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Inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores

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08/02/2012 às 10:26
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4. Exigência de multas como requisito para pagamento de tributos do licenciamento: afronta ao CTN (lei complementar)

Por derradeiro, a exigência do pagamento de multas de trânsito, ainda que fosse a título legal, para que se recebessem os tributos inerentes ao licenciamento de veículo, afrontaria a Legislação Complementar Federal, em especial ao art. 164, I, do Código Tributário Nacional:

"Art. 164 - A importância do crédito tributário pode ser consignada judicialmente pelo sujeito passivo, nos casos:

I - de recusa de recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro tributo ou de penalidade, ou ao cumprimento de obrigação acessória;"

Ora, se a previsão de consignação é explícita, temos por inferência lógica, que a exigência de penalidade – que é o caso de multas – para o recebimento do crédito tributário é indevida, violadora de direito líquido e certo do contribuinte. Vale dizer, na maioria dos casos os contribuintes ficam até mesmo impossibilitados de realizar a consignação, pois para saberem o valor devido de taxas e impostos dependem da expedição dos boletos de cobrança por parte dos DETRANs. E estes órgãos, por vezes, apenas expedem as cobranças do DPVAT e taxas, após o recolhimento das multas!

Em síntese: dispondo-se o contribuinte ao recolhimento dos valores devidos, é nosso entendimento que se deve impetrar mandado de segurança para que o Poder Judiciário ordene ao órgão de trânsito competente que expeça todos os documentos de cobrança, exceto as multas, para o devido pagamento.


5. O caso não é solve et repete

Muito se tem afirmado que a exigência do recolhimento das multas de trânsito é legítimo, por tratar-se de uma cláusula solve et repete. Porém, ousaremos divergir deste entendimento, por duas razões básicas, que a seguir esmiuçaremos: a primeira, por não verificarmos, na hipótese, uma verdadeira cláusula solve et repete; e, ao final, por termos esta modalidade de coação como acintosamente inconstitucional.

Quanto ao nosso primeiro argumento, devemos salientar o conceito básico do solve et repete, mais comumente encontrado na doutrina tributária:

"Locução latina que denomina um princípio de direito tributário, pelo qual o contribuinte, para discutir judicialmente a devolução daquilo que teria pago indevidamente, fica obrigado a depositar importância correspondente à que pleiteia." [13]

No mesmo sentido, Sttefani [14] acrescenta:

"A ideologia do solve et repete faz parte da cultura arcaica, na qual os Monarcas exerciam sua soberania sobre a classe proletária, exigindo-lhes o pagamento sem conceder-lhes qualquer tipo de defesa, sendo que o valor pago ilegalmente somente poderia ser restituído a posteriori, mediante toda a sorte de dificuldades, o que sacrificava soberbamente o contribuinte."

Por fim, Carrazza [15] arremata:

"De acordo com a regra solve et repete, o contribuinte só pode contestar a legitimidade de um tributo após havê-lo pago. É uma regra medieval, que só se justificava quando se entendia que o Fisco, na relação jurídica tributária, ocupava uma posição de preeminência em face do contribuinte.

Hoje, pelo contrário, é pacífico, inclusive no Brasil, que, na relação jurídica tributária, Fisco e contribuinte estão em pé de igualdade, pela idêntica subordinação de ambos à lei.

Assim, esta regra anacrônica – que Berliri comparava à tortura e Micheli sempre vergastou –, que põe uma arma temível nas mãos do Fisco (na realidade, mais forte do que o contribuinte), está praticamente banida dos ordenamentos jurídico-tributários do mundo ocidental."

Portanto, a cláusula solve et repete, classicamente reconhecida, demanda o pagamento de um valor para, ao depois, podermos questioná-lo.

Assim, fica-nos evidente que o art. 131, § 2º, não é sequer uma cláusula solve et repete. É uma verdadeira coação grosseira, baseada na necessidade do proprietário do veículo em licenciá-lo, para poder com ele circular. Para ser uma cláusula solve et repete, deveria estar em jogo como pretensão do cidadão questionar o valor exigido em si. Porém, não se pretende – ainda – realizar o questionamento das multas. Pretende-se, tão-somente, realizar o pagamento dos tributos devidos e questionar-se tão-somente a legalidade da exigência das multas naquele instante. O que se questiona não são as multas, mas as sua exigibilidade.

Seria solve et repete, aí admitiríamos em tese, se o proprietário do veículo, necessitando de uma certidão negativa referente às multas, quisesse discutir as próprias multas. Neste caso se a lei exigisse o recolhimento do valor questionado, teríamos uma cláusula solve et repete.

Mas, o art. 131, § 2º, do CTB não determina um pagamento para posterior discussão. Determina apenas o pagamento para o licenciamento. O móvel que impele o proprietário do veículo ao recolhimento das multas não é a vontade de extinguir aquela dita obrigação (multas), mas, tão-somente, suprimir um obstáculo ao exercício de um outro direito (licenciamento do veículo).

Reprisando: o que se vê no art. 131, § 2º, do CTB é a grotesca imposição do pagamento das multas, tendo o Legislador simplesmente levado em consideração o desespero do proprietário do veículo que, sem o licenciamento, não poderá trafegar com o automotor.

Não bastasse isso, temos que a própria instituição da cláusula solve et repete afrontaria a garantia constitucional de proteção perante o judiciário. Nenhuma lesão a direito, ou ameaça a lesão, poderão ser afastadas do controle jurisdicional. Logo, a exigência do recolhimento das multas é plenamente controlável por ato do Poder Judiciário.

5.1 Antes que venham os contra-argumentos: o STF e os depósitos recursais

Os leitores poderão objetar às ponderações anteriores o fato de o Supremo Tribunal Federal ter validado a figura dos depósitos recursais como requisito para admissão de recursos administrativos ou ações judiciais. Apesar de numa primeira visão parecer que o STF acatou o solve et repete, em realidade não tivemos a ressurreição do famigerado problema.

Para não alongarmos nossas considerações, seremos extremamente breves nesta nossa afirmação:

a) a cláusula solve et repete demanda o pagamento de um determinado valor, para somente após, o interessado poder contestá-lo;

b) pagamento e depósito recursal, com a devida vênia, são figuras jurídicas totalmente distintas;

c) pagamento é forma de extinção de obrigações;

d) depósito recursal, por seu turno, é mera forma de postergação de exigibilidade das obrigações;

e) portanto, nos depósitos recursais não se está diante da cláusula solve et repete, pois não se obriga ao pagamento da obrigação.

Doravante devemos estabelecer alguns conceitos que serão deveras úteis para que cheguemos às nossas conclusões, em especial delimitando o que se pode juridicamente entender por:

a) pagamento; e

b) depósitos recursais.

O próprio conceito legal de pagamento assim se apresentava no revogado Código Civil de 1916:

"Art. 930 - Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor."

O atual Código Civil manteve o conceito em seu art. 304:

"Art. 304 - Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando, se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor."

Ou seja, o próprio conceito legal de pagamento indica sua natureza de interesse na extinção de uma dívida. Neste caso, falando de pagamento, podemos ler o que a Lei Federal nº 4.320/64 prescreve sobre as receitas públicas:

"Art. 11 - A receita classificar-se-à nas seguintes categorias econômicas: Receitas Correntes e Receitas de Capital.

§ 1º - São Receitas Correntes as receitas tributária, de contribuições, patrimonial, agropecuária, industrial, de serviços e outras e, ainda, as provenientes de recursos financeiros recebidos de outras pessoas de direito público ou privado, quando destinadas a atender despesas classificáveis em Despesas Correntes.

§ 2º - São Receitas de Capital as provenientes da realização de recursos financeiros oriundos de constituição de dívidas; da conversão, em espécie, de bens e direitos; os recursos recebidos de outras pessoas de direito público e privado, destinados a atender despesas classificáveis em Despesas de Capital e, ainda, o superavit do Orçamento Corrente.

[...]

Art. 39 - Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.

§ 1º - Os créditos de que trata este artigo, exigíveis pelo transcurso do prazo para pagamento, serão inscritos, na forma da legislação própria, como Dívida Ativa, em registro próprio, após apurada a sua liquidez e certeza e a respectiva receita será escriturada a esse título."

Pelo exposto, somente poderemos falar de pagamento quando a legislação determinar aquela entrega de recursos como forma de extinção da obrigação, e não como pressuposto de admissibilidade de recursos ou como requisito para postergação da exigibilidade da obrigação no tempo. Muito menos, aquelas formas de mera coação, como no caso presente, posto que despe o pagamento de seu conteúdo volitivo. [16]

Portanto, quem paga tem o caráter volitivo de quitar uma obrigação, o que não é o caso de um mero depósito recursal. Sem medo de errar, seguimos a posição de Carlos Augusto Junqueira Henrique [17], que conceitua o ato de mero depósito recursal:

"O depósito recursal, por seu turno, tem por escopo garantir a efetividade (mesmo que parcial) do provimento jurisdicional, situando-se no plano de suposto de admissibilidade de eventual recurso. Sua atuação se dá no plano do tempo do e no processo. Permitido o aviamento de recursos e então a projeção do encerramento do processo para um termo mais distante, a condição imposta – o depósito recursal – age no sentido de reduzir essa projeção visto que confirmada a sentença e retornando os autos ao juízo da execução poderá ser levantado de imediato pelo credor."

Ora, quem recolhe um valor em mero depósito não está interessado na extinção da dívida (o que é inerente ao pagamento), e sim, no atendimento de um pressuposto de admissibilidade de recursos (campo típico de depósitos). Estamos diante de mera garantia.

Vimos anteriormente que a Lei Federal nº 4.320/64 prescreve sobre as receitas públicas, dentre as quais não se acha qualquer menção aos meros depósitos acautelatórios ou suspensivos de exigibilidade de certo crédito. Portanto, sequer temos como enquadrar os meros depósitos como categoria de receita.

Posto isso, concluímos que não se pode utilizar o argumento da sobrevivência do solve et repete, com base na exigência de depósitos recursais. Afinal, se estamos falando de meros depósitos, não há campo típico para a cláusula solve et repete (que pressupõe pagamento).


6. Da Súmula nº 127 STJ

O tema referente às multas para licenciamento de veículos é recorrente na jurisprudência. Diariamente centenas de mandados de segurança são impetrados contra tal exigência. Inclusive, isto nos conduziu à edição da Súmula nº 127 do STJ, verbis:

"127 - É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado."

Como visto, o STJ parece entender que somente não é possível condicionar o licenciamento do veículo, quando o infrator não foi devidamente notificado de forma prévia, quanto à própria autuação da infração.

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Porém, neste artigo, pugnamos pela completa impropriedade da exigência das multas como requisito do licenciamento, pelos argumentos já elencados.

Nada obstante, é forçoso salientar, a súmula em referência foi editada com base na legislação de trânsito revogada, uma legislação que veio a lume em época de influxos não muito democráticos. Os três precedentes informados pelo Superior Tribunal de Justiça como responsáveis pela edição da Súmula nº 127 são anteriores ao Novo Código de Trânsito (REsp 6228/PR 1990/0011960-0 [18], REsp 37537/SP 1993/0021822-0 [19], e REsp 34567/SP 1993/0011671-1 [20]).

Portanto, salvo melhor juízo, prestando-se o STJ à interpretação da lei federal, deverá fazê-lo com base na lei então vigente. Logo, inaplicável, como regra, a Súmula nº 127, pela razão referida. Para confirmação de nossas afirmações, basta consultar o sítio do STJ para avaliarmos os Recursos Especiais que deram origem à súmula: todos são referentes a litígios envolvendo as leis de trânsito revogadas!


7. Da ADI nº 2.998

Deixando patente a inconstitucionalidade da exigência, devemos referir que a ordem dos Advogados do Brasil ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.998, em trâmite no STF. Até o presente momento, a ação se encontra aguardando o julgamento de mérito, e, quanto à manifestação sobre o pedido de liminar assim se pronunciou o ministro Marco Aurélio, relator no feito:

"1. Nesta ADI, são atacados os arts. 124, inciso VIII, 128, 131, § 2º, 161, cabeça e parágrafo único, e 288, § 2º, todos da Lei nº 9.503/97, o Código de Trânsito Brasileiro. A simples passagem do tempo direciona à conclusão de não concorrer, na espécie, a urgência a ditar medida acauteladora. Presente o princípio da economia e celeridade processuais – o máximo de eficácia da lei com o mínimo de atividade judicante –, deve ser evitado o duplo julgamento, muito embora o primeiro tenha natureza precária e efêmera. Há de se levar em consideração o art. 12 da Lei nº 9.868/99. A razão de ser do preceito é, justamente, evitar o que nos últimos anos vinha ocorrendo, ou seja, a duplicidade de apreciação, com sobrecarga do plenário. 2. Aciono o disposto no artigo acima transcrito. Solicitem-se informações, no prazo de dez dias, e, após, colham-se as manifestações do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, observando-se, tanto quanto possível, o prazo assinado em lei. 3. Publique-se.

Brasília, 1º de outubro de 2003.

Ministro Marco Aurélio Relator."

Na ADI em apreço, o Exmo. Senhor Procurador-Geral da República Dr. Cláudio Fontelles, manifestou-se através do Parecer nº 1425/CF. Especificamente sobre a alegada inconstitucionalidade do art. 131, § 2º, do CTB, assim se manifesta o Doutor Procurador:

"12. Ora, a exigência de quitação de débitos fiscais e de multas para a emissão do certificado de registro e da concessão de licenciamento anual, não configura afronta ao direito de propriedade, visto que não reduz o âmbito do direito de propriedade, mas, apenas limita o exercício desse direito ao impor uma condição, ou seja, o pagamento desse débito.

13. Improcede, por igual, a alegação de que a limitação do uso do veículo configuraria afronta, também, à garantia do devido processo legal. Todavia, a previsão na Lei de Trânsito de um processo administrativo no qual se procede a prévia notificação pessoal do condutor infrator ou do proprietário do veículo, possibilitando a ampla defesa e o contraditório, com certeza preserva a garantia constitucional do devido processo legal inscrito no art. 5º, inciso LIV, do texto constitucional federal.

[...]

[...]

[...]

O Supremo Tribunal Federal tem firmado sua posição no sentido de ser constitucional a exigência de depósito prévio para possibilitar a interposição de recurso administrativo. A exemplo, a decisão proferida no RE nº 356.287-8/SP, cujo acórdão está assim ementado (rel. Min. Moreira Alves, DJ 07.02.2003, transcrição parcial):

‘Depósito para recorrer administrativamente.

- Em casos análogos ao presente, relativos à exigência do depósito da multa como condição de admissibilidade do recurso administrativo, esta Corte, por seu Plenário, ao julgar a ADI 1.049 e o RE 210.246, decidiu que é constitucional exigência desse depósito, não ocorrendo ofensa ao dispostos nos incisos LIV e LV do art. 5º da Carta Magna, porquanto não há, em nosso ordenamento jurídico, a garantia do duplo grau de jurisdição.’

Da ADI nº 1.049-2/DF, referida no acórdão acima, vale ser destacado do voto do eminente Ministro Sepúlveda Pertence seu entendimento no sentido de que não contraria o princípio da garantia do devido processo legal a exigência do depósito para condição de admissibilidade de recurso administrativo, in verbis (Ementário nº 1797-2, fls. 221):

‘Ora, como o devido processo legal não impõe sequer o direito à existência do recurso administrativo, não vejo de que maneira o condicionamento do seu exercício ao depósito poderia afetar a garantia do devido processo legal.’

19. [...]."

Como visto, o Parecer transcrito acaba utilizando para a exigência de pagamento o raciocínio apropriado para casos de mero depósito recursal. Confundem-se as categorias extinção de obrigação de obrigação (pagamento) com mera suspensão de exigibilidade (característica dos depósitos). Contudo, esta é a atual realidade da ADI nº 2.998.

Esperamos que, em Plenário, dê-se uma correção de rumo, e a subseqüente decretação da ilegitimidade constitucional da mal sinada exigência do pagamento de multas para que se possam licenciar veículos automotores. Se assim não ocorrer, restará tênue a linha que mantém em vigor as Súmulas nºs 70, 323 e 547, todas do STF, que têm, como pano de fundo, a discussão das liberdades pessoais (o exato tema que sustenta a discussão da inconstitucionalidade, também no caso dos dispositivos do CTB).

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Sobre o autor
Luiz Henrique Antunes Alochio

Doutor em Direito (UERJ)Mestre em Direito Tributário (UCAM) Sócio em Alochio Advogados.www.alochio.com.br+55(27) 3075-3545

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Inconstitucionalidade e ilegalidade na exigência do pagamento de multas, como requisito para licenciamento de veículos automotores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3143, 8 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21034. Acesso em: 26 abr. 2024.

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