execução fiscal.

Neste sentido segue pacífica a melhor doutrina no que citamos o professor José dos Santos Carvalho Filho [06]:

"Impõem-se, ainda, duas observações [nota nossa: sobre a auto-executoriedade]. A primeira consiste no fato de que há atos que não autorizam a imediata execução pela Administração, como é o caso das multas, cuja cobrança só é efetivamente concretizada pela ação própria na via judicial [...]"

Vejamos, sobre o tema, o que diz a própria Legislação Federal sobre executivos fiscais (Lei nº 6830/80):

"Art. 1º - A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

Art. 2º - Constitui dívida ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal."

A remissão à Lei nº 4320/64 é de clareza ainda maior:

"Art. 39 - Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária,serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.

[...]

§ 2º - Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e dívida ativa não tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes deempréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, aluguéis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de sub-rogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais."

Ciente deste aspecto, a Jurisprudência não faz ouvidos moucos, e reconhece incidenter tantum a inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, da Lei de Trânsito Nacional, senão vejamos:

"Mandado de Segurança - Reexame necessário de sentença - Multas de trânsito - Controle eletrônico de velocidade - Legalidade - Notificação ao infrator - Observância do art. 281, inciso II, parágrafo único, do CTB - Renovação de licenciamento de veículo condicionado ao pagamento de multas - Aplicação do § 2º do art. 131 do CTB - Inconstitucionalidade via controle difuso - Infringência ao devido processo legal - Inteligência do art. 5º, LIV, da CF - Ratificação da sentença - A Lei nº 5.108/66 e o atual Código Nacional de Trânsito outorgaram ao Contran competência normativa para disciplinar o trânsito no território nacional, o que significa dizer que ‘as normas assim editadas valem como Leis em sentido material tendo a mesma normatividade da Lei’ (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 17. ed, p. 161). Afigura-se manifestamente inconstitucional, via controle difuso, a exigência feita pelo detran no sentido de condicionar o licenciamento do veículo ao pagamento de multas anteriores, em atenção ao § 2º do art. 131 do Código de Trânsito Brasileiro, tendo em vista infringência ao Princípio do Devido Processo Legal, ex vi do art. 5º, LIV, da Constituição Federal.Havendo notificação de conformidade com o art. 281, inciso II, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro, constitui-se em ato legal as multas aplicadas pelas lombadas eletrônicas." [07]

Em idêntico sentido posiciona-se o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Espírito Santo, senão vejamos:

"Remessa ex officio com apelação voluntária - Mandado de Segurança - Recolhimento de IPVA e licenciamento de veículo - Multa - Exigência do pagamento da infração - Impossibilidade – Preliminar rejeitada - No mérito, sentença mantida - Remessa improvida – [...] 2. Inobservado o devido processo legal, é inadmissível condicionar o recolhimento do IPVA e a renovação da licença do veículo ao pagamento de multa, como ocorre in casu." [08]

Nestes termos, é de se reconhecer a inconstitucionalidade da exigência de multas como pré-requisito para o licenciamento de veículos.

3.1.1 Ainda sobre a violação dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade: a simples "multa" ainda não foi inscrita em dívida ativa, portanto inexigível.

Vejamos ainda mais, como a exigência das multas para o licenciamento do veículo é uma afronta à razoabilidade e à proporcionalidade.

Todos os créditos públicos, como condição de exigibilidade, devem ser inscritos em dívida ativa. Com o próprio crédito tributário é assim.

Como já informado, não só os tributos, mas também as multas de qualquer natureza (art. 39, § 2º, da Lei nº 4.320/64) são tidos como dívida ativa pública. Como tal, existe uma condição de validade prévia para a exigibilidade, que é a inscrição em Dívida Ativa de acordo com a Lei nº 6.830/80: [09]

"Art. 2º - [...]

[...]

§ 3º - A inscrição, que se constitui no ato de controle administrativo da legalidade, será feita pelo órgão competente para apurar a liquidez e certeza do crédito e suspenderá a prescrição, para todos os efeitos de direito, por 180 (cento e oitenta) dias ou até a distribuição da execução fiscal, se esta ocorrer antes de findo aquele prazo."

Não podemos esquecer: somente a dívida regularmente inscrita poderá gozar de liquidez, certeza e exigibilidade, nos termos da Lei nº 6.830/80:

"Art. 3º - A Dívida Ativa regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez."

Sobre o tema, posiciona-se a doutrina, conforme o seguinte artigo do professor José Donizeti Franco [10]:

"Assim é que os tribunais não têm admitido, por isso mesmo, que as autoridades de trânsito condicionem o licenciamento de veículos ao pagamento de multas administrativas por ventura existentes em relação a determinado veículo. Isto porque, o Estado Administração, neste aspecto igualado ao particular, dispõe de instrumentos legais e processuais, para cobrar seus créditos, não lhe sendo permitido, salvo as exceções expressas e finalisticamente previstas em lei, se utilizar de verdadeiras coações administrativas ou condicionamentos, como se dá nesses casos de exigência de pagamento das multas, pela autoridade administrativa, para que se renove o licenciamento do veículo.

Deverá ele – Estado Administração – se socorrer do expediente do processo administrativo, inscrevendo, regularmente, o débito em dívida ativa, e o cobrando por via do Processo de Execução Fiscal, nos termos da Lei nº 6.830, de 22.09.1980."

Ora, se as multas, para terem exigibilidade, dependem da inscrição em Dívida Ativa, como podem os DETRANs, antes mesmo deste ato formal de inscrição em Dívida Ativa, conferir auto-executoriedade aos autos de infração de trânsito, e exigir o recolhimento dos seus valores pecuniários, como requisito para o licenciamento de veículos?

O tema não passou desapercebido dos Tribunais, que têm decidido costumeiramente que compete à Administração ajuizar os executivos fiscais, como forma legítima de cobrança das multas:

"Recurso em Mandado de Segurança. Licenciamento anual de veículo automotor - Matéria regulada pelas disposições contidas nos arts. 124, VIII, 128, 131, § 2º, do Código de Trânsito Brasileiro - Denegação da ordem - Apelação não comprovada - Pela autoridade autuante ter habilmente exercido a notificação ao infrator de regra legal mandada observar pela Lei assiste ao cidadão em obter o licenciamento junto ao órgão competente não obstante se verifique militar em favor da administração os princípios da legalidade e legitimidade que entretanto cedem espaço diante da notória desorganização administrativa dos serviços específicos. Provimento do apelo para a reforma da sentença negatória da ordem. Direito ao mero licenciamento sem prejuízo da regular exigência das multas aplicadas ao proprietário do veículo cujos valores absorvem a devida correção e cobrança pela dívida ativa." [11]

"Mandado de Segurança - Vistoria de veículo - Multas de trânsito - É vedado ao poder público condicionar o licenciamento ao pagamento, impedindo o motorista de exercer a sua profissão. Confirmada a infração em procedimento administrativo, previsto no Código de Trânsito Brasileiro, cumpre à autoridade inscrever o valor das multas na dívida ativa e promover a execução fiscal na via judicial. A execução extrajudicial não se insere no poder de polícia da administração pública. Sentença correta. Apelo improvido. (IRP) Vencido o Des. Caetano E. da Fonseca Costa. Obs.: Embargos de Declaração acolhidos para esclarecer omissão." [12]

Diante do exposto, mesmo que admitíssemos, ad argumentandum, a possibilidade do condicionamento do pagamento das multas para o licenciamento, tal situação somente seria exigível após a inscrição em dívida ativa. Neste diapasão, é forçoso admitir a inconstitucionalidade ou ilegalidade do art. 131, § 2º, do CTB, por violação da razoabilidade e da proporcionalidade, pela criação de poderes de auto-executoriedade flagrantemente excessivos, principalmente por estarmos diante de multas que poderiam ser inscritas e executadas na forma da legislação.

Sobre o autor
Luiz Henrique Antunes Alochio

Doutor em Direito (UERJ)Mestre em Direito Tributário (UCAM) Sócio em Alochio Advogados.www.alochio.com.br+55(27) 3075-3545

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21034. Acesso em: 23 dez. 2024.

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