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Responsabilidade civil do Estado e de particulares em acidentes de trânsito provocados por animais.

Análise da doutrina da responsabilidade civil e apanhado da jurisprudência nacional

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Agenda 30/03/2012 às 08:17

3. A responsabilidade civil do Estado

Assim como o particular, o Poder Público também incorre na responsabilidade civil, quando de seus atos resulta dano ao administrado.

Nem sempre foi assim. Até a metade do Sec. XIX, a idéia prevalecente no mundo ocidental era a de que o Estado não poderia ser responsabilizado frente ao cidadão. A idéia de poder divino do rei e a concentração de poderes nas mãos deste (“L'État c'est moi”) incompatibilizava-se com a questão da responsabilidade civil estatal. Como leciona CARVALHO FILHO (2011, p. 502):

(...) A solução era muito rigorosa para com os particulares em geral, mas obedecia às reais condições políticas da época (...), de modo que a doutrina de sua irresponsabilidade constituía mero corolário da figuração política de afastamento e da equivocada isenção que o Poder Público assumia àquela época (...).96

Sucessivamente a essa idéia de Estado irresponsável, surgiu a noção de Estado de direito, segundo a qual ao Estado se deve imputar, do mesmo modo que ao administrado, pessoa física ou jurídica, os direitos e deveres ordinários. A tese de que o Estado era um ente todo-poderoso, intangível, particularidade decorrente diretamente da irresponsabilidade do monarca (“Le Roi ne peut mal faire” ou “The King can do no wrong”), não mais podia ser aceita. As pessoas jurídicas, como as físicas, têm a obrigação de ressarcir os prejuízos causados a terceiros. Sendo o Estado pessoa jurídica, com ele não deveria ser diferente. O Estado de direito surgiu para se impor à responsabilização civil. No dizer de J. J. CANOTILHO (apud DINIZ, op. cit., pp. 637-8):

(...) Conquista lenta, mas decisiva do Estado de Direito, a responsabilidade estadual é, ela mesma, instrumento de legalidade. É instrumento de legalidade, não apenas no sentido de assegurar a conformidade ao direito dos actos estaduais: a indenização por sacrifícios autoritariamente impostos cumpre uma outra função ineliminável no Estado de Direito Material – a realização da justiça material.

A partir daí, uma vez superada a tese da irresponsabilidade, a teoria da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana do Estado evoluiu, passo a passo, até chegar ao nível atual. Cada doutrinador, porém, explica essa evolução da tese da responsabilidade civil estatal de uma maneira, mais ou menos rápida, mais ou menos detalhada, com uma classificação própria. CARVALHO FILHO (op. cit., pp. 502-3), por exemplo, menciona, no correr de tal evolução, a teoria da responsabilidade com culpa, a teoria da culpa administrativa e a teoria da responsabilidade objetiva. Já Maria Helena DINIZ (op. cit., pp. 642-3) trata de culpa administrativa, teoria do acidente administrativo ou da falta impessoal do serviço público, e, finalmente, teoria do risco integral. DI PIETRO (2011, pp. 644-5), por sua vez, divide as teorias em civilistas e publicistas.

Sem embargo da autoridade de um e de outro autor, pode-se dizer que a etapa seguinte à tese da irresponsabilidade foi a teoria da bipartição dos atos de Estado, que dividiu os atos estatais em atos de império e de gestão, admitindo-se a responsabilidade civil do Estado quanto a estes últimos, posto que, quando de sua prática, o Poder Público se aproximaria ao particular. DI PIETRO (op. cit., p. 645) explicita a questão:

Essa distinção foi idealizada como meio de abrandar a teoria da irresponsabilidade do monarca por prejuízos causados a terceiros. Passou-se a admitir a responsabilidade civil quando decorrente de atos de gestão e a afastá-la nos prejuízos resultantes de atos de império. Distinguia-se a pessoa do Rei (insusceptível de errar – the king can do no wrong), que praticaria atos de império, da pessoa do Estado, que praticaria atos de gestão, através de seus prepostos (...).

Cuidava-se do que os outros autores chamam de teoria da responsabilidade com culpa, ou de culpa administrativa do preposto, e que a autora citada acima denomina de teoria da culpa civil. Em verdade, nada mais se trata do que a teoria subjetiva aplicável ao Estado, ainda que de uma maneira tímida.

A questão da responsabilidade extracontratual do Estado tomou grandes proporções, finalmente, com o trágico falecimento da menina francesa Agnès Blanco, em 1873, colhida por um trem do sistema ferroviário nacional francês. Seu pai moveu uma ação de reparação com lastro na suposta responsabilidade que teria o Estado acerca dos atos, quaisquer que fossem, de seus agentes. A partir de então, surgiram na França (verdadeira locomotiva jurídica no que concerne ao tema da responsabilidade civil, como já se pode notar), o que DI PIETRO chama de teorias publicistas, sendo a primeira delas a teoria da culpa do serviço, ou da culpa anônima do serviço, (ou, ainda: teoria da culpa administrativa, do acidente administrativo, ou da falta impessoal do serviço público), alargando-se sobremaneira a teoria subjetiva na responsabilidade civil do Estado. Ao se falar em culpa do serviço, e não mais do agente – por isso mesmo a sinonímia “culpa anônima” do serviço – sacramentava-se, definitivamente, a responsabilidade aquiliana do Estado, o que foi adotado pelo Código Civil Brasileiro de 1916 (art. 15).

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Entrementes, florescia a problemática inerente à adoção da culpa como pressuposto da responsabilidade: o lesado deveria comprovar processualmente a falta na prestação do serviço, embora não precisasse provar a culpa de um agente em particular.

A adesão da teoria objetiva para o Poder Público só surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição Federal de 1946, quando, em seu art. 194, afirmava: “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros”. E complementava o parágrafo único: “Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes”. A redação é muito parecida com a do texto magno atual, e, com ela, a doutrina passou a admitir a responsabilização civil do Estado na modalidade objetiva, como nova expressão da teoria do risco.

Comete-se, porém, a Hely Lopes Meirelles, grande administrativista da história jurídica nacional, a façanha de subdividir a teoria do risco aplicável ao Estado em teoria do risco integral e teoria do risco administrativo. Enquanto a primeira refuta qualquer excludente de responsabilidade, a segunda a admite, sendo esta a adotada pela atual Constituição Federal de 1988 (CF/88), em seu art. 37, §6º, verbis:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

A teoria do risco administrativo é, portanto, a manifestação da teoria do risco no âmbito público. Genericamente, nosso sistema constitucional adota, para o Estado, ou melhor, para as pessoas jurídicas de direito público – abrangidas as formas de autonomia político-administrativa decorrentes do modelo federativo atual (União, Estados-Membros e Municípios), as autarquias e as fundações públicas – a modalidade objetiva da responsabilidade civil, como de fato o faz desde a Constituição Federal de 1946, fundada na teoria do risco administrativo.

A redação do §6º do art. 37. constitucional guarda, porém, uma importantíssima particularidade. De sua leitura, denota-se que a norma se refere à responsabilidade civil do Estado pelos atos comissivos de seus agentes, isto é, pelos atos de que resulte um dano proveniente do agir estatal. Mas e se o dano resulta, não da ação, mas da omissão do Estado?

Sabe-se que a finalidade do Poder Público é atingir o bem comum, que se expressa nos direitos fundamentais à saúde e segurança públicas, educação, lazer, moradia, etc.. Se esse bem comum não é observado, conforme os ditames das normas programáticas que lhe impõe a Constituição, diz-se que o Estado se omite, torna-se inerte em suas finalidade institucionais, o que fere, de igual modo, ou maiormente, o texto constitucional.

Contudo, se admitida fosse a responsabilidade civil objetiva do Estado, no que concerne à omissão, impossibilitado ficaria o Poder Público de gerir a sociedade, tamanha seria a quantidade de ações de indenização a que responderia, por omissão. E, nesse contexto, pode-se imaginar toda a sociedade ajuizando ação de indenização civil pela falta do Estado em propiciar boas escolas; bons hospitais; previdência social de qualidade; segurança pública efetiva 24 horas por dia e que abarque todos os lugares; etc. Como se vê, se adotada fosse a teoria objetiva na omissão do Estado, a própria instituição, enquanto ente provedor do bem comum, na impossibilidade de atingir a infalibilidade – o agir estatal, além de economicamente limitado, dá-se por meio de agentes, seres humanos que são, sujeitos naturalmente ao erro – iria à falência financeira.

Partindo-se dessa análise, adere-se à corrente doutrinária defensora de que a responsabilidade do Estado por omissão não está contida no dispositivo constitucional (§6º do art. 37), sendo, portanto, subjetiva. Sobre isso, explana DI PIETRO (op. cit., pp. 649-655):

No dispositivo constitucional estão compreendidas duas regras: a da responsabilidade objetiva do Estado e a da responsabilidade subjetiva do agente público. (...) Existe controvérsia a respeito da aplicação ou não do artigo 37, §6º, da Constituição às hipóteses de omissão do Poder Público, e a respeito da aplicabilidade, nesse caso, da teoria da responsabilidade objetiva. Segundo alguns, a norma é a mesma para a conduta e a omissão do Poder Público (...). Para outros, a responsabilidade, no caso de omissão, é subjetiva, aplicando-se a teoria da culpa do serviço público ou da culpa anônima do serviço público (...) adotam a teoria da responsabilidade subjetiva em caso de omissão, José Cretella Júnior, Yussef Said Cahali, Álvaro Lazzarini, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Celso Antônio Bandeira de Mello. É a corrente a que também me filio.

A doutrinadora ainda expõe outro fundamento para a adoção da teoria subjetiva, nos casos de omissão estatal: o de que o dano, nestas situações, não é causado diretamente pelo agente, mas por terceiro ou pela força da natureza. Assim sendo, se não é o agente o causador direto do dano, mas outro fator, imputável a terceiro, porém em relação ao qual tenha o Estado dever de vigilância, há de se verificar se o Poder Público, nas circunstâncias do sinistro – e isto depende da análise de cada caso concreto – poderia ter evitado o resultado, se houvesse agido. Cuida-se do princípio da reserva do possível.

Percebe-se, diante do exposto, que a adoção da tese subjetiva é mais acertada para fundamentar a responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses de omissão do Poder Público. Se assim não fosse, aderindo-se à teoria objetiva, o fato de alguém vir a falecer num hospital público, ou o de o corpo de bombeiros não conseguir debelar um incêndio de grandes proporções, ou o de alguém ser atropelado por não ter visto o semáforo que sinalizava para a não-travessia da rua, poderia ser suficiente para, compondo os fundamentos de ação judicial indenizatória cível, atrair a procedência da causa em desfavor do Poder Público. Isto, do ponto de vista financeiro, levaria o Estado à bancarrota, impedindo sua própria continuidade. Eis porque a tese a ser adotada, de um ponto de vista mais ponderável, deve ser a subjetiva. Repisa-se, contudo, que há duas correntes doutrinárias, havendo cizânia também nos tribunais [1-2].

Atente-se, porém, que o ajuizamento da causa com lastro na omissão do Estado não torna, por si só, consumada ou incontroversa a ocorrência da omissão. O fato da omissão é matéria de mérito. A suposta omissão será investigada pelo juiz, na instrução processual. E a omissão, uma vez verificada, configurará a própria culpa do Estado. Pode-se, assim, perguntar: se ao administrado, nesta hipótese, bem como em qualquer outra em que se discuta a conduta omissiva do Poder Público, compete provar-lhe a culpa, ou seja, a faulte do serviço, não seria isto regressar à antiga e injusta sistemática de se exigir do particular que demonstre a culpa de quem, por presunção, já a tem? Tal indagação, não se deve esquecer, fez surgir a teoria objetiva nas hipóteses de acidentes de trabalho (bem como nos de fato do animal e coisa), quando se passou a inexigir do hipossuficiente a prova da culpa do empregador, com vistas ao alcance da responsabilização deste, como medida de justiça.

Para superar esta questão, a doutrina que admite a tese subjetiva nos atos de omissão do Poder Público adota a idéia de culpa presumida. Em verdade, não compete ao particular provar, de início, a culpa do Estado, mas a este, isto sim, demonstrar que fez o possível ou agiu regularmente para impedir o resultado. Em não o fazendo, fica configurada a omissão, que teria restado, assim, provada, por presunção. Trata-se do mesmo raciocínio tomado por Joserrand e Saleilles na idealização da teoria do risco: refutar a obrigatoriedade da prova cabal de culpa, de difícil configuração, por parte do mais fraco da relação jurídica, substituindo-a pela idéia da culpa presumida, sem, no entanto, chegar-se à tese objetiva da responsabilidade.

A idéia da culpa presumida do Estado, nas hipóteses de omissão, foi desenvolvida por Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, e não parece abalar a teoria subjetiva, eis que remanesce a noção de culpa, pilar da teoria, alinhavando-se a idéia da presunção com a tese adotada, de responsabilidade civil subjetiva. O que não se admite é falar em culpa presumida para fundamentar a teoria objetiva, se fosse esta a tese eleita para as hipóteses omissivas. Ou se adota a responsabilidade objetiva – e, neste caso, não se fala em culpa, ainda que presumida – ou a tese da responsabilidade subjetiva, cujo elemento primordial – a culpa – será considerado presumidamente presente, até prova em contrário pelo ente público, parte mais forte da relação processual. Aceita-se, para a responsabilização civil estatal por omissão, a idéia da culpa in vigilando, sobre a qual explana BANDEIRA DE MELLO (2001, p. 887):

(...) Tal presunção, entretanto, não elide o caráter subjetivo desta responsabilidade, pois, se o Poder Público demonstrar que se comportou com diligência, perícia e prudência – antítese da culpa -, estará isento da obrigação de indenizar, o que jamais ocorreria se fora objetiva a responsabilidade (...).

Pelo exposto, no que concerne a acidentes de trânsito causados por animais sem dono, por exemplo, caberia ao Estado, em tese, a prova de que agiu diligentemente no sentido de evitar a presença do animal na pista. Nesse sentido, a doutrina de DI PIETRO (op. cit., p. 656):

(...) Acolhemos a lição daqueles que aceitam a tese da responsabilidade subjetiva nos casos de omissão do Poder Público. Com Celso Antônio Bandeira de Mello, entendemos que, nessa hipótese, existe uma presunção de culpa do Poder Público. O lesado não precisa fazer a prova de que existiu a culpa ou dolo. Ao Estado é que cabe demonstrar que agiu com diligência, que utilizou os meios adequados e disponíveis e que, se não agiu, é porque a sua atuação estaria acima do quer seria razoável exigir; se fizer essa demonstração, não incidirá a responsabilidade.

Sobre o autor
Alexandre Herculano Verçosa

Servidor Público Federal, integrante dos quadros do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª. Região. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela Assembléia Legislativa do Piauí. Ex-Assessor da Presidência do TRT22. Ex-Diretor de Vara do Trabalho. Ex-Secretário Geral Judiciário do Tribunal (biênio 2011-2). Ex-Assistente de Gabinete de Desembargador Federal do Trabalho. Atualmente Assistente de Juiz Federal do Trabalho Titular de Vara do Trabalho. Ex-Professor de Cursos Preparatórios para Concurso Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERÇOSA, Alexandre Herculano. Responsabilidade civil do Estado e de particulares em acidentes de trânsito provocados por animais.: Análise da doutrina da responsabilidade civil e apanhado da jurisprudência nacional . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3194, 30 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21387. Acesso em: 22 dez. 2024.

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