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Responsabilidade civil do Estado e de particulares em acidentes de trânsito provocados por animais.

Análise da doutrina da responsabilidade civil e apanhado da jurisprudência nacional

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30/03/2012 às 08:17
Leia nesta página:

4. A responsabilidade civil do Estado e de particulares frente a acidentes de trânsito causados por animais

O sinistro de trânsito pode ocorrer numa via pública de livre passagem ou numa rodovia pedagiada; pode ser causado por um animal pertencente a particular ou por animal silvestre ou sem dono; pode acontecer numa rua da cidade ou numa grande estrada federal; etc. Essas diferentes circunstâncias são aptas a tornar diverso o pedido/causa de pedir da ação, bem como os próprios fundamentos da decisão de mérito. Por isto, a gama de casos concretos podem ser agrupadas em três hipóteses: a) a dos acidentes de trânsito causados por animais pertencentes a particulares; b) a dos acidentes causados por animais sem dono; c) a dos sinistros ocorridos em vias administradas por concessionárias de serviço público.

4.1.  Acidentes de trânsito causados por animais pertencentes a particulares

Quanto a este tipo de acidente, surge a responsabilidade civil pelo fato do animal, de natureza objetiva, na forma do art. 936 do CCB/2002, cuja redação transcreve-se novamente: “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”. Essa responsabilidade pelo fato do animal independe de culpa, e compreende danos de qualquer natureza (materiais, morais, estéticos, etc.). Portanto, o dono ou detentor do animal – denominado genericamente de guardião – é quem responderá pelos danos causados a terceiros, incluindo as hipóteses de acidentes de trânsito provocados pelo bicho.

Há farta jurisprudência nos juizados especiais cíveis e nos tribunais de justiça da Justiça Comum dos Estados sobre a questão. Leia-se o seguinte julgado, proveniente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, divulgado nacionalmente em vários sites jurídicos, na época:

A Câmara Especial Regional de Chapecó, por votação unânime, manteve sentença da Comarca de Concórdia que condenou Variste Consuelo Vivan ao pagamento de indenização no valor de R$ 3 mil em favor de Givanildo Pereira, por conta de um acidente de trânsito provocado por cachorro sob sua responsabilidade. Segundo os autos, Givanildo transitava com sua moto (...) quando abruptamente teve a frente cortada pelo cachorro pertencente a Variste Consuelo. Houve a colisão - que provocou inclusive a morte do animal, com o motociclista amargando prejuízos materiais em seu veículo e um período de inatividade no trabalho de quatro meses. (...) Ainda que Variste tenha alegado não ser proprietário do animal, ficou patente nos autos ser ele o detentor do cão. Para os magistrados, ser dono ou detentor do animal, para fins de responsabilidade civil, se equivalem.[3]

Trata-se de acidente de trânsito provocado por um cão e que terminou por causar danos ao veículo e ao próprio condutor, que permaneceu por alguns meses sem poder trabalhar. Observe-se que o guardião do animal foi condenado, não sendo considerada, acertadamente, a tese da defesa de que não seria ele o dono do animal, posto que, para o Código Civil, isto não interessa. A responsabilidade civil pelo fato do animal é objetiva, independentemente de culpa, e abrange o guardião, seja ele dono ou pessoa sob os cuidados de quem está o animal

Relembre-se que a responsabilidade objetiva só pode ser elidida por excludente de responsabilidade, a exemplo da força maior, caso fortuito ou culpa exclusiva da vítima, bem como pode ser minorada pela prova da culpa concorrente da vítima. Foi o que tentou demonstrar, sem sucesso, a requerida em ação de indenização semelhante à anterior, também compreendendo acidente de trânsito provocado por um cão, em trâmite no Tribunal de Justiça de Mato Grosso:

Há presunção de culpa à proprietária de um cão que, solto na rua, provocou acidente de trânsito, de forma a causar lesões físicas e morais ao condutor de uma moto no município de Rondonópolis (218 km de Cuiabá). (...) Conforme relato da única testemunha do acidente, a dona do animal abriu o portão da residência para apanhar o jornal, ocasião em que o cão escapou. Neste instante o condutor da moto trafegava pela rua e, ao tentar desviar do animal, perdeu o controle do veículo e caiu, o que lhe causou graves ferimentos. (...) para esses casos, a legislação prevê a responsabilidade do dono ou detentor do animal, no artigo 936 do Código Civil, que diz que o dono ou detentor do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior. (...) a culpa da proprietária do cão é presumida, ante a ausência do dever de guarda e vigilância do animal (...).[4]

Há uma atecnia jurídica na decisão, à qual já se referiu no presente estudo: a de se utilizar indistintamente a terminologia “culpa presumida”. O órgão julgador reconheceu a responsabilidade objetiva pelo fato do animal, justificando, contudo, a incidência do art. 936 do código com o emprego da expressão “a culpa da proprietária do cão é presumida”. Não é de rigor jurídico sequer a menção ao elemento da culpa, como já visto, porque na responsabilidade objetiva não se cogita desta. Trata-se de terminologia ultrapassada, pelo menos à luz do Código Civil de 2002.

Animais maiores eventualmente podem causar acidentes de proporções mais grandiosas, como se verifica nas estradas, em que é comum a presença de semoventes do meio rurícola, como caprinos e equinos. Animais de tal porte causam danos também em automóveis e caminhões – via de regra, veículos maiores e mais caros, e que conduzem mais pessoas – o que, em tese, agrava o resultado danoso, mormente quando se considera a velocidade com que se trafega numa rodovia; deveras maior do que no interior da cidade.

Nesse sentido, exemplo muito comum é a travessia do gado pelo vaqueiro, que dificilmente sinaliza a pista de rolamento. A seguir, colaciona-se decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, sobre o fato:

Ao realizar a travessia de gado em rodovia movimentada, o condutor dos animais deve tomar as cautelas necessárias para evitar acidentes, sinalizando ambos os sentidos da pista a alguns metros do local, sob pena de ser responsabilizado por acidente envolvendo veiculo que, dirigindo em velocidade compatível com o local, venha a colidir com seus animais (...).[5]

Noutras vezes, o gado é deixado solto na relva, e termina por chegar ao acostamento da via. Fato muito comum, inclusive, observado por quem costuma viajar à noite, é a visualização do gado deitado na pista de rolamento, atraído pelo calor do asfalto. A seguinte decisão, oriunda do STJ, refere-se a sinistro causado pelo rebanho solto na rodovia:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE VEICULO. ANIMAIS SOBRE A PISTA. RECONHECIDA A CULPA DO DONO DOS ANIMAIS. NEGLIGENCIANDO NA SUA GUARDA, DESCABE REAPRECIAR OS FATOS NO RECURSO ESPECIAL. (...) O autor provou a culpa do réu, desincumbindo-se, assim, do ônus que lhe impõe o artigo 333, inciso I, do CPC (...).[6]

Nesta última decisão, o tribunal mencionou o elemento da culpa no decisum, mas aqui não há imprecisão, visto que a causa foi julgada em 1995; à luz, ainda, do código de 1916, em que a aplicação da responsabilidade civil pelo fato do animal era subjetiva com culpa presumida. Hoje, a responsabilidade do particular pelo fato do animal é indiscutivelmente objetiva.

Pode-se tecer a seguinte indagação, que poucos livros trazem: ainda que identificado o guardião do animal, poderia a vítima direcionar a demanda também contra o Poder Público, ou apenas contra este, por se tratar de sinistro ocorrido em via publica?

Não se encontrou doutrina que enfrente com segurança o assunto. Entrementes, se se entender pela adoção da teoria subjetiva do Estado, pela suposta omissão em retirar o animal da via, as duas espécies diversas de responsabilidade civil (objetiva do particular e subjetiva do Poder Publico) haveriam de se excluir, uma à outra. É que a responsabilidade do particular pelo fato do animal, mais ampla, suplanta a que teria o Estado, em tese, pela omissão. Afinal, caberia ação de regresso deste contra aquele, encontrando a responsabilidade civil, de qualquer forma, seu destinatário final. Ademais, processualmente, não seria interessante à vítima. A uma, porque, do ponto de vista processual, é mais dificultoso exigir a reparação daquele contra quem se deverá provar a culpa. A duas, porque a responsabilidade estatal omissiva encontra-se modulada pelo princípio da reserva do possível, como já dito, o que também faria atrair uma análise muito mais acurada dos fatos.

Cuidando-se, porém, de sinistro ocorrido em vias públicas sujeitas à administração de uma concessionária, é possível que a ação seja movida contra o particular, dono do animal, e contra a administradora da rodovia. A jurisprudência tem admitido, nestes casos, a condenação do particular, da concessionária do serviço público, ou de ambos, como se comentará adiante.

4.2.  Acidentes de trânsito causados por animais sem dono

Cuidando-se de animal sem dono, não há que se falar, à evidência, em responsabilidade civil com lastro no art. 936 do CCB/2002. Resta saber se, na hipótese, é possível exigir a reparação do Poder Público, e, se positiva a resposta, sob que fundamento.

Há um entendimento geral no sentido de que ações com essa causa de pedir devem se fundamentar na omissão do Estado. E se assim o é, deve ou deveria o autor, ressalvando-se entendimento diverso, ajuizar a pretensão com pleito na responsabilidade subjetiva. Para a maior tendência, a omissão não é alcançada – e se adere à corrente doutrinária e jurisprudencial que assim entende – pelo art. 37, §6º, constitucional. Sendo omissivo o ato, atraída estaria, em tese, a teoria subjetiva, devendo o interessado demonstrar a culpa do Estado, atentando para a matéria probatória.

É indiscutível o dever do Estado em propiciar segurança nas vias públicas. Tanto é assim que o Poder Público dos municípios geralmente mantém órgãos que efetuam trabalho de “carrocinha” (órgãos de controle de zoonoses, relativos à saúde pública), recolhendo cães e gatos das ruas. A Polícia Rodoviária Federal, além de veículos possantes para a fiscalização das rodovias, também possui em sua frota caminhões do tipo “boiadeiro”, para coleta de animais livres, como jegues e burros. Caprinos e suínos, outros bastante comuns nas estradas, geralmente pertencem a particulares, mas também são passíveis de recolhimento.

São vários os julgados do STJ sobre acidentes causados por animais sem dono, todos pela responsabilidade subjetiva por omissão:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ANIMAL NA PISTA. AUSÊNCIA DE FISCALIZAÇÃO E SINALIZAÇÃO. OMISSÃO DO ESTADO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA.  INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS (...).[7]

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. ACIDENTE DE TRÂNSITO EM RODOVIA FEDERAL. ANIMAL NA PISTA. LEGITIMIDADE DA UNIÃO E DO DNER. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. OMISSÃO. OCORRÊNCIA DE CULPA. (...). [8]

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. ANIMAL QUE SE ENCONTRAVA EM RODOVIA ESTADUAL. LEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. DEVER DE FISCALIZAÇÃO (...).[9]

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Observa-se que, em todos os julgados acima, proferidos na atualidade pelo intérprete máximo da legislação federal, foi reconhecida a responsabilidade civil do Estado, por omissão, com lastro na teoria subjetiva. Como se trata de corte extraordinária, que não reaprecia os aspectos probatórios da causa, seus julgados são verdadeiras referências, no que concerne ao pano de fundo (matéria jurídica), isto é, ao que se deva interpretar da lei.

Quanto ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, sua antiga composição, durante os anos 90, havia se dividido quanto à possibilidade de alcance do art. 37, §6º, da Constituição Federal às omissões do Estado. Atualmente, já não se faz tão fácil encontrar jurisprudência do STF sobre o tema – por contraditório que possa parecer, vez que a questão também possui patamar constitucional.

Há, porém, uma tendência da composição atual do STF em julgar que a questão de ser ou não subjetiva a responsabilidade do Estado, nos casos de omissão, é matéria de legislação infraconstitucional – o que leva à conclusão de que o tribunal estaria entendendo, majoritariamente, ser a omissão do Poder Público não atingida pelo art. 37, §6º, da CF/88. Ademais, para o STF, a questão demandaria exame de fatos e provas, que, como já se expôs, inviabiliza-se nas instâncias extraordinárias. Sobre isso, o seguinte julgado:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO, POR DANO CAUSADO POR TERCEIRO, EM RAZÃO DE NEGLIGÊNCIA CULPOSA DE AGENTE PÚBLICO: RECURSO EXTRAORDINÁRIO: DESCABIMENTO: QUESTÃO DE NATUREZA INFRACONSTITUCIONAL OU QUE DEMANDA REEXAME DE FATOS E PROVAS. Acertado, definitivamente, nas instâncias de mérito, a existência de omissão ou de negligência culposa do agente público, nas circunstâncias do caso e o nexo de causalidade entre a sua culpa e a ação do terceiro, a questão ou é de ser resolvida à luz do regime da responsabilidade subjetiva, de natureza infraconstitucional, ou demanda o reexame de toda a matéria de fato e das provas dos autos, inviáveis no extraordinário (...).[10]

Infelizmente, é comum que os tribunais, até pelo excesso de trabalho, prendam-se à letra das alegações das partes, deixando de analisar a matéria, no seu todo. Entende-se que o fato de mencionar a parte interessada, nas razões do recurso, unicamente a tese da responsabilidade subjetiva do Estado não impediria a apreciação, no julgado, da questão acerca da incidência ou não, nessa espécie de responsabilidade, do art. 37, §6º, da Constituição, considerada a matéria em tese. Noutro giro, se suscitasse a parte interessada a tese objetiva, em suas razões recursais, para ver a demanda apreciada pelo STF, correria o risco de ter seu recurso improvido, vez que o caso concreto seria de omissão, e não de ação estatal. A matéria de revestimento é probatória, mas o pano de fundo pertine à lei em tese, pelo que poderia o Supremo apreciá-lo. Erigir o tema da responsabilidade subjetiva não significa necessariamente pedir que o tribunal reaprecie a prova (da culpa). Tal proceder, porém, tem se repetido na jurisprudência daquele tribunal:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DANO EM VEÍCULO AUTOMOTOR EM DECORRÊNCIA DE PASSAGEM SOBRE BURACO EM VIA PÚBLICA. OMISSÃO DO ESTADO. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA. MATÉRIA DE FATO. SÚMULA 279 DO STF. I - Decisão monocrática que negou seguimento ao recurso extraordinário por entender que concluir de forma diversa do acórdão recorrido necessitaria de reexame de matéria de prova (...).[11]

Em pesquisa mais avançada, alcançando-se julgados menos atuais, verificou-se que a matéria em tese foi enfrentada no seguinte acórdão:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO CULPOSA NO PREVENIR DANOS CAUSADOS POR TERCEIROS À propriedade PRIVADA: INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. 1. Para afirmar, no caso, a responsabilidade do Estado não se fundou o acórdão recorrido na infração de um suposto dever genérico e universal de proteção da propriedade privada contra qualquer lesão decorrente da ação de terceiros: aí, sim, é que se teria afirmação de responsabilidade objetiva do Estado, que a doutrina corrente efetivamente entende não compreendida na hipótese normativa do art. 37, § 6º, da Constituição da República. 2. Partiu, ao contrário, o acórdão recorrido da identificação de uma situação concreta e peculiar, na qual - tendo criado risco real e iminente (...) - ao Estado se fizeram imputáveis as conseqüências da ocorrência do fato previsível, que não preveniu por omissão ou deficiência do aparelhamento administrativo. 3. Acertado, assim, como ficou, definitivamente, nas instâncias de mérito, a existência da omissão ou deficiência culposa do serviço policial do Estado nas circunstâncias do caso - agravadas pela criação do risco, também imputável à administração -, e também que a sua culpa foi condição sine qua da ação de terceiros - causa imediata dos danos -, a opção por uma das correntes da disceptação doutrinária acerca da regência da hipótese será irrelevante para a decisão da causa. 4. Se se entende - na linha da doutrina dominante -, que a questão é de ser resolvida conforme o regime legal da responsabilidade subjetiva (C.Civ. art. 15), a matéria é infraconstitucional, insusceptível de reexame no recurso extraordinário (...).[12]

Apesar de proferido pouco antes ainda da vigência do novo código civil, o voto do outrora Procurador-Geral da República e Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, enfrenta a matéria de forma clara. Observe-se que primeiro foi analisada a questão de estar ou não a tese recursal (da responsabilidade subjetiva por omissão estatal) abrangida pelo art. 37, §6º, da CF/88. No acórdão, o Tribunal reconhece a falta de alcance deste dispositivo à espécie, concluindo que a responsabilidade civil do Estado, em se tratando de omissão, é subjetiva. Via de consequencia, não incidindo o art. 37, §6º nem havendo na Constituição Federal outro dispositivo que regulamente a questão, entendeu-se pela infraconstitucionalidade da matéria. Ademais, se é subjetiva a responsabilidade, imprescinde-se da prova de culpa, cuja análise (fatos e provas) se faz inviável em sede extraordinária. Todos os aspectos foram, portanto, analisados, para se chegar à ilação de impossibilidade de exame de fatos e provas, o que não fica claro nos julgados atuais do excelso pretório.

Dentre as instâncias ordinárias, entendeu pela tese subjetiva, na responsabilidade civil estatal pelos acidentes de trânsito causados por animais livres, a Justiça Federal da 1ª Região, no seguinte julgado:

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE EM ESTRADA FEDERAL. ANIMAL NA PISTA. OMISSÃO DO DNER QUANTO À MANUTENÇÃO DA RODOVIA. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA. AUSÊNCIA DE PROVA DE CULPA EXCLUSIVA OU CONCORRENTE DA VÍTIMA. DANOS MATERIAIS DEVIDOS (...).[13]

Já as Justiças Federais da 2ª e 5ª Regiões, nos casos de acidentes de trânsito causados por animais livres, entendem pela responsabilidade civil objetiva do Estado, mesmo na omissão, com lastro no art. 37, §6, constitucional:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANO MATERIAL. ACIDENTE DE VEÍCULO. RODOVIA FEDERAL. ANIMAL MORTO NA PISTA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. (...) em hipóteses de colisão de veículos com animal na pista, a responsabilidade afigura-se objetiva, acompanhando o espírito finalístico da regra inscrita no art. 37, § 6º, da Constituição Política de 1988 (...).[14]

RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. ATROPELAMENTO DE ANIMAL EM RODOVIA FEDERAL. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO (POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL) E DO DNIT. NEXO DE CAUSALIDADE. PROVA. DANOS MATERIAIS. DIREITO À INDENIZAÇÃO. (...) A orientação que vem prevalecendo nas Turmas da Suprema Corte é no sentido de que subsiste a responsabilidade objetiva em se tratando de conduta omissiva, devendo esta ser apurada pela existência de um dever jurídico, inadmitindo-se a designada omissão genérica (...).[15]

Curiosamente, há quem entenda tratar-se a presença de um animal na pista de rolamento de força maior ou caso fortuito, para excluir a responsabilidade estatal, em caso de acidente de trânsito. Nesse sentido, o seguinte julgado, oriundo da Justiça Federal da 4ª Região:

SEGURO. AÇÃO DE REGRESSO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. ANIMAL NA PISTA (CASO FORTUITO). RESPONSABILIDADE CIVIL (INEXISTÊNCIA). FATO IMPREVISÍVEL. RESSARCIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A responsabilidade civil da Administração por omissão é subjetiva, impondo-se a comprovação da culpa (...). 2. Seja na hipótese de responsabilização por ação, seja por omissão, podem incidir eventos externos à pretendida relação causal que se mostrariam verdadeiras causas, quebrando o nexo de causalidade. (...) Deve-se reconhecer, portanto, que a presença repentina de um animal na rodovia trata-se de um caso fortuito, imprevisível e na prática absolutamente inevitável (...).[16]

A decisão, na completa oposição à evolução da teoria, coloca o Estado como ente intangível, irresponsável. Caso fortuito e força maior são fatos imprevistos e imprevisíveis, que, uma vez que surgem, tornam o evento inevitável. Partindo-se do próprio conceito desses institutos, é inadmissível entender que a presença de um animal na pista de rodagem de uma auto-estrada é fato imprevisível, a ponto de qualificá-lo como fortuito. Tanto não o é que o Poder Público mantém aparato para retirar esses animais da pista, como já dito.

4.3.  Sinistros causados por animais em rodovias administradas por concessionárias

Nos casos de acidentes veiculares causados por animais em vias públicas sujeitas à concessão, o aspecto jurídico da matéria muda de figuração. É que, em se tratando de rodovias administradas por particulares, em que os condutores, além da contraprestação tributária que já providenciam ao Estado, têm que pagar a tarifa (ou taxa, como queira) ao particular concessionário – o chamado pedágio –, o que haverá, em verdade, é a prestação de um serviço, nos termos do Código de Defesa do Consumidor. Ora, como se sabe, a relação de consumo atrai a responsabilidade objetiva daquele que presta o serviço (art. 14 do CDC).

Pela responsabilidade civil objetiva do concessionário, vejam-se os seguintes julgados; o primeiro deles, da lavra do falecido ministro do STF, Carlos Alberto Menezes Direito, à época no STJ :

CONCESSIONÁRIA DE RODOVIA. ACIDENTE COM VEÍCULO EM RAZÃO DE ANIMAL MORTO NA PISTA. RELAÇÃO DE CONSUMO. As concessionárias de serviços rodoviários, nas suas relações com os usuários da estrada, estão subordinadas ao Código de Defesa do Consumidor, pela própria natureza do serviço. (...) Entre o usuário da rodovia e a concessionária, há mesmo uma relação de consumo, com o que é de ser aplicado o art. 101, do Código de Defesa do Consumidor (...).[17]

O STJ, no julgado acima, afirma a responsabilidade objetiva do prestador do serviço, com força no Código de Defesa do Consumidor – CDC. Melhor seria que tivesse mencionado o art. 14 em suas razões de decidir, em lugar da menção ao art. 101, que, em verdade, trata apenas de aspectos acessórios à responsabilidade civil, como a fixação do foro e a possibilidade de denunciação da lide a eventual seguradora contratada pelo réu.

Neste outro, ainda do STJ, intérprete maior da legislação ordinária federal, frise-se, o tribunal reafirma o entendimento de que a concessionária responde objetivamente em caso de sinistro ocorrido na rodovia por ela administrada, nos termos do CDC:

RECURSO ESPECIAL. ACIDENTE EM ESTRADA. ANIMAL NA PISTA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTES. (...) as concessionárias de serviços rodoviários, nas suas relações com os usuários, estão subordinadas à legislação consumerista. Portanto, respondem, objetivamente, por qualquer defeito na prestação do serviço, (...) inclusive, pelos acidentes provocados pela presença de animais na pista (...).[18]

Há ainda este outro caso concreto, julgado pelo TJ/SP, em que a vítima conseguiu identificar o particular proprietário do animal, e moveu sua ação indenizatória contra ambos: particular guardião do animal e particular concessionário do serviço. Ambos foram condenados, em solidariedade:

ACIDENTE DE VEÍCULO. ATROPELAMENTO DE ANIMAL EM RODOVIA. (...) RESPONSABILIDADE DO DONO DO ANIMAL (...) E DA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO AUTOVIAS. (...) RESPONSABILIDADE DOS CO-APELANTES OBJETIVAS E CONCORRENTES. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA (...).[19]

Como o julgado acima, há muitos outros, os quais, por economia de espaço, furtamo-nos de colacionar. Entrementes, pela análise de todos eles, a vítima restará sempre albergada pela responsabilidade objetiva da concessionária da via, com lastro no CDC, e esta pela responsabilidade objetiva do particular, com apoio no art. 936 civil.

Há, porém, interpretações injustificáveis, como a observada na decisão proferida pelo STF, de relatoria do ex-ministro Nelson Jobim, que julgou pela ilegitimidade passiva do Poder Público, atribuindo a obrigação de reparar o dano apenas ao dono do animal:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. INDENIZAÇÃO. ACIDENTE DE TRÂNSITO. (...) O acórdão recorrido concluiu que a DERSA [concessionária de serviço público], por não ter poder de polícia, descabia guardar animais pertencentes a terceiros [sic]. Transcrevo parte da doutrina de HELY LOPES MEIRELES [sic], citada no acórdão recorrido: “... o artigo 37, par. 6º, só atribuiu responsabilidade objetiva à administração pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causem a terceiros. Portanto, o legislador constituinte, [sic] só cobriu o risco administrativo da autuação [sic] ou inação dos servidores públicos; não responsabilizou objetivamente a administração por atos predatórios de terceiros...”. Ressalto, por último, que a culpa exclusiva da vítima não é a única excludente da responsabilidade. São excludentes o fato de terceiro, o caso fortuito e a força maior. Nego provimento ao agravo regimental, por improcedente.[20]

Demais das fraquezas com relação ao vernáculo (incluindo o nome do doutrinador, grafado erroneamente) e das atecnias jurídicas presentes no texto (o relator simultaneamente julgou o recurso improvido e “improcedente”), tecnicamente não haveria que se falar em fato de terceiro, que é o nomen iuris consagrado para as hipóteses do art. 932 do CCB/2002, que nada têm a ver com o caso. Pode-se falar em evento provocado unicamente por terceiro, que seria, portanto, aquele a ser responsabilizado, se não fosse, contudo, objetiva a responsabilidade. O entendimento esposado no acórdão inevitavelmente termina por retirar o alicerce que fundamenta a responsabilidade objetiva, que é a teoria do risco. O concessionário, responderia objetivamente porque estaria imerso no risco de prestar o serviço (art. 14, CDC).

Nesta outra recentíssima decisão, assaz curiosa, o juízo condenou a concessionária do serviço público na responsabilidade objetiva e na subjetiva:

ACIDENTE DE TRÂNSITO. ANIMAL NA PISTA LEGITIMIDADE PASSIVA DA CONCESSIONÁRIA E RESPONSABILIDADE CIVIL CARACTERIZADAS, JÁ QUE INCUMBE A ELA A FISCALIZAÇÃO E REMOÇÃO DO ANIMAL. (...) Bem reconhecida sua responsabilidade indenizatória, portanto. Não só no aspecto objetivo, como também no aspecto subjetivo, tendo em conta sua conduta culposa, decorrente da falta de fiscalização e remoção do animal na pista (...).[21]

Apreciando os casos desta forma, não há como o judicante errar a fundamentação, porque, por certo, ou a responsabilidade civil é de uma espécie, ou de outra.

Por fim, no seguinte julgado, também proferido recentemente, entendeu-se pela responsabilidade objetiva do Estado, com apoio no art. 37, §6º, independentemente de ser dele, diretamente, ou de um concessionário, a incumbência de fiscalizar a via:

ACIDENTE. RESPONSABILIDADE CIVIL. AUTARQUIA ADMINISTRADORA DE RODOVIA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA POR DANOS CAUSADOS POR COLISÃO DE VEÍCULO COM ANIMAL NA PISTA. CUIDADO E VIGILÂNCIA INSUFICIENTES. PRESTAÇÃO DO SERVIÇO DE FORMA INADEQUADA E INSEGURA. Mesmo quando o Estado utiliza terceiros (agentes) para a prestação de serviços públicos, ocorrendo danos, responde objetivamente, sem prejuízo da via de regresso (art. 37, §6° da CF) (...).[22]

Os fundamentos desse entendimento – quanto a ser o Estado responsável, ainda quando haja feito concessão a particulares no tocante à administração da via – são até compreensíveis.  O que se revela absolutamente atécnico é denominar de concessionária a autarquia responsável pela fiscalização da estrada. Quando o Estado presta serviço mediante autarquias, é o Poder Público quem está presente, e não terceiro em seu nome. O Poder Público atua, ele próprio, por seus órgãos (administração direta) ou entidades (administração indireta). Concessão, permissão, autorização, cessão; todas estas são formas de utilização de bem público por particulares, o que não seria o caso.

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Sobre o autor
Alexandre Herculano Verçosa

Secretário Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região (PI). Professor de cursos preparatórios para concurso público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERÇOSA, Alexandre Herculano. Responsabilidade civil do Estado e de particulares em acidentes de trânsito provocados por animais.: Análise da doutrina da responsabilidade civil e apanhado da jurisprudência nacional . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3194, 30 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21387. Acesso em: 5 nov. 2024.

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