A revisão recursal é um instrumento de controle administrativo e significa a possibilidade de eventuais interessados se insurgirem formalmente contra certos atos da Administração, requerendo a reforma de determinada conduta.
Tem seu fundamento na contingência humana, na falibilidade da inteligência, da razão e da memória do homem. Destina-se, pois, a sanar os defeitos graves ou substanciais da decisão, a injustiça da decisão, a interpretação e aplicação errônea da lei ou da norma jurídica (NUCCI, p. 886)
Por este motivo, nenhum ato pode ficar imune aos necessários controles institucionais. Pelo contrário, a Administração tem a obrigação de revê-los quando eivados de nulidade. Assim, esta forma de controle interessa não só ao recorrente, que deseja ver alterado um ato administrativo, como a própria Administração, que deve ter interesse em averiguar todas as razões trazidas pelo recorrente, impugnando a atuação administrativa (CARVALHO FILHO, p.818).
Ademais, está psicologicamente demonstrado que o administrador se cerca de maiores cuidados no julgamento ou edição de um ato administrativo quando sabe que sua decisão poderá ser revista por um órgão superior (GRINOVER, p. 74/75)
Com efeito, o texto do art. 5º, LV, da Constituição Federal deixa claro que o princípio da ampla defesa não estará completo se não se garantir ao interessado o direito de interposição de recursos. As hipóteses de arbitrariedades e condutas abusivas por parte de maus administradores devem ser corrigidas pelos agentes superiores. Cercear o recurso, portanto, é desnaturar indevidamente o fundamento pertinente ao próprio direito defesa (CARVALHO FILHO, p. 818).
Neste sentido, o Duplo Grau na esfera Administrativa trata-se de garantia individual, prevista implicitamente na Constituição Federal, voltada a assegurar que as decisões proferidas não sejam únicas, mas sim submetidas a um juízo de reavaliação por um agente/órgão superior. Conforme já comentado, é a própria estrutura da Administração e do Judiciário na Constituição Federal, dividindo-os em órgãos hierarquizados, que possibilita ao interessado requerer a reapreciação dos atos administrativos por autoridade ou órgão superior.
Acrescente-se a esses argumentos, a lição de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antônio Scarance Fernandes, defendendo o status constitucional do duplo grau de jurisdição, por meio de ratificação, pelo Brasil, da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), em 1992 (Decreto 678/92), conjugando-se com o §2º do art. 5º da CF com a previsão no art. 8º, 2-h do Pacto:
Constituição Federal
Art. 5º - § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Pacto de San José da Costa Rica - Art. 8º – Garantias Judiciais
2 – h ) direito de recorrer da sentença para Juiz ou Tribunal Superior.
No entanto, cabe destacar que, como qualquer outro principio ou garantia constitucional, este também pode comportar exceções. Exceções estas que somente podem constar na própria constituição, conforme nos ensina Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antônio Carlos de Araújo Cintra:
Casos há, porém, em que inexiste o duplo grau de jurisdição: assim, v.g., nas hipóteses de competência originária do Supremo Tribunal Federal, especificada no art. 102, inc. I, da Constituição. Mas trata-se de exceções constitucionais ao princípio, também constitucional. A Lei Maior pode excepcionar às suas próprias regras.(p. 75)
Por fim, este também é o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal em julgamento pelo pleno do RE 388.359/PE[1] em 28/03/2007, ao declarar inconstitucional a exigência de depósito prévio como pressuposto de admissibilidade de recurso administrativo. Em plenário, os votos dos Exmos Ministros dão uma aula sobre o tema, colacionando aqui alguns trechos para reflexão:
MINISTRO JOAQUIM BARBOSA:
O STF já se defrontou. várias vezes com o tema em apreço. Cito alguns precedentes: ADI 1.049-MC (rel. min. Carlos Velloso, DJ de 25.08.1995), RE 210.246 (rel. para o acórdão min. Nelson Jobim, DJ de 17.03.2000) e ADI 1.922-MC e 1976-MC (rel. min. Moreira Alves, DJ de 24.11.2000).
Em todos os casos citados, ficou consagrado, embora sempre por maioria, que a exigência de depósito prévio é constitucional.
Não obstante esses argumentos, tenho motivos para acreditar, data venia, que a posição do Tribunal merece ser revista.
O tema pode ser abordado sob três ângulos que se relacionam, a saber: o do princípio democrático no procedimento administrativo, o do procedimento administrativo e o princípio da legalidade e o do procedimento administrativo e os direitos fundamentais.
O procedimento administrativo é uma das formas de se realizar o Direito Administrativo. As relações entre Estado e administrados devem desenvolver-se legitimamente não apenas no âmbito judicial mas também no âmbito da própria Administração, que está vinculada ao dever de realizar as diversas normas constitucionais e, especialmente, as normas constitucionais administrativas. A consecução da democracia, de último modo, depende da ação do Estado na promoção de um procedimento administrativo que seja: (i) sujeito ao controle dos órgãos democráticos, (ii) transparente e (iii) amplamente acessível aos administrados.
A construção da democracia e de um Estado Democrático de Direito exige da Administração Pública, antes de mais nada, respeito ao princípio da legalidade, quer em juízo, quer nos procedimentos internos. Impossibilitar ou inviabilizar o recurso na via administrativa equivale a impedir que a própria Administração Pública revise um ato administrativo porventura ilícito. A realização do procedimento administrativo como concretização do princípio democrático e do princípio da legalidade fica tolhida, dada a natural dificuldade - para não dizer autocontenção - da Administração em revisar os próprios atos. [...]
É preciso ressaltar que não há como visualizar diferença ontológica entre o recurso administrativo e o recurso contencioso. [...]
Da necessidade de se proporcionar um procedimento administrativo adequado, surge o imperativo de se consagrar a possibilidade de se recorrer no curso do próprio procedimento.
O direito ao recurso em procedimento administrativo é tanto um princípio geral de direito como um direito fundamental.
Situados no âmbito dos direitos fundamentais, os recursos administrativos gozam entre nós de dupla proteção constitucional, a saber: art. 5°, incisos XXXIV (direito de petição independentemente do pagamento de taxas) e LV (contraditório).
MINISTRO CARLOS BRITTO
A Administração Pública se escalona por um modo especial, que é a hierarquia. Os órgãos e as entidades da Administração Pública superpõem-se por graus que Marcelo Caetano chamava de “hierárquicos”, e a nossa Constituição parece ratificar, confirmar essa estrutura necessariamente escalonada da Administração Pública, tanto que o art. 84, II, diz que:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: II ' exercer, com o auxílio dos Ministros de Estado, a direção superior da administração federal;”.
Isso me leva a rememorar estudos antigos que eu fazia do chamado princípio da revisibilidade, ou seja, do ângulo da Administração Pública, um dos seus princípios estruturantes é facultar ao administrado o direito de esgotar as instâncias administrativas assim hierarquicamente escalonadas ou superpostas.
O notável Professor Celso Antônio Bandeira de Mello dá conta desse princípio da revisibilidade, que opera do ângulo do administrado como um direito, nos seguintes termos: “Princípio da Revisibilidade. Consiste no direito do administrado recorrer da decisão que lhe seja desfavorável”
Como pudemos verificar, o direito ao recurso administrativo integra o exercício da ampla defesa como uma de suas manifestações mais importantes, garantido pela Constituição em seu art. 5º incs. XXXIV e LV como direito fundamental do cidadão. Assim, qualquer Regulamento Administrativo que não prevê a possibilidade de recursos disciplinares é inconstitucional e deve ser excluído do ordenamento jurídico.
Bibliografia
CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, 17ª Ed.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral do processo. 19. ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 6ª Ed., Revista dos Tribunais, 2007.
Nota
[1] “RECURSO ADMINISTRATIVO - DEPÓSITO - § 2º DO ARTIGO 33 DO DECRETO Nº 70.235/72 - INCONSTITUCIONALIDADE. A garantia constitucional da ampla defesa afasta a exigência do depósito como pressuposto de admissibilidade de recurso administrativo. (RE 388359, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 28/03/2007)”