1.1 Aspectos Gerais.
Algumas considerações prévias devem ser tecidas, desde logo, para que se evitem repetições desnecessárias no presente trabalho, eis que, muito do que foi ponderado em relação ao procedimento ordinário nos processos que apuram crimes dolosos contra a vida, pode ser novamente aproveitado em sede de apuração de crimes praticados por funcionários públicos.
Tal se dá em relação, por exemplo, aos aspectos atinentes à citação pessoal por mandado ou editalícia, do acusado, ou às alterações do rito do interrogatório judicial que, certamente, se estendem a esse tipo de procedimento processual penal, até porque, como dito no capítulo anterior, se cuidou de inovações efetuadas no atendimento a princípios como o do contraditório e o da ampla defesa, ambos constitucionalmente assegurados aos litigantes em geral ( artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal de 05.10.1.988 ).
De se pedir permissão, portanto, em sede de consideração prévia, para que não se proceda a tais repetições desnecessárias, passando-se, desde logo, ao que for específico em sede deste rito processual, o que se explica até para que não se desmereça o trabalho de pesquisa encetado, diante da desproporção entre o volume de páginas entre os dois capítulos apresentados.
Ainda em sede de consideração prévia, insta delimitar o objeto do estudo neste capítulo do preente trabalho, o que não pode ser feito, sem que se analisem algumas peculiaridades dos crimes praticados por funcionários públicos.
Com efeito, a Parte Especial do Código Penal de 1.940, prevê um Capítulo referente aos crimes praticados por funcionários públicos contra a Administração em geral.
Cuida-se de uma série de delitos, a começar pelo peculato, destacado a partir do artigo 312 do Código Penal, a que se convencionou denominar crimes especiais, assim entendidos aqueles em que se exige “determinada qualidade no sujeito ativo, seja de natureza social, como a de funcionário público, seja natural – mãe, mulher, etc, antepondo-se essa espécie ao delito comum, que pode ser praticado por qualquer pessoa”. [01]
E, por Administração Pública, a doutrina não entende, para efeitos de persecução penal, apenas a atividade administrativa em sentido estrito, mas abrange toda a atividade estatal, o que engloba não somente o âmbito de atuação do Poder Executivo, e seus funcionários, como também, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário.
É o que se entende como o conjunto de entes que desempenham funções públicas, sob uma ótica subjetiva, enquanto que, no ângulo objetivo, de se considerar Administração Pública “como toda e qualquer atividade desenvolvida para a satisfação do bem comum”. [02]
E a tutela penal da Administração Pública contra crimes de seus funcionários zela pela tutela não só de interesses patrimoniais desta atividade ampla para a satisfação do bem comum, como também visa a proteção de interesses morais, portanto, extrapatrimoniais. [03]
Outro aspecto interessante a se destacar é o de que essa espécie de crime tem como pressuposto ser o agente do delito, um funcionário público, como alertado acima, ao se fazer alusão à situação do crime especial, e a noção de funcionário público, para efeitos da lei penal, vem expressamente destacada na norma contida no artigo 327 do Código Penal ( “considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” ).
Mas, o que deve ser ponderado é o aspecto de que, nessa noção de funcionário público, em sede de persecussão penal, em algumas situações de co-autoria ( o concursus delinquentium ), os particulares acabam sendo equiparados a funcionários públicos, havendo comunicação dessa qualidade aos partícipes [04] ( como preconizado pela norma contida no artigo 30 do Código Penal ).
Diferencia-se, ainda, em sede doutrinária, sobre a existência de crimes funcionais ( em alusão aos praticados por funcionários públicos ) em crimes fucionais próprios e impróprios [05], sendo estes últimos, crimes comuns, que apenas tem a qualificação diferenciada por terem sido praticados por um funcionário público ( o peculato enquanto uma apropriação indébita praticada por um funcionário público ), enquanto que os primeiros, ou seja, os próprios, seriam aqueles que se qualificam, ou seja, tem como elemento essencial, a função pública, sem paralelo nos crimes comuns ( por exemplo, a corrupção passiva ).
Paulo José da Costa Jr., elucida tal questão de forma mais simples e clara ao asseverar que:
“Nos crimes funcionais próprios, a qualidade de funcionário público é elementar do tipo. Ausente a condição de funcionário público, a conduta é atípica ( concussão, excesso de exação, corrupção passiva, prevaricação ). Aqueles chamados de impróprios são crimes funcionais em que o fato seria igualmente criminoso se não fosse praticado por funcionário público, embora a outro título ....” [06]
Tecidas tais considerações iniciais, elucidativas do tema e do objeto que se irá analisar, de se passar ao exame das ponderações procedimentais propriamente ditas.
1.2 – Procedimento.
Como já asseverado acima, não se pode deixar de considerar que a noção de procedimento tenha afinidade com a existência de fase judicial, na medida em que, como sabido, o processo é um instrumento do direito de ação, sendo certo que tal instrumento forma, na sua essência, uma relação jurídica entre o Juiz e as partes, sendo o procedimento um conjunto de atos coordenados pelos quais se desenvolve o processo. [07]
Desta feita, de se considerar, como igualmente asseverado acima, que processo é um instrumento decorrente do exercício da jurisdição, o que faz com que a idéia de um procedimento, sob o ponto de vista técnico esteja ligada a uma idéia de atuação jurisdicional.
Mas, em processo penal, não se pode perder de vista o fato de que as ações penais somente serão iniciadas se houver justa causa para a sua propositura, o que faz supor, na generalidade dos casos, a existência de dados sobre a provável demonstração da materialidade e da autoria delitivas, o que é geralmente obtido em fase extrajudicial, ou seja, na fase da apuração policial do delito.
Assim, são reiteradas, nesta oportunidade, todas as considerações tecidas anteriormente, acerca da análise do procedimento dos crimes dolosos contra a vida, no que tange à atuação policial e o trâmite do inquérito, com as ressalvas no que se refere à possibilidade de arquivamento ou pedido de diligências por parte do órgão ministerial.
De se passar, portanto, tecidas essas considerações, ao exame do procedimento judicial nos crimes praticados por funcionários públicos, os quais se encontram disciplinados nos artigos 513 a 518 do Código de Processo Penal.
E, isso é um dado relevante, tal procedimento somente é aplicável aos crimes funcionais afiançáveis ( e, pelo óbvio, o Código de Processo Penal, em seus artigos 321 e seguintes úteis, disciplina os parâmetros da afiançabilidade, ou não, de um delito ), o que é uma disposição expressa contida no artigo 514 do referido diploma processual penal.
Assim, somente não se aplicará tal procedimento aos delitos previstos pelas normas contidas nos artigos 316, parágrafo 1º ( excesso de exação ) e 318 ( contrabando ou descaminho ) do Código Penal, posto que, dentre os crimes funcionais, seriam os únicos a não admitir prestação de fiança. [08]
Outra peculiaridade relevante é a de que, como destacado pela norma contida no artigo 518 do Código de Processo Penal em estudo, pouco importa que o delito funcional seja, ou não, apenado com reclusão ou com o detenção, para que se proceda à fixação ou escolha do rito processual, posto que, tanto numa como noutra situação, o rito a ser empregado será o especial.
Como adverte Vicente Greco Filho, o rito especial será aplicável apenas e tão somente ao funcionário público, e não ao particular em co-autoria delitiva, que deverá ser processado pelo rito comum. [09]
A dúvida remanescerá, no entanto, em relação à situação do funcionário público que já houver deixado o cargo ou função pública, pré-requisito, como destacado acima, para que possa fazer jus ao processamento pelo rito especial.
Em sede doutrinária, no entanto, se tem entendido que, se o agente perdeu a qualidade de funcionário público ( como dito acima, para os efeitos penais a noção se acha definida no artigo 327 do Código Penal ), não haverá sentido em se falar em procedimento especial. [10]
De todo modo, a inobservância do rito especial, dependendo do segmento doutrinário ou jurisprudencial, poderá, ou não, ensejar a ocorrência de nulidade processual.
Para Fernando Tourinho, a nulidade ocorrida neste tipo de situação, seria absoluta, encontrando tal posicionamento, respaldo em ampla jurisprudência destacada pelo mesmo doutrinador, das quais se pode destacar “RT 572/412, 611/323, 613/290, 625/379, 654/270; RSTJ, 34/64; RJTJSP, 128/438 e 132/461 [11]”, embora admita a existência de entendimento em sentido contrário.
Entende, no entanto, que se cuida de situação de nulidade relativa, Vicente Greco Filho, adotando uma postura mais instrumentalista, consignando que se não houver prova de efetivo prejuízo para a defesa, o ato deve ser convalidado. [12]
A exemplo do que já ocorreria no procedimento para crimes dolosos contra a vida, no procedimento dos crimes funcionais, a regra geral, até por força do disposto no artigo 129 e seus incisos da Constituição Federal é que a ação penal se inicie pela denúncia, restando, no entanto, a possibilidade da ação penal privada subsidiária do ofendido.
Assim, por exceção, na omissão ministerial, o ofendido, que, como parece óbvio, é a pessoa jurídica na qual trabalha, ou em relação ao qual se vincula o agente ( funcionário público nos termos do artigo 327 do Código Penal ), poderá iniciar o procedimento pela apresentação de queixa-crime.
Acaso se cuide de situação de crimes conexos, ou seja, um crime comum e um funcional, por exemplo, não se tem entendido como possível que não se aplique a regra geral para esse tipo de situação.
Ou seja, nestes casos de conexão entre crimes, ainda que um deles seja um crime funcional como entendido neste capítulo do presente trabalho, a questão será resolvida pela regra geral segundo a qual prevalecerá o rito, ou procedimento, aplicável ao crime mais grave. [13]
Superadas tais controvérsias, pelo rito especial, apresentada a denúncia ( ou queixa, como ressalvado acima ), após a autuação, o acusado será notificado para que apresente contestação escrita, antes do recebimento da referida petição inicial, devendo-se aguardar tal resposta pelo prazo de 15 ( quinze ) dias, nos estritos termos da norma contida no artigo 514 do Código de Processo Penal.
Esta notificação para a apresentação de defesa tem sido considerada uma fase obrigatória do procedimento especial e sua falta tem sido entendida como situação de nulidade processual absoluta, por ofensa aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa [14] ( dos quais, aliás, já se cuidou acima, quando do exame do capítulo anterior acerca dos crimes dolosos contra a vida ).
Tal norma prevê, ainda, que se o acusado não for encontrado para efeitos desta notificação, na sede da jurisdição do Magistrado, ou mesmo se não se conhecer o seu endereço, deverá o Juiz nomear um defensor para que apresente a contestação.
Com relação a este aspecto, no entanto, tem-se entendido cuidar-se de norma inconstitucional, na medida em que seria um dispositivo que apresenta restrição ao princípio constitucional da ampla defesa [15] ( do qual já se cuidou linhas atrás ), até porque, em se cuidando de acusado com endereço certo, mas residente em outra Comarca, bastaria a expedição de uma carta precatória para a solução do problema.
Mas, a despeito da posição doutrinária demonstrada, em sede jurisprudencial já se decidiu pela prevalência e constitucionalidade da letra da lei, ou seja, da alternativa de nomeação de um defensor ao invés de se deprecar a intimação, como se observa pelo Julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, publicado na RT 609/295.
Apresentada tal defesa, que, pelo óbvio elementar, poderá estar acompanhada de documentos, inclusive de depoimentos de testemunhas produzidos em ações cautelares de justificação de prova, se o Juiz se convencer da inexistência de crime, de situação de improcedência da ação penal, ou, até mesmo, de vícios formais insanáveis, procederá à rejeição da denúncia ( ou queixa ).
Em tal decisão deverá ser observado o disposto no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal em vigor, em seja, em face de seu explícito conteúdo decisório, deverá ser fundamentada, tendo natureza jurídica de sentença, porque implica em uma decisão definitiva de mérito, fazendo coisa julgada material. [16]
O mesmo não se dá, evidentemente, caso se cuide de decisão que afastou a defesa apresentada, recebendo a denúncia (ou queixa subsidiária), o que se dá pelas razões já apontadas acima, quando se tratou da questão dos crimes contra a vida, posto que, como já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, a fundamentação excessiva, nesta fase, pode implicar em pré-julgamento do feito.
Em se cuidando de recebimento da petição inicial acusatória, o réu será citado (alguns autores [17] entendem que a citação se deu, verdadeiramente, quando da notificação e que o correto seria, agora, intimar-se o réu), prosseguindo-se o feito pelo rito dos crimes apenados com reclusão, ou seja, depois da referida “citação”, seria de se proceder ao interrogatório ( e, como dito acima, no capítulo anterior, as regras do interrogatório judicial foram alteradas, prevalecendo o prévio contato com o defensor e o direito deste de efetuar reperguntas ao réu ), defesa prévia, audiência de início de instrução para oitiva das testemunhas arroladas pela acusação, audiência para oitiva das testemunhas de defesa, fase das providências preliminares do artigo 499 do Código de Processo Penal, as alegações finais escritas do artigo 500 do mesmo diploma legal e a sentença.
E isso se dá ainda que o crime seja apenado com detenção, posto que, como assevera Tourinho Filho: “preferiu o legislador estabelecer um rito mais solene, tomando, assim, uma natural precaução no próprio interesse do serviço público”. [18]
Notas
1. [1] Magalhães Noronha, E. Direito Penal, Volume 4, São Paulo: Saraiva, 17ª edição, 1.986, p. 200.
2. [1] Costa Jr., Paulo José da. Curso de Direito Penal, Volume 3. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 1.992, p. 177.
3. [1] Salles Jr., Romeu de Almeida. Curso Completo de Direito Penal, São Paulo: Saraiva, 3ª edição, 1.993, p. 367.
4. [1] Magalhães Noronha, E. Direito Penal, Volume 4, São Paulo: Saraiva, 17ª edição, 1.986, p. 201.
5. [1] Magalhães Noronha, E. Direito Penal, Volume 4, São Paulo: Saraiva, 17ª edição, 1.986, p. 201.
6. [1] Costa Jr., Paulo José da. Curso de Direito Penal, Volume 3. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 1.992, p. 178.
7. [1] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 345.
8. [1] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 653.
9. [1] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 383.
10. [1] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 383.
11. [1] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 677.
12. [1] Greco Filho, Vicente. Op. Cit., p. 383.
13. [1] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 383.
14. [1] Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1.999, 4ª edição, p. 540.
15. [1] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 383
16. [1] Greco Filho, Vicente. Manual do Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2º edição, 1.993, p. 384.
17. [1] Greco Filho, Vicente. Op. Cit., p. 384.
18. [1] Tourinho Filho, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2.003, p. 677.