SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A Anencefalia: conceito de anencefalia e expectativa de vida. 3 A gestação de fetos anencéfalo e o Código Penal de 1940. 4. A questão do início da vida. 5. dos direitos da gestante. 5.1. Direito à saúde. 5.2 Direito à liberdade e autonomia da vontade. 5.3. Direito à dignidade da pessoa humana e proibição da tortura. 6. Ponderação de direitos constitucionais. 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas.
RESUMO
O trabalho tem como problema central o estudo da ponderação entre os direitos da dignidade da pessoa humana, da proibição da tortura, da saúde e da autonomia e liberdade, a serem tutelados às gestantes de fetos anencéfalos, versus o direito ao nascimento do feto, para ao final concluir o que deve prevalecer.
Palavras-chave: feto anencéfalo, interrupção, gravidez, ponderação de direitos.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende demonstrar a possibilidade jurídica da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, partindo da premissa que sob a ótica da ponderação de direitos constitucionais, devem prevalecer os direitos à dignidade da pessoa humana, da proibição da tortura, da saúde e da autonomia e da liberdade, a serem conferidos às gestantes, em detrimento da manutenção do feto, sem expectativa de vida extra-uterina.
Ocorre que a despeito de pesquisas médicas comprovarem a impossibilidade de vida extra-uterina dos fetos com a citada anomalia, muitas mulheres vêm sendo obrigadas a manter por nove meses uma gravidez inútil, o que além de trazer sérios riscos às suas vidas, ainda causa um grande transtorno psicológico e mental.
Ressalte-se que atualmente a questão ainda será enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, pois pendente de apreciação a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), a qual pretende seja dada interpretação conforme a Constituição aos art. 124, 126, 128, incs. I e II do Código Penal, para afastar qualquer interpretação dos dispositivos como impeditivos da interrupção da gravidez.
O art. 128 do Código Penal não prevê de forma expressa a possibilidade de aborto nos casos de gravidez de feto anencéfalo, excluindo do crime de aborto apenas a interrupção da gravidez resultante de estupro ou que ofereça risco de vida à gestante.
Destarte, como médicos e demais profissionais de saúde têm receio de sofrerem as conseqüências penais de uma eventual interrupção da gravidez, as gestantes têm sido obrigadas a pedir autorização para a interrupção da gravidez.
Contudo, muitos juízes têm negado o pedido de abortamento da gestação, utilizando como fundamento, principalmente, a inexistência de permissão legal no Código Penal.
Assim, pretende-se demonstrar que à luz da Constituição é possível a interrupção da gravidez nesses casos, devendo-se garantir à gestante os direitos à dignidade da pessoa humana e proibição da tortura, à saúde, à autonomia e à liberdade, os quais não podem sucumbir apenas para se garantir o nascimento de um feto sem qualquer expectativa de sobrevida.
2 A ANENCEFALIA: Conceito de anencefalia e expectativa de vida
De uns tempos para cá a sociedade tem se deparado com o problema de diagnósticos precoces de gestações de fetos anencéfalos.
De acordo com a literatura médica, a anencefalia consiste “[...] na má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de forma que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do córtex encefálico.” (BERGMAN; KLIEGMAN; HAL, 2002, apud BARROSO, 2004, p. 04).
Patrícia Marques Freitas (2011, p. 70) explica que “a medicina descreve a anencefalia e a espinha bífida como defeito aberto do tubo neural (DATB), que resulta da falha de fechamento do tubo neural ocorrendo até o 26º/28º dias de vida embrionária”.
Segundo Diniz e Ribeiro (2003, p. 101), a anomalia conhecida vulgarmente como “ausência de cérebro” importa a inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central (responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação, afetividade e emotividade), restando apenas algumas funções inferiores, que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.
Marcela Barroso (2012, p. 39) informa que “a anencefalia implica principalmente a falta de desenvolvimento dos hemisférios cerebrais e do hipotálamo e do desenvolvimento incompleto da pituitária e a ausência completa ou parcial da abóbada craniana”. Ainda segundo a autora, “as estruturas faciais são alteradas e há anormalidade nas vértebras cervicais. Os olhos podem parecer grandes rasgos normais, mas o nervo ótico é inexistente ou, não alcança o cérebro”.
A mesma autora (2012, p. 40) revela que:
A anencefalia está frequentemente ligada a outras anomalias, além disso devido à completa ablação das áreas cruciais do tálamo, os anencéfalos carecem do substrato neurais que se requer para experimentar dor, da mesma forma que carecem de substrato neural indispensáveis para o raciocínio, comunicação, conhecimento e sensibilidade em geral.
Pesquisas médicas apontam que a anencefalia é fatal em 100% (cem por cento) dos casos, sendo que metade dos fetos morrem antes de nascer e a outra metade não sobrevive às primeiras 48 (quarenta e oito) horas e em nenhum caso a mais que dias. E ainda, a mãe corre risco de morte e a gravidez deve ser interrompida imediatamente (BRUM, 2004, p. 68).
3 A GESTAÇÃO DE FETOS ANENCÉFALO E O CÓDIGO PENAL DE 1940
A despeito das indicações médicas e da certeza da inexistência de vida extra-uterina, muitas mulheres vêm sendo obrigadas a carregar por nove meses um feto sem expectativa alguma de vida, o que além de lhes trazer sérios riscos às suas vidas, ainda causa grande transtorno psicológico e mental.
O Código Penal tipifica a figura do aborto, o qual pode ser entendido como “a cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião” (NUCCI, 2011, p. 652).
Dessa forma, a interrupção da gravidez nesses casos pode ser entendida, por alguns, como crime de aborto, já que o art. 128 do Código Penal não traz expressa como excludente de ilicitude tal hipótese. Vejamos:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Como se vê o art. 128 do Código Penal não prevê de forma expressa a possibilidade de aborto nos casos de gravidez de feto anencéfalo, dispondo como causas de excludente de punibilidade apenas o aborto em caso de gravidez resultante de estupro ou que ofereça risco de vida à gestante.
Apesar de os especialistas afirmarem que a gravidez de feto com anencefalia pode causar riscos à saúde da gestante, tal hipótese não está albergada pela excludente de ilicitude do inc. II do art. 128 do Código Penal. É claro que se trouxer risco de morte à mãe haverá albergado pelo dispositivo.
Neste contexto, os médicos e demais profissionais de saúde têm receio de sofrerem as conseqüências penais de uma eventual interrupção da gravidez.
Assim, muitas mulheres têm recorrido à justiça a fim de pedir autorização para interromper a gravidez, o que nem sempre tem sido resolvido favoravelmente, pois muitos juízes têm negado o direito ao abortamento, principalmente sob o fundamento de inexistência de permissão legal no Código Penal.
Equivocadas mostram-se tais decisões, pois existe um fundamento maior para o deferimento de tais pedidos que é a proteção e o cumprimento dos direitos constitucionais à dignidade da pessoa humana e proibição da tortura, à saúde e, à autonomia e à liberdade, que devem ser garantidos às gestantes nesses casos tão dolorosos.
Conforme restará demonstrado adiante, na ponderação entre os citados direitos da gestante e o direito a uma expectativa de breve vida do feto devem prevalecer os primeiros, aplicando-se o princípio da proporcionalidade. Ressalte-se que as normas-princípios, ao contrário das normas-regras, não são afastadas completamente, mas aplicadas em maior ou menor proporção em um dado caso concreto.
Neste contexto, a fim de por fim à angustia e à insegurança jurídica, foi proposta a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), a qual pretende seja dada interpretação conforme a Constituição aos art. 124, 126, 128, incs. I e II do Código Penal, para afastar qualquer interpretação dos dispositivos como impeditivos da interrupção da gravidez.
Defende o subscritor da petição Inicial da referida ação que a hipótese em questão não foi prevista pelo Código Penal no art. 128 porque em 1940 não existia tecnologia hábil a diagnosticar com precisão as anomalias fetais incompatíveis com a vida, devendo-se aplicar uma interpretação evolutiva do direito:
O Código Penal tipifica o aborto provocado pela gestante ou por terceiro nos arts. 124 a 126. Mas não pune o aborto dito necessário, se não há outro meio de salvar a vida da gestante, nem tampouco o aborto desejado pela mulher, em caso de gravidez resultante de estupro. Pois bem: a hipótese aqui em exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como excludente de punibilidade porque em 1940, quando editada sua Parte Especial, a tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Não é difícil demonstrar o ponto.
O Código Penal exclui a punibilidade do aborto no caso de gravidez decorrente de estupro. Na sua valoração de fatores como a potencialidade de vida do feto e o sofrimento da mãe, vítima de uma violência, o legislador fez uma ponderação moral e permitiu a cessação da gestação. No caso aqui estudado, a ponderação é mais simples e envolve escolha moral menos drástica: o imenso sofrimento da mãe, de um lado, e a ausência de potencialidade de vida, do outro lado. Parece claro que o Código Penal, havendo autorizado o mais, somente não fez referência ao menos porque não era possível vislumbrar esta possibilidade no momento em que foi elaborado.
Deve-se aplicar aqui, no entanto, uma interpretação evolutiva do Direito. A norma jurídica, uma vez posta em vigor, liberta-se da vontade subjetiva que a criou e passa a ter uma existência objetiva e autônoma. É isso que permite sua adaptação a novas situações, ainda que não antecipadas pelo legislador, mas compreendidas na ordem de valores que o inspirou e nas possibilidades e limites oferecidos pelo texto normativo. Afigura-se fora de dúvida que a antecipação de parto aqui defendida situa-se no âmbito lógico das excludentes de punibilidade criadas pelo Código, por ser muito menos grave do que a que vale para o aborto em caso de estupro.
(BARROSO, 2012b, p. 26-27) .
4 A QUESTÃO DO INÍCIO DA VIDA
A discussão em torno do aborto passa não raras vezes pela discussão do momento em que começa a vida. A maioria dos que se posicionam contrariamente ao aborto defendem que a vida começa desde a concepção, razão pela qual não haveria como se eliminar o feto.
A questão do momento a partir do qual a vida começa passa longe de ser pacífica. Não existe consenso no campo filosófico, biológico, médico ou religioso. Para alguns a vida começa com a nidação, enquanto para outros é imprescindível a formação do Sistema Nervoso Central, etc.
A respeito do tema, Luis Roberto Barroso (2012b, p. 7-9) faz uma síntese das diversas correntes existentes a respeito do marco inicial da vida, a qual, por sua precisão, merece ser citada:
III. A QUESTÃO DO PONTO DE VISTA ÉTICO
1. O debate sobre o início da vida
Como se pretende demonstrar mais à frente, o art. 5º da Lei nº 11.105/2005 não viola o direito à vida e nem a dignidade humana, por diversas razões. É preciso admitir, no entanto, que inexiste consenso científico ou filosófico acerca do momento em que tem início a vida. O reconhecimento ou não de uma linha divisória moralmente significativa entre óvulo fertilizado e pessoa humana é uma das grandes questões do debate ético contemporâneo. Há inúmeras concepções acerca do tema18. Sem nenhuma pretensão de exaustividade, é possível enunciar algumas posições que têm sido defendidas no plano teórico, segundo as quais a vida humana se inicia: (i) com a fecundação; (ii) com a nidação19; (iii) quando o feto passa a ter capacidade de existir sem a mãe (entre a 24a e a 26a semanas da gestação)20; (iv) quando da formação do sistema nervoso central (SNC)21. Há até mesmo quem defenda que a vida humana se inicia quando passam a existir indicadores morais22. Não há necessidade nem conveniência de se prosseguir na enumeração das diferentes perspectivas debatidas no campo da bioética23. O ponto que se pretende aqui demonstrar é o da existência do que a filosofia moderna denomina de desacordo moral razoável24.
Cumpre especular acerca da postura ética ideal em situações como esta. O senso moral de cada um envolve elementos diversos25, que incluem: (a) a consciência de si, a definição dos próprios valores e da própria conduta; e (b) a percepção do outro, o respeito pelos valores do próximo e a tolerância com sua conduta. Não se trata de pregar, naturalmente, um relativismo moral, mas de reconhecer a inadequação do dogmatismo onde a vida democrática exige pluralismo e diversidade. Em situações como essa, o papel do Estado deve ser o de assegurar o exercício da autonomia privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de condutas imperativas.
Os defensores da não interrupção da gravidez de fetos anencefálicos fundamentam sua posição no direito à vida do feto, protegida pela Constituição Federal no seu art. 5º, caput.
De acordo com essa corrente a vida deve ser protegida desde a concepção, conforme disposto no art. 2º do Código Civil e no art. 4º do Pacto de São José da Costa Rica. Nesse sentir, cito as palavras de Patrícia Freitas (2011, p. 68):
Além disso, a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil, em seu art. 4º, I, caminhando no mesmo sentido que a legislação brasileira estabelece que: “toda pessoa tem direito a que se respeite a vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Portanto, segundo o Pacto, o início da vida ocorre desde o momento da concepção.
Consolidando essa idéia, o Código Civil brasileiro no artigo 2º, in verbis: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção os diretos do nascituro”. Dentre os quais, pode-se destacar o do exercício do direito à vida, garantido pela Constituição. A personalidade civil que é adquirida pelo recém-nascido após o parto tem por pressuposto que este nasça com vida (…).
Para os propositores da ADPF 54, não existe aborto no caso de feto anencéfalo uma vez que a morte não decorreria dos meios abortivos, mas sim da má-formação congênita, incompatível com a vida extra-uterina.
Poder-se-ia cogitar, inclusive, a ausência de vida do feto anencéfalo em razão da inexistência de funções do sistema nervoso central. Como já afirmado, os fetos anencéfalos possuem apenas algumas funções inferiores que controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.
Como é sabido, a Lei nº. 9.434 de 04/02/1997 estabelece como momento do diagnóstico da morte, a morte encefálica. Assim, como a atividade cerebral dos fetos anencéfalos é limitada a funções inferiores, poder-se-ia comparar tal situação à própria ausência de vida.
Neste sentido, a Resolução CFM nº. 1752/2004[1] equiparou o anencéfalo a um natimorto cerebral, ao mesmo tempo em que previu a realização de transplante de órgão e tecidos após o nascimento.
Em 2010, a referida Resolução foi revogada pela Resolução CFM nº 1949 de 6 de julho de 2010[2], a qual explicitou os precários resultados obtidos com os transplantes dos órgãos e tecidos oriundos dos anencéfalos.
O Ministro Carlos Aires Brito chegou a suscitar tal questão em seu voto proferido no julgamento da ADI 3510 (BRASIL, 2008a):
Chego a uma terceira síntese parcial: se à lei ordinária é permitido fazer coincidir a morte encefálica com a cessação da vida de uma dada pessoa humana; se já está assim positivamente regrado que a morte encefálica é o preciso ponto terminal da personalizada existência humana, a justificar a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo ainda fisicamente pulsante para fins de transplante, pesquisa e tratamento; se enfim, o embrião humano a que se reporta o art. 5º da Lei de Biossegurança constitui-se num ente absolutamente incapaz de qualquer resquício de vida encefálica, então a afirmação de incompatibilidade deste último diploma legal com a Constituição é de ser plena e prontamente rechaçada. É afirmativa inteiramente órfã de suporte jurídico-positivo, sem embargo da inquestionável pureza dos propósitos e da franca honestidade intelectual dos que a fazem.
Para os defensores da ilegalidade do aborto de fetos anencéfalos é inconcebível equipará-los a um natimorto cerebral porque existente atividade cerebral ainda que limitada, conforme se posiciona Patrícia Freitas (2011, p. 105):
Em sentido complementar, os que entendem não se aplicar ao feto o critério da morte encefálica, ainda argumentam que sendo o encéfalo formado por córtex cerebral, bulbo e tronco-cerebral, o anencéfalo não se enquadraria no caso em questão porque apresenta os dois últimos componentes do encéfalo.
No que se refere ao termo utilizado na Resolução do CFM nº 1.752/2004 para definir o feto anencéfalo, qual seja, natimorto cerebral, estabelece-se uma incongruência com terminologia jurídica. Para o direito, natimorto é o que nasce sem vida alguma, o bebê de anencefalia, no entanto, respira, mama e chora. Assim, para os critérios de definição jurídica ele não pode ser tido como um natimorto.
Contudo, a despeito da existência de atividade cerebral nos fetos anencéfalos, esta é mínima, apta a produzir apenas movimentos involuntários tais como respiração e funções vasomotoras. Assim, o feto não tem consciência, é incapaz de relacionar-se, de comunicar-se, de sentir dor ou de ter emotividade, ou seja, não possui muitas das características que distinguem o ser humano dos outros animais.
O médico Dr. Thomaz Rafael Gollop, ouvido no STF na Audiência do dia 28/08/2004 (BRASIL, 2008c), explicou que de acordo com o Conselho Federal de Medicina, a respiração e batimento cardíaco, não excluem o diagnóstico de morte cerebral:
Uma outra contribuição: o sistema nervoso, hoje, é dividido no somático que tem a vida de relação; e o visceral, que é vida vegetativa.
Quando temos um doente terminal, temos um indivíduo em vida vegetativa; ele sobrevive numa fase terminal, mas não tem nenhuma vida de relação. Portanto, ele não tem capacidade de interpretação de informação. Quando chegamos a um paciente terminal na UTI e falamos alguma coisa, ele não tem condição de processar essa informação, porque ele precisa justamente do córtex cerebral. Se esse lhe falta, ele não tem condição de ter nenhum tipo de sentimento, nem condição de processar informação.
Esse gráfico já foi mostrado, mas, na merocrania, há um encéfalo rudimentar com algumas partes do encéfalo revestidos por uma membrana, e isto permite uma sobrevida maior. Esses indivíduos têm o tronco cerebral que permite respirar e ter batimento cardíaco, mas não permite, de maneira nenhuma, processar informação. Essa informação faltava e ela é importantíssima.
Por uma resolução do Conselho Federal de Medicina, aqui representando toda classe médica, interessa para o diagnóstico de morte encefálica, exclusivamente, a arreatividade supra-espinal.
Portanto, aquilo que está acima do tronco não reage, é morto, não tem atividade absolutamente nenhuma. Os sinais de reatividade infraespinal, ou seja, respiração e batimento cardíaco, não excluem o diagnóstico de morte cerebral.
(…)Também, segundo o Conselho Federal de Medicina, a morte encefálica é conseqüência de um processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado desse processo sem qualquer possibilidade de sobrevida por não possuir a parte vital do cérebro somático, a parte vital do cérebro. O feto anencéfalo é um natimorto cerebral. Evidentemente, qualquer médico, e já foi dito aqui, vai respeitar a opção pela manutenção da gravidez.
Importante notar que mesmo alguns organismos sem cérebro, como por exemplo, as esponjas, são capazes de realizar comportamentos como se locomover, conforme se extrai da Wikipédia (2012, p. 01):
Nem todos os comportamentos precisam de um cérebro. Mesmo organismos unicelulares são capazes de extrair informação do ambiente e responderem de acordo.[1] As esponjas, às quais falta um sistema nervoso central, são capazes de coordenar suas contrações corporais, e até mesmo de se locomoverem.[2] Nos vertebrados, a própria coluna vertebral contém circuitos neurais capazes de gerar respostas reflexas, assim como padrões motores simples, como nadar ou andar.[3] Entretanto, o controle sofisticado do comportamento, baseado em um sistema sensorial complexo requer a capacidade de integração de informações de um cérebro centralizado.
Como se verifica, até os organismos sem cérebro são capazes de realizar alguns comportamentos como nadar ou andar. De certo, biologicamente tais organismos possuem vida, mas ninguém afirmaria que a vida destes é tão importante quanto a vida de um ser humano.
Os fetos anencefálicos também são capazes de realizar alguns movimentos, mas como dito, estes são invontuntários. Dessa forma, ainda que se possa falar em vida, pelo menos no sentido biológico, seria possivel falar em uma vida humana? E mais, será que essa vida tão somente biológica desse ser incapaz de ter consciência, uma vida totalmente vegetativa, pode ser considerada tão importante quanto uma vida humana?
Para Ronald Dworkin (2009, p. 12 e 30), a discussão a respeito da permissão ou proibição do aborto não deve ter como ponto de partida o momento em que a vida começa, por ser tratar de discussão inútil:
Em termos muito gerais, posso descrever de imediato essa confusão intelectual. O debate público sobre o aborto foi incapaz de reconhecer uma distinção absolutamente crucial. Um lado insiste em que a vida humana começa no momento da concepção, que o feto é uma pessoa a partir desse momento, que o aborto é um assassinato, um homicídio ou uma agressão à santidade da humana. Cada uma dessas frases, porém, pode ser usada para descrever idéias muito diferentes.
A questão de saber se um feto é um ser humano já a partir da concepção, ou de algum momento posterior da gravidez, é simplesmente demasiado ambígua para ser de alguma utilidade. As questões cruciais são as duas perguntas morais que acabei de descrever, e devemos examiná-las diretamente, sem ambigüidades. Quando uma criatura adquire interesses e direitos? Quando a vida de uma criatura humana começa a incorporar um valor intrínseco, e com quais conseqüências?
Por mais inusitada que possa ser a afirmação de Dworkin sobre a inutilidade da discussão, considerando a inexistência de consenso sobre o assunto ou mesmo a possibilidade de qualquer identificação de qual seja o pensamento dominante, parece ter razão o mestre. Pelo menos, não há como se discutir a questão do aborto, levando em consideração apenas uma dessas correntes.
Juridicamente, a Constituição Federal protege a inviolabilidade do direito à vida, conforme previsão do art. 5º, caput:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Contudo, o diploma constitucional não define quando começa ou termina a vida. Assim sendo, é plenamente defensável a idéia de que a Constituição Federal não se posicionou a respeito da proteção da vida do feto e da questão do aborto, conforme preleciona Marcela Barroso (2010, p. 149):
Em termos expressos, a constituição não se posiciona acerca da proteção da vida do feto e da questão do aborto. Ao contrário, durante a constituinte foi proposto que se positivasse a proteção da vida a desde a concepção e houve uma escolha deliberada pela omissão quanto ao início da proteção à vida, exatamente por ser esse um fato controverso.
Assim, restou à legislação ordinária estabelecer em que termos essa proteção de daria.
Neste sentir, o Código Civil de 2002, estabeleceu como marco inicial do surgimento da pessoa humana o nascimento com vida, colocando a salvo os direitos do nascituro desde a concepção:
Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Destarte, segundo o Código Civil só se pode falar em pessoa humana após o nascimento com vida e, conseqüentemente, no princípio da dignidade da pessoa humana (BARROSO, Luis, 2012b, p. 13).
Sobre a questão dos direitos do nascituro, discorre Luis Roberto Barroso (2012b, p. 11), que “nascituro é o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato certo”, acepção essa extraída do Dicionário Houaiss.
Sem adentrar em maiores detalhes sobre a discussão, pode-se afirmar, diante das peculiaridades da gravidez, que o nascimento de feto anencéfalo não é acontecimento certo, ao contrário, é fato improvável. Assim, mais uma indagação se impõe: o feto anencéfalo teria direitos protegidos pelo Código Civil?
Por sua vez, o Código Penal Brasileiro, art. 128, retirou da esfera de proteção jurídica o direito à vida dos fetos em duas hipóteses: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resulta de estupro.
Como se vê, nessas duas circunstâncias o referido diploma legal dá preferência à proteção da vida e da honra da gestante em detrimento da potencialidade de vida feto, neste caso, saudável, com plenas condições de vida extra-uterina.
Interessante é que nunca se questionou a constitucionalidade da referida norma penal. E os defensores da ilegalidade do aborto de feto anecéfalos raramente se posicionam sobre a questão.