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O garantismo e o abolicionismo penal: características e conflitos

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Agenda 15/02/2012 às 17:03

Num certo ponto, o garantismo e o abolicionismo convergem – seu fim último é a humanização dos sistemas para que as ações danosas praticadas por um indivíduo possam ser dimensionadas dentro da própria comunidade (com ou sem a participação do Estado), mantendo-se a unidade do grupo sem a necessidade de segregação do indivíduo “desviante”.

SUMÁRIO: 1  INTRODUÇÃO. 2  O GARANTISMO PENAL. 3  O ABOLICIONISMO PENAL. 4  CONCLUSÃO. 5     REFERÊNCIAS


1  INTRODUÇÃO

É notório que, há muito, o direito penal passa por uma crise de justificação. Desde o advento do Iluminismo e a propagação de seus princípios humanitários, muito se discute até que ponto o sistema penal, com seus mecanismos de apuração, julgamento e imposição de pena, é suficientemente legítimo. Os supostos benefícios alcançados através da imposição da pena suplantam os custos – individuais e coletivos – inegavelmente gerados pela persecução e execução penal? Haveria uma alternativa a este sistema, que agregasse mais vantagens que desvantagens, e que poderia, de forma eficiente, suplantar a máquina de punição do Estado? Ou, ainda, poderia ser o sistema penal totalmente abolido?

Historicamente, podemos dividir as correntes que discutem a justificação do direito penal entre justificacionistas e abolicionistas. As primeiras constroem um discurso que justifica o direito penal, encontrando-lhe utilidade, em que pesem seus custos; ou propõem modelos alternativos de resposta, ainda que extrapenais, mas de toda forma institucionalizados e coercitivos. Já as últimas defendem o discurso de total abolição do direito penal, por acusá-lo de ilegítimo, defendendo práticas consensuais e conciliatórias de solução de conflitos.

No presente trabalho, pretendemos expor os argumentos do garantismo penal, enquanto doutrina justificacionista reformadora, em contraposição aos argumentos abolicionistas do direito penal, com o objetivo de delimitar as características de cada uma dessas doutrinas, bem como seus pontos de conflito.

Cumpre esclarecer, de antemão, exatamente este cenário. Não raro, confunde-se o garantismo como espécie, talvez mais branda, de abolicionismo. Trata-se, no entanto, de doutrinas opostas.

O garantismo penal, cujo maior expoente é Ferrajoli (2007), é uma doutrina justificacionista. Como se verá adiante, o garantismo propõe um modelo de procedimentos e condições para a imposição da pena que, justamente por concebê-la e admiti-la, encontra-lhe justificação (embora proponha alternativas a ela e até a abolição de alguns tipos penais). Discutem-se a qualidade, os limites, as condições e os momentos de imposição da pena, de forma a delimitar critérios segundo os quais ela poderá ser considerada legítima. Em alguns momentos, o garantismo propõe a substituição da pena privativa de liberdade por outras formas de sanção, ou até a abolição de determinadas espécies de pena, como a pena pecuniária. No entanto, todas as alternativas apresentadas por esta doutrina constituem, ainda, formas institucionalizadas, coercitivas e estatizadas de intervenção, firmando sua principal distinção frente ao abolicionismo. Assim, não se critica a intervenção penal por ilegítima, embora se proponha novos meios e condições para a intervenção punitiva.

O garantismo tem como fonte o pensamento iluminista, e propõe como parâmetros e condições para a admissão de uma pena que esta seja humanizada – banindo, portanto, castigos físicos, cruéis, a pena de morte e a prisão perpétua – bem como necessária e proporcional ao delito cometido.

Os abolicionistas[1], a seu turno, defendem a total extinção da pena, sem a substituição deste instrumento por outros mecanismos institucionalizados e coercitivos de resposta aos delitos. Os abolicionistas radicais, embora minoria, entendem a prática do crime enquanto manifestação da rebelião e da transgressão, que constitui aspecto positivo da liberdade do indivíduo e de sua determinação despida do controle institucionalizado do Estado.

As doutrinas abolicionistas mais radicais são, seguramente, aquelas que não apenas não justificam as penas, como também as proibições em si e os julgamentos penais, ou seja, que deslegitimam incondicionalmente qualquer tipo de constrição ou coerção, penal ou social. Quer-me parecer que uma postura de tal forma radical tenha sido expressada somente pelo individualismo anárquico de Max Stirner: partindo da desvalorização de quaisquer ordens ou regras, não apenas jurídicas, mas inclusive morais, Stirner chega à valorização da transgressão e da rebelião, enquanto livres e autênticas manifestações do “egoísmo” a-moral do ego, cujos julgamento, prevenção e punição constituem injustiças.[2]

De toda forma, os abolicionistas propõem, basicamente, a extinção do direito penal e de seus mecanismos de punição. Conforme se verá adiante, esta doutrina propõe que os conflitos devem ser solucionados por meio de instrumentos não formais e não coercitivos de conciliação.


2  O GARANTISMO PENAL

O garantismo penal é um modelo limite, ideal, norteador dos institutos e práticas do direito penal em dado sistema político, e que caracteriza esse próprio sistema político. Constitui uma doutrina que parte da noção de separação entre direito e moral para propor um sistema racional de direito penal mínimo, com base no princípio da legalidade estrita.

Luigi Ferrajoli, seu principal expoente, herdeiro da tradição iluminista e liberal, em nada se aproxima de um abolicionista. Do estudo de sua obra, resta claro que o sistema garantista é concebido exatamente para traçar condições de justificação para o direito penal.

Para o garantismo, não só a pena, mas todo o sistema penal só serão legítimos se atenderem aos princípios do Sistema Garantista SG desenvolvido por Ferrajoli. Segundo o mestre italiano, o sistema garantista é um modelo-limite, “apenas tendencialmente a jamais perfeitamente satisfatível,”[3] baseado nos seguintes axiomas ou princípios axiológicos fundamentais:

A1 Nulla poena sine crimine, que expressa o princípio da retributividade;

A2 Nullum crimen sine lege, traduzido no princípio da legalidade;

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate, ou princípio da necessidade ou economia;

A4 Nulla necessitas sine injuria, que traduz o princípio da lesividade ou ofensividade;

A5 Nulla injuria sine actione, ou principio da materialidade;

A6 Nulla actio sine culpa, tradução do princípio da culpabilidade;

A7 Nulla culpa sine judicio, que expressa o princípio da jurisdicionariedade;

A8 Nullum judicium sine accusatione, ou princípio acusatório;

A9 Nulla accusatio sine probatione, ou princípio da verificação ou do ônus da prova;

A10 Nulla probatio sine defensione, traduzido no princípio do contraditório ou da falseabilidade.

Estes dez princípios definem as bases do modelo garantista e combinam-se entre si, dando origem a cinquenta e seis teses, tendo em vista que cada um deles pode ser aplicado tanto como condição para o reconhecimento da prática do crime quanto como condição para a aplicação da pena.

A grande maioria das constituições ocidentais modernas adota os princípios do sistema SG em seus textos. O problema é que a realidade infraconstitucional é despida de alguns ou de vários destes princípios, gerando um dissenso entre o texto constitucional e as práticas institucionais penais. Por isso, o mais adequado, conforme defende Ferrajoli[4], é falar em “graus de garantismo” à medida em que as práticas institucionais – legislativa, judiciária e policial – aproximem-se o máximo possível da efetivação de todos aqueles princípios ou mais se distanciem deles. À medida em que determinado sistema se despe, em suas instâncias infraconstitucionais, dos princípios do modelo garantista, mais aproxima-se de um sistema autoritário, principalmente se considerarmos que, ao subtrair-se uma daquelas garantias já enumeradas, necessariamente subtraem-se todas aquelas que lhes são dependentes e intrinsecamente relacionadas.

Voltando à questão da legitimação da pena e do processo penal, o garantismo defenderá que estes são legítimos, desde que observadas todas as garantias do sistema SG. O sistema penal legítimo seria aquele em que se observasse cada um dos axiomas e suas derivações, tanto como condições para que uma conduta fosse considerada crime, quanto para que um indivíduo fosse considerado culpado, e, ainda, para que uma pena fosse imposta.

É certo que, em determinadas passagens de sua obra, Ferrajoli propõe expressamente a abolição de determinados tipos de pena. Para ele,

o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à qualidade e à quantidade da pena. É este o valor sobre o qual se funda, irredutivelmente, o rechaço da pena de morte, das penas corporais, das penas infames e, por outro lado, da prisão perpétua e das penas privativas de liberdade excessivamente extensas.[5]

De forma contundente, o mestre italiano defende, em última instância, a abolição da pena carcerária, ainda que através de um processo gradual que iniciar-se-ia com o limite máximo de dez anos de pena privativa de liberdade.

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Penso que a duração máxima da pena privativa de liberdade, qualquer que seja o delito cometido, poderia muito bem reduzir-se, a curto prazo, a dez anos, e, a médio prazo, a um tempo ainda menor; e que uma norma constitucional deveria sancionar um limite máximo, digamos, de dez anos. Uma redução deste gênero suporia uma atenuação não só quantitativa, senão também qualitativa da pena, dado que a idéia de retornar à liberdade depois de um breve e não após um longo ou um talvez interminável período tornaria sem dúvida mais tolerável e menos alienante a reclusão.[6]

Ferrajoli propõe, ainda, a extinção do parâmetro mínimo de pena cominada aos tipos penais, a abolição das penas pecuniárias e dos próprios tipos penais punidos exclusivamente com a pena de multa, e a reforma das penas privativas de direitos.

A eliminação do parâmetro mínimo de pena cominada permitiria aos juízes, através de um julgamento de equidade, avaliarem o quantum de pena necessária e suficiente à reprovação do delito no caso concreto, sem se prenderem a um valor mínimo estabelecido de forma abstrata e generalizada pelo legislador.

No tocante às penas pecuniárias, a crítica garantista é de uma consistência incontestável:

A pena pecuniária é uma pena aberrante sob vários pontos de vista. Sobretudo porque é uma pena impessoal, que qualquer um pode saldar, de forma que resulta duplamente injusta: em relação ao réu, que não a quita e se subtrai, assim, à pena; em relação ao terceiro, parente ou amigo, que paga e fica assim submetido a uma pena por um fato alheio. Ademais, a pena pecuniária é uma pena desigual, ao ser sua formal igualdade bem mais abstrata do que a pena privativa de liberdade. Recai, de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio e, por conseguinte, é fonte de intoleráveis discriminações no plano substancial.[7]

Para Ferrajoli, se uma conduta típica, para ser reprovada, se basta com uma pena de multa, tal conduta jamais deveria ser tipificada penalmente, uma vez que o cumprimento da pena, naquele caso, equivale ao pagamento de um tributo, o que poderia ser perfeitamente atendido pela esfera administrativa, ao invés da penal.

O garantismo propõe, enfim, um sistema de penas alternativas, enquanto que “algumas das atuais medidas alternativas e de prevenção – intoleráveis enquanto tais – parecem destinadas a ser as futuras penas principais.”[8]

Resta claro, portanto, que isso não faz do garantismo penal uma doutrina abolicionista, uma vez que não propõe qualquer extinção dos mecanismos formais e institucionalizados de resposta aos delitos. O garantismo questiona a qualidade e a quantidade das penas, e a maior ou menor observância real das garantias através das quais aquelas são impostas, mas não rechaça a pena como instrumento de resposta à prática de uma conduta considerada delituosa.

“Frente à artificial função de defesa social, não é arriscado afirmar que o conjunto das penas cominadas na história tem produzido ao gênero humano um custo de sangue, de vidas e de padecimentos incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos os delitos.”[9] O garantismo se propõe, então, a conceber um sistema de base racional, cujos benefícios suplantem os custos inevitavelmente advindos da atuação coercitiva do Estado.

Neste ponto, chegamos à questão da legitimação. Para o garantismo de Ferrajoli, as penas encontram legitimidade em dois fundamentos principais: o primeiro consiste na necessidade de prevenção da prática de futuros delitos; o segundo, firma o direito penal como substituto “humanizado” da vingança privada. No tocante ao fundamento de prevenção, Ferrajoli afirma que

o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como a outra negativas, quais sejam a prevenção geral dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a segunda o limite máximo das penas.[0]

Para o garantismo, a pena não deve ser baixa a ponto de sua desvantagem ser ultrapassada pela vantagem do delito. Em outras palavras, a pena deve deter um caráter dissuasório, de forma que “não valha a pena” a prática do delito. Conforme assinala Ferrajoli, penas excessivamente baixas assumiriam um aspecto de meros tributos, e não cumpririam qualquer função desencorajadora.[1]

Por outro lado, o garantismo defende que “o direito penal nasce não como desenvolvimento, mas, sim, como negação da vingança.”[2] Segundo esta noção, a idéia moderna do direito penal surge exatamente no momento em que as primitivas vinganças privadas, resultado da relação bilateral entre vítima e agressor, são substituídas por um mecanismo trilateral, que situa o juiz em um pólo imparcial da relação.

Precisamente – monopolizando a força, delimitando-lhe os pressupostos e as modalidades e precluindo-lhe o exercício arbitrário por parte dos sujeitos não autorizados – a proibição e a ameaça penal protegem os possíveis ofendidos contra os delitos, ao passo que o julgamento e a imposição da pena protegem, por mais paradoxal que pareça, os réus (e os inocentes suspeitos de sê-lo) contra as vinganças e outras reações mais severas.[3]

A pena seria, então, a reação estatizada, organizada e humanizada ao delito, e que substituiria a ação de vingança da vítima ou de terceiros lesados pela prática criminosa.

A nosso ver, no entanto, tal argumento sucumbe a uma crítica mais apurada. Em que pese o brilhantismo e a contundência dos argumentos do mestre italiano, a princípio, não há como prever, em todos os casos, qual seria a reação do ofendido como vingança a seu agressor, e sequer se haveria tal reação. Tal fator, numa visão pragmática, depende da análise das forças – econômicas, políticas e até mesmo físicas – do ofendido e do agressor. Não há como conceber as sociedades modernas da mesma forma que concebemos as sociedades primitivas, pois as relações, interesses e meandros sociais são bem mais complexos naquelas do que nestas.

Se a legitimação da pena e do sistema penal baseia-se neste fundamento de evitação da vingança privada, toda vez que se conseguisse provar que não haveria reação da vítima contra seu agressor (seja por impossibilidade ou desinteresse), a pena deveria ser descartada. Esta possibilidade de ausência de reação torna-se ainda mais evidente naqueles crimes em que o sujeito passivo não é um indivíduo determinado, mas a “incolumidade pública”, “a coletividade”, “a saúde pública”, etc.

Além disso, como pode ser amplamente constatado, a pena institucionalizada não tem o poder de neutralizar as sanções sociais advindas da reação ao delito. Desde um primeiro momento, na hipótese de flagrante delito, em que o linchamento de um suposto autor de crime não exclui a pena, o cumprimento integral desta não livra o condenado de censuras e rechaços sociais, que vão desde o banimento do convívio com a comunidade, até a impossibilidade de situar-se novamente no mercado de trabalho, por exemplo.

O próprio Ferrajoli reconhece que a prevenção das vinganças privadas é “satisfeita na atual sociedade dos mass media bem mais pela rapidez do processo e pela publicidade das condenações do que pela expiação da prisão.”[4]

De toda forma, o garantismo tem o mérito de situar o direito penal em bases racionais, traçando não só limites para que o Estado exerça a persecução e a execução penal, mas também pressupostos-garantias (delimitados no esquema SG) sem os quais qualquer imposição de pena será ilegítima.

Além disso, propõe uma reformulação humanitária do sistema, com a abolição de determinados tipos penais e espécies de penas, devolvendo ao direito penal seu original caráter de ultima ratio do sistema jurídico.

O sistema penal, para se justificar, não pode se contentar apenas com argumentos de legitimação interna (legalidade). Embora o direito não possa ser confundido com a moral, o sistema penal só será legítimo se encontrar respaldo em fundamentos externos, de forma que se possa taxar de ilegítimos, inclusive, sistemas que primam pelo cumprimento estrito da lei, se esta lei não estiver atrelada àqueles valores.

Efetivamente, somente a lei penal, na medida em que incide na liberdade pessoal dos cidadãos, está obrigada a vincular a si mesma não somente as formas, senão também, por meio da verdade jurídica exigida às motivações judiciais, a substância ou os conteúdos dos atos que a elas se aplicam. Esta é a garantia estrutural que diferencia o direito penal no Estado “de direito” do direito penal dos Estados simplesmente “legais”, nos quais o legislador é onipotente e, portanto, são válidas todas as leis vigentes, sem nenhum limite substancial à primazia da lei.[5]


3  O ABOLICIONISMO PENAL

O abolicionismo penal não é uma única, mas um conjunto de doutrinas mais ou menos radicais, que têm como traço comum a proposta de abolição do sistema de penas e do próprio direito penal. Os abolicionistas não propõem a substituição das penas clássicas por penas alternativas. Tal proposta é típica do garantismo, que não contesta a legitimidade das penas em si, apenas de determinadas qualidades e quantidades de pena.

Conforme visto, os garantistas propõem a substituição das penas clássicas – pena de morte, prisão perpétua, pena privativa de liberdade – por outras sanções, também formais e institucionalizadas, que imprescindem de um processo penal (ainda que menos formal e mais célere) titularizado pelo Estado. Os abolicionistas, a seu turno, rechaçam a legitimidade das sanções estatais, ainda que diversas das penas privativas de liberdade, e propõem uma total abolição do direito penal e de instâncias formais de punição.

As teorias abolicionistas partem, sempre, da discussão do próprio conceito de crime. Despindo-se das noções jusnaturalistas, negam qualquer noção ontológica de delito, pregando que o que se chama de crime varia de sociedade para sociedade, e de momento para momento, de acordo com interesses que nada têm a ver com a natureza, em si, da ação criminosa.

Um crime nada mais é do que a qualificação de repulsa a certos costumes em defesa da sociedade, num determinado momento da história. É corriqueiro encontrar práticas consentidas transformadas em crimes e vice-versa. [...] Enfim, é pelo proibicionismo que as corrupções se expandem, multiplicam-se as seguranças, acrescentam-se novas punições.[6]

Os abolicionistas incorporam com extrema simpatia as idéias foucaultianas[7], que concebem a sociedade como um complexo de grupos em disputa pelo poder, e de dominação do grupo que o detém, sobre os demais.

A crítica abolicionista ressalta que é impossível ao sistema penal punir todos os desviantes. De fato, é sabido que nem todos as ações consideradas criminosas chegam ao conhecimento das instâncias repressivas. Considerando a instância policial, via de regra, como aquela que primeiro lidará com o fato criminoso, nem todos os crimes praticados chegam a ser notificados e formalizados em um documento policial. Dos que são registrados, boa parcela não é sequer apurada, o que aumenta a chamada “cifra negra” do sistema. Entre os indivíduos que são processados, muitos, embora culpados, não são condenados, seja porque a pretensão punitiva do Estado restou prescrita pela delonga e burocracia das instituições, seja porque os órgãos punitivos não foram eficientes em reunir as provas necessárias contra o autor do delito. Este raciocínio pode ser prolongado até a análise daqueles que, de fato, cumprem uma pena firmada em sentença condenatória. Muitos, embora condenados, frustram a execução penal por fugas. Esse fenômeno deixa explícito o déficit entre o número de crimes cometidos e as efetivas punições aplicadas.

Não bastasse esse “déficit de ineficácia”, o sistema penal também é criticado por sua seletividade. Desde a escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo direito penal, até a eleição da pena a ser imposta a cada caso, o que se opera é a estigmatização daqueles que violaram as regras do jogo, dominado por instâncias de poder. “Aqueles que são oficialmente rotulados como “criminosos” constituem apenas uma pequena parte dos que estão implicados em fatos que legalmente permitem a criminalização, a grande maioria se constituindo de homens jovens provenientes dos setores mais desfavorecidos da população.”[8] Conforme leciona Passetti, o sistema penal

[...] funciona de maneira seletiva, endereçado aos que infringiram o direito de propriedade. No capitalismo, a propriedade privada material, o corpo da pessoa ou seus bens. No socialismo, a propriedade estatal e seus derivados imateriais. Em ambas as sociedades, as pessoas consideradas criminosas devem ser retiradas de circulação, caracterizando uma maneira de educar a todos, conhecida como prevenção geral. Numa, sob o regime democrático, o alvo preferencial da seletividade recai sobre o pobre que rouba, furta, estupra, mata. Noutra, é sobre o subversivo que desestabiliza a ditadura. Assim, nas duas sociedades, sob regimes democráticos ou ditatoriais, qualquer infração à lei, material ou imaterial, caracteriza um crime contra todos, combatido de modo seletivo e identificando o infrator como perigoso. Diante da infração selecionada pelo sistema, a vítima se transforma em testemunha de acusação de um crime cometido contra a sociedade. Então, em lugar de sua indenização, o Estado investe em punir o julgado culpado.[9]

A perversão desse sistema não é acidental. Ao contrário. Os abolicionistas denunciam que a seletividade é proposital e funcional no sistema penal. O sistema penal “não quer” abater-se sobre todos os criminosos. Neste contexto, Maria Lúcia Karam explica que

[...] para a real eficácia do sistema penal é imperativa a individualização de apenas alguns deles, para que, sendo exemplarmente identificados como “criminosos”, possam emprestar sua imagem à personalização da figura do mau, do inimigo, do perigoso, e, assim, possibilitar, simultânea e convenientemente, o reconhecimento dos “cidadãos de bem” e a ocultação dos perigos e dos males que sustentam a estrutura de dominação e poder.[0]

É nítido que as sociedades ocidentais contemporâneas, na prática, admitem, ainda que não oficialmente, a figura do criminoso atávico da Escola Positivista, apenas teoricamente superada. Nas práticas subvertidas do sistema penal, o criminoso é um ser especial e desviado, destacado da sociedade de “homens bons”, fato que justifica qualquer nível de intervenção sobre seu corpo e sua mente, o que até hoje legitima internações compulsórias em casas de custódia e internação psiquiátrica. Neste contexto, a punição dissocia-se completamente do fato criminoso que a gerou, concentrando-se unicamente na personalidade e no caráter do criminoso.

A doutrina atual costuma passar por cima do dado da seletividade, o que é muito significativo, pois se trata da característica estrutural mais vulnerável à crítica política e social do poder punitivo. Diferentemente desta ignorância, ou omissão, atual e pouco explicável, a doutrina pré-moderna fazia carga contra o posicionamento crítico ou o prevenia. A doutrina pré-moderna não só admitiu a seletividade do poder punitivo como tratou de legitimá-la, aceitando implicitamente que para os amigos rege a impunidade e para os inimigos o castigo.[1]

Com a costumeira perspicácia, Zaffaroni, ainda discorrendo sobre a seletividade, aponta as razões pela qual a prevenção geral se tornou um dos argumentos para a legitimação do sistema penal e de suas práticas:

A única maneira de legitimar o poder punitivo reconhecendo a seletividade – quer passando por cima dela, quer subestimando-a – é apelando ao valor meramente simbólico da pena e à sua consequente funcionalidade como prevenção geral positiva, pois esta pode ser cumprida, ainda que a pena opere em um número muito reduzido de casos e até em nenhum, com relação a certos delitos. Por conseguinte, não é de se estranhar que a doutrina pré-moderna tenha elaborado este argumento. Embora costumem ser mostrados como tais, o valor simbólico da pena e a prevenção geral positiva não resultam de desenvolvimentos modernos e contemporâneos, e menos ainda pós-modernos. Na verdade, as teses atuais a esse respeito representam uma volta aos discursos sustentados no século XVI. Seu expositor mais claro foi ninguém menos que Jean Bodin, que, juntamente com Hobbes, é um dos fundadores do conceito de soberania.[2]

A ineficácia da execução também é apontada pelos abolicionistas como crítica ao sistema penal, pois enfraquece a legitimidade supostamente baseada na necessidade de prevenção, mormente se analisada sob o prisma da prevenção especial. “O encarceramento, por sua vez, é dispendioso para o Estado, não reintegra ou ressocializa, funcionando ainda como escola do crime.”[3]

Como vimos, o garantismo legitima as penas, basicamente, na necessidade de prevenção de novos delitos e na necessidade de evitação da vingança privada. Estes dois pilares são fortemente atacados pelas críticas abolicionistas.

No aspecto de prevenção geral negativa, estudos sociológicos demonstram que as penas não possuem efeito dissuasório comprovado. A ameaça consubstanciada na pena não tem o poder de evitar que os conflitos eclodam no meio social. Ao contrário, a ameaça da pena faz com que as práticas criminosas se tornem cada vez mais sofisticadas e complexas.

O efeito dissuasório nunca se comprovou. Ao contrário, é clara a sinalização de que a aparição de crimes não se relaciona com o número de pessoas punidas ou com a intensidade das penas impostas, bastando pensar um pouco para verificar, em relação a nós mesmos, que não é a ameaça da pena que conduz à abstenção da prática de crimes, como não é nenhuma espécie de ameaça o que nos faz deixar ou não de realizar qualquer comportamento que apareça, para nós ou para terceiros, como um comportamento negativo.[4]

Já sob o foco da prevenção geral positiva, o indivíduo é concebido como bode expiatório a serviço dos valores do Estado (ou, se preferirmos, sob uma ótica foucaultiana, a serviço dos valores de determinada classe que, naquele dado contexto histórico, detém o poder e, por isso, dita as regras do jogo). Ao ser submetido à pena, o condenado é utilizado pela máquina estatal para reafirmar os valores dela. O condenado é despido de sua condição de sujeito e transforma-se em objeto de suposta agregação social e fomento de uma fidelidade ao Direito.

Os abolicionistas desconstroem o argumento garantista, que prega que a pena se legitima enquanto evitadora da vingança privada. Para os abolicionistas, o direito penal é o próprio institucionalizador da vingança. Segundo Passetti, ao transformar o conflito entre autor e vítima em um conflito impessoal de toda a sociedade, o direito penal legitima a vingança, naturalizando o castigo. O sistema fomenta o ressentimento popular e faz com que esse seja o combustível “que faz da vingança uma política pública”.[5]

A proposta abolicionista parte do pressuposto de que a resposta ao delito prescrinde de uma instância formal do Estado e do exercício de poder que advém do direito penal, podendo ser construída mediante mecanismos conciliatórios, entre os indivíduos envolvidos.

Com frequência, as pessoas envolvidas nos debates sobre a justiça criminal estão tão “possuídas” pelos mitos e imagens que os permeiam que não se dão conta de que a ausência de reação da justiça criminal a um fato criminalizável não significa que este não seja enfrentado (quid non est in actu est in mundo). Se houver uma pessoa diretamente envolvida, para a qual um fato criminalizável é problemático, esta pessoa sempre terá o que fazer com aquele fato, de um modo ou de outro, podendo, assim, pedir ajuda a profissionais ou a não-profissionais.”[6]

Observe-se, portanto, que a proposta de “penas alternativas” de nenhuma forma atende aos anseios abolicionistas, por tratar-se, ainda, de uma resposta de instâncias formais e institucionalizadas do Estado. Neste aspecto, Maria Lúcia Karam aponta as penas alternativas são concebidas “não como reais substitutivos da prisão, no sentido de uma amenização de seus sofrimentos, de uma humanização da pena, mas sim como um meio paralelo de ampliação do poder do Estado de punir.”[7]

A proposta abolicionista, via de regra, passa pela conciliação na solução dos conflitos, de maneira a eliminar instâncias de autoridade e de imposição e, assim, horizontalizar o diálogo entre as partes. Neste contexto, as partes, em especial a vítima, assume papel de protagonista, ao invés de mera testemunha do fato ocorrido. “O Estado permanece, mas funcionando como indenizador das partes, não lhe cabendo o papel de administrar as respostas-percurso, ser guardião dos bens ou pessoas, ditar as regras da prevenção geral.”[8]

A conciliação para o abolicionista penal se volta para a imediata situação-problema, condição singular que envolve tragicamente pessoas num instante de suas existências em que foram atacadas, imoladas, violadas, mortas. Efeito do imprevisível, do intempestivo, da desrazão, do ressentimento, do desejo, a situação-problema abarca desde vítima e algoz aos envolvidos no acontecimento.

O abolicionismo penal não é só uma utopia que constata exclusões e discriminações; é uma prática de liberdade que não desconhece o poder dos juízes, promotores, advogados, técnicos das humanidades, pais, educadores, administradores e carcereiros. Diante do drama gerado por furtos, roubos, sequestros, homicídios, violentações e acidentes jamais apaziguados pelo direito penal, remete aos riscos da tragédia ao propor a conciliação para interceptar práticas punitivas.[9]

Inegavelmente, o abolicionismo peca por seu alto grau de utopia e regressão. Ao criticar o sistema penal, o faz em bloco, sem considerar as diferenças marcantes entre sistemas autoritários e sistemas liberais, e tampouco os variados graus de garantismo possíveis de serem verificados empiricamente nas diferentes comunidades jurídicas.

De fato, por mais prática e implementável que queira se fazer parecer, o abolicionismo parte de premissas e modelos utópicos. Muitos de seus adeptos adotam uma concepção jusnaturalista, conferindo a uma moral superior a função de regular a sociedade.

Moralismo utopista e nostalgia regressiva por modelos arcaicos e “tradicionais” de comunidades sem direito, constituem, por derradeiro, também os traços característicos do atual abolicionismo penal, pouco original em relação à tradição anárquica e holística. Abolicionistas como Louk Hulsman, Henry Bianchi e Nils Christie repropõem as mesmas teses do abolicionismo anárquico do século XIX, oscilando – na configuração das alternativas ao direito penal, que, por si só constitui uma técnica de regulamentação e de delimitação da violência punitiva – entre improváveis projetos de microcosmos sociais fundados na solidariedade e na irmandade, vagos objetivos de “reapropriação social” dos conflitos entre ofensores e vítimas e métodos primitivos de composição patrimonial das ofensas, com a agravante, se comparado ao abolicionismo clássico, de possuir uma maior incoerência entre pars destruens e pars construens do projeto sustentado e de uma maior e imperdoável desatenção às tristes experiências, inclusive contemporâneas, de crise e desatualização do direito penal.[0]

Mas, talvez, o “calcanhar de Aquiles” da concepção abolicionista resida justamente em um de seus principais argumentos. Como vimos, os abolicionistas deslegitimam as penas, e em última instância a própria intervenção estatal nos conflitos, por conceberem o Estado enquanto grupo dominante de indivíduos, que detém o poder em determinado contexto histórico e que, por isso, conseguiu emergir e institucionalizar-se. A imposição da pena seria, assim, a resposta do domínio de um grupo sobre os demais, o exercício de poder de alguns indivíduos sobre outros.

No entanto, a eventual abolição das penas jamais seria suficiente para eliminar da sociedade este componente de poder, que é um fenômeno advindo de práticas que prescindem da instituição estatal. Trata-se de ilusão, a nosso ver, supor que a solução dos conflitos por meio da conciliação informal e horizontalizada entre as partes seja necessariamente despida de jogos de poder e da prevalência dos interesses de grupos dominantes. As sociedades complexas não podem ser entendidas simplesmente como um modelo de sociedade primitiva com maior número de componentes. As relações, as dinâmicas, os valores e os interesses das sociedades capitalistas ocidentais contemporâneas em nada ou em muito pouco se assemelham aos das comunidades primitivas tantas vezes exaltadas pelos abolicionistas como modelos de sociedade sem Estado.

Sobre a autora
Sheyla Cristina da Silva Starling

Delegada da Polícia Civil de Minas Gerais. Professora da Faculdade Batista de Minas Gerais. Mestranda em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STARLING, Sheyla Cristina Silva. O garantismo e o abolicionismo penal: características e conflitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3150, 15 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21093. Acesso em: 5 nov. 2024.

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