5. Conclusão – a previsão legal do Código de Trânsito Brasileiro
Como visto, a grande e forte parte da doutrina, a maior parte da jurisprudência do STJ, grande parte da jurisprudência dos tribunais federais e tribunais de justiça, e, ao que parece, a maior parte da jurisprudência do STF, inclina-se no sentido de aceitar a tese subjetiva para a responsabilização civil do Estado, nos casos de omissão, a exemplo do que ocorre nos acidentes de trânsito causados por animais na pista, não sujeitos à propriedade de um particular identificado. Para estes doutrinadores e tribunais, a omissão não está abrangida pelo art. 37, §6º, da Constituição Federal.
Já para outra banda doutrinária, e para parte da jurisprudência nacional, incluindo alguns ministros do STF, a responsabilidade civil do Estado, nos acidentes veiculares causados por animais livres, em trânsito na via pública, bem como nas omissões em geral, é objetiva, com lastro no mesmo art. 37, §6º, constitucional.
Nenhuma dessas decisões está inteiramente correta.
Há uma determinação legal que pouquíssimos julgados expõem, e que sacramenta o tema, com exatidão. Trata-se do art. 1º da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro – CTB), verbis:
Art. 1º - O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.
(...)
§2º - O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito (...);
§3º - Os órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro.
É dever do Estado, por seus órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, propiciar um trânsito em condições seguras. Na forma da lei, estes mesmos órgãos e entidades responderão, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação ou omissão na execução dos programas ou serviços relacionados. Logo, claro está que a responsabilidade civil do Estado e de seus órgãos e entidades, neste tocante, é objetiva, porque prevista em lei desta maneira.
A rigor, as decisões relativas a ações de reparação civil em acidentes de trânsito motivados por animais, ajuizadas contra o Poder Público, deveriam estar, todas elas, fundamentadas no dispositivo (art. 1º, §3º) do Código Brasileiro de Trânsito. Contudo, não é isso que se observa, como se viu, ao longo do estudo. Cogita-se das mais variadas teses – umas mais, outras menos adequadas – quando a solução da questão, no mais das vezes, não é de difícil complexidade.
É importante deixar marcado algumas questões. A primeira delas, que se cerra fileira com a doutrina e a jurisprudência dominantes – e isto é assunto repisado – no sentido de que a responsabilidade estatal pelos atos omissivos é subjetiva, e que tais atos não estão albergados no art. 37, §6º, da Constituição Federal.
Esta, no entanto, é uma regra. Na ausência de previsão na legislação infraconstitucional, a responsabilidade do Estado, nas omissões, será subjetiva, porque se entende que o art. 37, §6º só se aplica aos atos comissivos, do mesmo modo que a responsabilidade do particular será sempre subjetiva, se o caso concreto não se enquadrar em alguma das modalidades de responsabilidade objetiva previstas na lei.
Observe-se o seguinte julgado, tecnicamente adequado:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ANIMAL NA PISTA. RODOVIA ESTADUAL ADMINISTRADA PELO DEPARTAMENTO DE ESTRADAS DE RODAGEM DO ESTADO DE SÃO PAULO. (...) No caso de acidente com animal da pista, a Administração responde pela omissão em adotar as providências necessárias para impedir que animais circulem soltos nas rodovias, uma vez que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito de suas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito (Lei n. 9.503/97, art. 1º, §2º). Dentro desse âmbito de compreensão, a responsabilidade só é afastada se demonstrada a existência de causas excludentes da responsabilidade, tais como a culpa exclusiva da vítima ou ocorrência de caso fortuito ou força maior, hipóteses, no caso, não verificadas.[23]
Observe-se que não se está a cambiar a natureza do ato: deixar de remover um animal da pista de rolamento, bem como deixar de tapar um buraco de grandes proporções, são atos omissivos que põem em risco a segurança de trânsito. A espécie de responsabilidade civil do Estado, neste caso, é objetiva, porque assim está previsto em lei específica. Portanto, não julgam corretamente, segundo os preceitos esposados neste estudo, os tribunais que condenam o Estado na responsabilidade subjetiva, ou na responsabilidade objetiva genérica.
A questão ganha profundidade quando se trata de sinistro ocorrido na zona urbana, com animal pertencente a particular. Haveria de se aplicar o CTB, condenando o Estado objetivamente, em qualquer caso?
A resposta positiva seria uma primeira conclusão. Não foram encontradas decisões judiciais que enfrentassem o problema. Com efeito, todos os julgamentos de sinistros ocorridos dentro das ruas e avenidas da zona urbana, encontrados durante a pesquisa, foram proferidos em ações que foram direcionadas contra o dono do animal.
A nosso entender, a questão reside em identificar a quem compete o dever de vigilância, no dado caso concreto. É que, se justificarmos não ter havido, no “caso do jornal”, para citar como exemplo (vide item 4.1), a falta do serviço, estaremos incutindo na questão o elemento da culpa, que é inerente à teoria subjetiva.
Os aspectos históricos da responsabilidade civil deslindam o problema. A teoria do risco, que fundamenta as hipóteses de responsabilidade objetiva, historicamente, origina-se da noção do dever de vigilância. O guardião do animal é responsável objetivamente porque a ele incumbe o dever de vigilância sobre a coisa. Num caso como o que o Tribunal de Justiça de Mato Grosso analisou, em que o cão escapou à rua em fração de segundos, e, em igual intervalo de tempo, veio a causar um acidente, não seria razoável exigir do Estado dever de vigilância, pois o cão, instantes antes, estava confinado à residência do particular. E se não o seria, não haveria de incidir, naquela hipótese, o risco que, objetivamente, torná-lo-ia o responsável. O dever de vigilância é preexistente ao evento danoso.
Cuidando-se de res nullius, não há dúvidas de que o Estado há de ser responsabilizado, pois a ele é dado o dever de propiciar um trânsito seguro, seja na rodovia, seja na região urbana, sem mencionar que a remoção desses animais sem dono é política de promoção de saúde pública.
Ainda que a responsabilidade do Poder Público em acidentes de trânsito causados por animais seja objetiva, com lastro no CTB, cabe ao magistrado, com prudência, aplicar a razoabilidade, quando da análise de cada caso concreto.
REFERÊNCIAS
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[1]DI PIETRO, op. cit., pp. 656, faz apanhado de julgados controversos entre as duas turmas do STF, nos anos 90.
[2]O Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), é árduo defensor da tese objetiva para a responsabilidade civil do Estado, em qualquer hipótese, seja de ação ou de omissão. Nesse sentido, trecho de seu voto, condutor da tese vencedora nos autos do AgRSTA 223/PE, para citar decisum mais atual, publicado em 08/05/2008: “(...) situações configuradoras de falta de serviço podem acarretar a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, considerado o dever de prestação pelo Estado, a necessária existência de causa e efeito, ou seja, a omissão administrativa e o dano sofrido pela vítima, e que, no caso, estariam presentes todos os elementos que compõem a estrutura dessa responsabilidade (...)”. Sítio virtual do STF. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/ informativo/documento/informativo502>. Acesso em 20 dez. 2011.
[3] TJ/SC. AC 2008.027386-5. Relator Des. LÉDIO ROSA DE ANDRADE. DJ 16/03/2009.
[4] TJ/MT. AC 2009.44441. Relator Des. SEBASTIÃO DE MORAES FILHO. DJ 16/08/2010.
[5] TJ/MS. AC 744.754. Relator Des. ATAPOÃ DA COSTA FELIZ. DJ 30/06/2000.
[6] STJ. REsp. 59.611/BA. T4. Relator Min. RUY ROSADO DE AGUIAR. DJ 14/08/1995.
[7] STJ. REsp. 438.831/2002/0068815-1 RS. T2. Relator Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA. DJ 02/08/2006.
[8] STJ. REsp. 1.198.534/2010/0114221-6 RS. T2. Relatora Minª. ELIANA CALMON. DJ 20/08/2010.
[9] STJ. REsp. 1.173.310/2010/0002471-0 RJ. T2. Relatora Minª. ELIANA CALMON. DJ 24/03/2010.
[10] STF. AgR-RE 235.524/AC. T1. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ 20/08/2004.
[11] STF. AgR-RE 585.007/DF. T1. Relator Min. RICARDO LEWANDOWSKI. DJ 05/06/2009.
[12] STF. RE 237.561/RS. T1. Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. DJ 05/04/2002.
[13] TRF1. AC 7343/1998.35.00.007343/GO. T5. Relator Des. FAGUNDES DE DEUS. DJ 04/07/2008.
[14] TRF5. AC 324024/0003228-56.2002.4.05.84/RN. T4. Relator Des. MARCELO NAVARRO. DJ 17/07/2006.
[15] TRF2. ACReex. 2006.51.02.005267-4/RJ. T7. Relator Des. JOSÉ ANTÔNIO LISBOA NEIVA. DJ 26/11/2010.
[16] TRF4. 2006.70.00.017975-2/PR. Relatora Des.ª MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA. DJ 02/04/2009.
[17] STJ. REsp. 467.883/RJ. T3. Relator Des. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO. DJ 01/09/2003.
[18] STJ. REsp. 647.710/RJ. T3. Relator Des. CASTRO FILHO. DJ 30/06/2006.
[19] TJ/SP. AC 2003.1205853-6. Relator Des. PAULO RAZUK. DJulgto 10.02.2004.
[20] STF. AI 402.967/SP. T2. Relator Min. NELSON JOBIM. DJ 04.04.2003.
[21] TJ/SP. AC 9145043-97.2009.8.26.0000. Relator Des. FRANKLIN NOGUEIRA. DJ 04.10.2011
[22] TJ/SP. AC 0099404-20.2006.8.26.0000. Relator Des. LEONEL COSTA. DJ 30.06.2011.
[23] TJ/SP. AC 0164575-21.2006.8.26.0000. Relator Des. JOSÉ SANTANA. DJ 14.03.2011