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O fenômeno da dependência afetiva na criminalidade feminina no Estado do Piauí

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Agenda 09/06/2012 às 11:16

3. A CRIMINALIDADE FEMININA

Embora as noções até agora repassadas tenham características gerais, aplicáveis aos seres humanos como um todo, é importante destacar que o crime, em relação à mulher, reveste-se de algumas particularidades, tanto na forma como era concebido inicialmente quanto na forma como era e é visto pela sociedade.

3.1. Papel da mulher na sociedade através dos tempos

A mulher por muito tempo foi relegada a segundo plano, tratada como um ser inferior ao homem, suprimida do espaço público, da sociedade. A ela foi reservado o espaço privado, em âmbito doméstico, tendo importância apenas no desempenho de suas funções de mãe, esposa, dona-de-casa. A importância que era dada a mulher, dessa forma, era estritamente ligada à sexualidade114.

Na Grécia antiga, por exemplo, a mulher não era considerada cidadão, ou seja, não era considerada digna de participar das decisões políticas da cidade, da mesma forma que os escravos e estrangeiros. Não era, dessa forma, considerada igual ao homem.

Para os romanos, de forma semelhante aos gregos, a mulher era considerada um ser incapaz para gerir sua pessoa e seus bens por toda a vida115, sendo gerida pelo pai e, depois de casada, pelo marido.

Samantha Buglione, discorrendo sobre o tema, assim se pronuncia:

Através da idéia de que a mulher instruída estaria mais apta a educar os filhos, ou seja, que seria necessária sua participação na vida pública, surge a preocupação que, caso a mulher tivesse acesso ao direito das cidades, que ocupasse postos públicos ou simplesmente viesse a compor a vida política, isso poria em detrimento a coesão familiar, a mulher iria negligenciar o lar, seu "lugar natural"116.

No Direito Germânico primitivo, da mesma forma, a mulher estava sempre sujeita a tutela de um homem, do pai, ou, na falta deste, dos irmãos, e do marido, depois que se casava.

Essa visão da mulher concedeu a ela a condição de “coisa”, objeto de comércio117. A mulher era um fardo do qual o pai desejava se livrar e, dessa forma, encontrando um homem que a quisesse como esposa, para que pudesse proporcionar a ele descendentes, deveria a mulher oferecer uma contraprestação em pecúnia, que ficou conhecida pelo nome de “dote”. Esta prática, incrivelmente, durou, na Inglaterra, até o final do século XIX, e na Alemanha, segundo indícios, até pouco depois da Primeira Guerra Mundial, mas ainda existe em pequenas localidades rurais da Grécia, Irlanda, Itália, Espanha, Portugal e Malta, e é costume na Índia118.

Na Idade Média, a mulher foi alçada à condição de “indivíduo”119, saindo da esfera privada e passando a integrar o espaço público em razão da pouca quantidade de homens nas cidades em virtude de suas participações em guerras120.

A Inquisição, todavia, teve relevante papel na regressão das conquistas da mulher na Idade Média, numa tentativa de “erradicar a religiosidade popular medieval e a cultura fortemente comunitária, motivada pelas mulheres”. Isso por que a feminilidade estava associada às práticas pagãs (a feitiçaria), costume que a Igreja desejava romper, a fim de consolidar a doutrina cristã, e, sendo a mulher transmissora do pecado, deveria esta ser controlada121.

No Brasil colonial, a mulher era considerada um ser inferior, sexo frágil, que cuidava da casa, dedicava-se aos filhos e dava ordens aos escravos, servindo de objeto para satisfazer os desejos sexuais dos homens122.

Desse modo, ao longo da história, a mulher ideal era aquela que cuidava bem do marido, dos filhos, da casa e era fiel, colocando sempre os interesses destes acima dos seus, um idealismo positivista, influenciados pelos conceitos da Igreja. Todavia, diante da necessidade de fornecimento de educação formal aos jovens, a mulher foi alçada à condição de transmissora de conhecimento123; além disso, algumas mulheres começaram a ocupar postos de trabalho, pois necessitavam de dinheiro para se sustentar, não tendo ninguém do qual dependessem. Surgiram, assim, profissões como as das amas-de-leite e as de professoras. Essas mudanças, todavia, não foram bem aceitas, pois havia o receio de que as mulheres passassem a não cumprir com seus deveres domésticos, razão pela qual foram duramente criticadas. Gustavo Noronha e Silva e José Nailton Silveira de Pinho destacam as estratégias utilizadas para fazer com que as mulheres abandonassem os postos de trabalho:

O trabalho feminino foi responsabilizado pela desintegração familiar, a baixa escolaridade entre as crianças e os jovens, pela delinqüencia e o desemprego masculino. As falhas na organização do sistema, nesse sentido, foram descaracterizadas como tal e revertidas em direção da participação das mulheres no mercado de trabalho.124

Olga Espinoza, acerca da imagem da mulher, comenta:

A imagem da mulher foi construída como um sujeito fraco (em corpo e em inteligência) produto de falhas genéticas (postura na qual se baseia a criminologia positivista quando se ocupa da mulher criminosa). Outra característica dada a mulher foi a maior inclinação dela ao mal por sua menor resistência à tentação, além de predominar nela a carnalidade em detrimento de sua espiritualidade. Por tudo isso, se justificava uma maior tutela, tanto da religião como do Estado.125

Em um contexto de transformação industrial, a mulher conquistou um pouco do espaço público e reconhecimento, portanto, mas por curto tempo. Isso porque, com a ascensão da burguesia ao poder, estes adotaram os ideais positivistas – inclusive no que tange à imagem da mulher –, instaurando um modelo de vigilância social em que estão no topo os homens brancos, com esposas, filhos heterossexuais e burgueses e, os demais, encontrando-se à margem da sociedade. As mulheres, marginalizadas, acabam sendo controladas pela própria família, pela escola, pela igreja, pela vizinhança, todos influenciados pelo modelo de mulher ideal. Até hoje perdura o controle sobre a vida das mulheres, que tem suas vidas observadas e limitadas126.

A situação começa a mudar com a Revolução Industrial inglesa do século XVIII, que gerou a necessidade de mão-de-obra livre assalariada, capaz de garantir a produção e geração de lucro, e para garantir a existência de um mercado consumidor, de modo que mulheres, e até mesmo crianças, passaram a trabalhar nas fábricas127.

A inserção da mulher na sociedade, desse modo, está intimamente relacionada à inserção da mulher no mercado de trabalho. Este processo, porém, a despeito das possibilidades anteriores, começou efetivamente com o advento das Guerras Mundiais, com a saída dos homens para o campo de batalha. Essa ausência masculina terminou por gerar uma falta de mão-de-obra, tendo as mulheres, então, que assumir os negócios da família e as vagas deixadas pelos homens no mercado de trabalho128. Com o fim das guerras, muitos homens perderam as vidas e, dos que sobreviveram, alguns voltaram mutilados e/ou acometidos de outras doenças que os impossibilitaram de voltar ao trabalho. As mulheres, então, consolidaram as posições que haviam adquirido durante as guerras, deixando os filhos e os lares, e ocupando os postos de trabalho deixados pelos maridos129.

No século XIX, com a consolidação do sistema capitalista inúmera mudanças ocorreram na produção e na organização do trabalho feminino. Com o desenvolvimento tecnológico e o intenso crescimento da maquinaria, boa parte da mão-de-obra feminina foi transferida para as fábricas.

No Brasil, o processo de urbanização, que se acelerou na segunda metade do XIX, e o processo de industrialização, que sofreu grande impulso nos anos 30 do século XX, contribuíram para que as mulheres saíssem progressivamente da reclusão no lar para trabalhar em fábricas, lojas e escritórios130.

Sem dúvida as mulheres tiveram várias conquistas desde o século passado. Todavia, a visão histórica da mulher condicionada à esfera privada conferiu-lhe invisibilidade social e significado político, visão esta ainda enraizada na sociedade, mesmo com a mudança gradual da mulher, em virtude de sua politização, da esfera privada para a pública131.

Samantha Buglione afirma que a visão da sociedade sobre a mulher apenas como mãe, esposa, dona-de-casa, ser dócil e frágil, atingiu, inclusive, o direito penal da atualidade:

Esses papéis são evidenciados, hoje, na estrutura normativa do Direito, bem como nos seus mecanismos de controle e tutela social, o que é percebível na superproteção à moral feminina, no antigo estatuto da mulher casada, nos crimes relacionados com a capacidade reprodutora e a ofensa à honra familiar, ou ainda num sistema penitenciário previsto apenas para homens. O modelo atual é resultado de um processo histórico. O Direito torna-se um reflexo das aspirações e relações existentes em momentos anteriores à elaboração das normas estando estas aspirações presentes no discurso jurídico-penal e principalmente nos aparelhos de operacionalização da dogmática jurídica.132

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Dessa forma, o modo como a mulher era vista pela sociedade influiu diretamente no modo como se percebe a mulher criminosa e no tratamento conferido a ela pelo sistema jurídico-penal, conforme se verá a seguir.

3.2. Crimes de gênero

Em razão da visão que se tinha da mulher, a prática de crimes sempre foi concebida como coisa de homens. Permaneceu, desta forma, no imaginário social – e até mesmo entre operadores do direito –, a concepção histórica de que o crime, pertencente ao espaço público, não poderia ser associado à mulher, confinada ao espaço privado, conforme visto anteriormente, e, ainda, por ser anatomicamente mais frágil e pela docilidade causada pela maternidade133. A mulher enquanto criminosa, porém, tem um histórico de envolvimento com o crime, mesmo que de forma diferenciada das práticas ilícitas associadas aos homens134.

Segundo a Bíblia, livro sagrado dos cristãos, o primeiro crime na história da humanidade foi cometido por uma mulher, Eva, que desobedeceu a regra que proibia a ela e a Adão, seu companheiro, de comer do fruto proibido135. O pioneirismo feminino, contudo, se restringiu ao registro bíblico.

Na história, os primeiros indícios de desobediência das mulheres à lei aparecem no século XI. Sem dúvida as mulheres de períodos anteriores cometeram delitos, todavia, apenas por volta dos anos de 1210 é que surgem tipos específicos de delinqüência feminina, com as legislações separando determinadas condutas entre tipicamente masculinas e femininas136.

Estas condutas tipificadas como crimes, em relação à mulher, estiveram vinculadas à sexualidade e ao ambiente privado, doméstico. Por isso, as primeiras notícias de criminalidade feminina estiveram relacionadas com bruxaria e prostituição. Estes comportamentos vão de encontro a padrões estabelecidos, contrariando a imagem de mulher ideal que se esperava que elas desempenhassem. Desse modo, com o fortalecimento da Igreja Católica, esta, buscando consolidação, necessitava coibir todas as práticas que contestassem os dogmas, a riqueza e a castidade, razão pela qual se inicia a perseguição às bruxas137. Estas, geralmente eram mulheres que utilizavam os antigos conhecimentos medicinais advindos das religiões pagãs, que ameaçam a Igreja, foram bastante perseguidas, além também de prostitutas e mulheres adúlteras, que passaram a ser consideradas bruxas, com a associação que se fez entre sexo e pecado. Assim foi nascendo e formando-se a Inquisição, que foi consolidada através do Papa Gregório IX138. Acerca da bruxaria, Samantha Buglione comenta:

Todo o romantismo acerca da feitiçaria, o preconceito, mas principalmente sua prática, sempre estiveram relacionadas intimamente à natureza feminina e, por extensão, à idéia de que toda a mulher era uma feiticeira em potencial. Esse estereótipo surgiu por volta de 1400, e manteve-se, pelo menos no direito criminal, até final do século XVII. No século XVI e XVII a mulher tinha quatro vezes mais possibilidades de que o homem de ser acusada do crime de feitiçaria e de ser executada por essa razão (CAMPOS, 1995). Aqui é importante fazer referência a observação de Vera de Andrade (1995), quando evidencia que apesar de existir um tipo penal, no caso a bruxaria, as formas dos aparelhos penais coibirem essa prática se dá em proporção diferenciada para mulheres e homens.139

Já a prostituição, durante muito tempo foi tolerada, em virtude do conflito de interesses em satisfazer as necessidades sexuais dos homens e, em oposição, a castidade das mulheres até o casamento, mantendo a moral familiar. A prostituta seria o oposto da mulher ideal, da mãe de família, da esposa. Esta situação, todavia, sofreu profunda mudança com a Reforma Protestante e a Contra-reforma (séc. XVI), quando sexo, inclusive para os homens, passa a ser condenado pela Igreja, que defendia a finalidade reprodutiva do sexo apenas. Assim, deixa de existir a justificativa social que conferia suporte a existência da prostituição, passando esta a ser condenada140.

Em Paris, nos séculos XVII e XVIII, a prostituição foi particularmente perseguida pela polícia, e as prostitutas eram presas ou exiladas. Em contraposição à mulher ideal as mulheres que se tornavam prostitutas passaram a ser vistas como ruins, pois tinha-se a idéia de que as mulheres se tornavam prostitutas porque queriam, já que as mulheres não tinham necessidades de trabalhar, apenas as solteiras, por curto período, pois boas mulheres certamente arranjariam um marido que as sustentasse141.

Algumas espécies de crimes cometidos por mulheres nunca ficaram devidamente registrados na história, uma vez que ocorriam na esfera doméstica, privada, e em decorrência de dissimulações que acabaram por desestimular as queixas ou ainda o hábito de resolver as questões por acordo, mesmo os crimes mais graves, de modo que os crimes cometidos contra a mulher ficavam extremamente obscuros. Dessa forma, a maioria dos delitos cometidos por mulher eram dificilmente detectáveis, não só pela natureza das infrações, como homicídios por envenenamento, como também pelas características de suas vítimas, em geral crianças e velhos, também restritos aos espaços privados, pois a mulher era encarregada de cuidar das tarefas de casa, da cozinha, da educação e do cuidado das crianças e dos idosos, de modo que grande parte dos crimes femininos acabava ficando na invisibilidade do lar, dos incidentes naturais e acidentes fatais, difíceis de serem detectados e punidos142.

Assim, a criminalidade feminina sempre foi entendida de forma específica, relacionada com um ambiente familiar comum e da sexualidade, referentes à cultura social de que a mulher pertence a uma esfera doméstica, privada e não pública143, dada como pessoa relacionada essencialmente ao ambiente doméstico, aos sentimentos e à emoção144.

Diante de toda a concepção acerca da feminilidade e do papel desempenhado pela mulher na sociedade, a análise da criminalidade feminina passou a ser limitada ao que se convencionou chamar de "delitos de gênero", que são crimes como a prostituição e adultério, condutas já descriminalizadas, infanticídio (art.123 CP), aborto (art.124 CP), homicídios passionais (art. 121 CP), exposição ou abandono de recém nascido para ocultar desonra própria (art.134 CP), furto (art. 155 CP)145. Tem-se, ainda, a idéia de que a conduta criminosa estivesse estritamente relacionada com os delitos dos companheiros e maridos, e que quando matam, a motivação é sempre ocasionada por situações emocionais extremas, como quando mata o homem, por ciúmes ou para libertar-se, ou, ainda, os filhos, em razão de perturbações psicológicas146.

Percebe-se, dessa forma, que tanto o discurso jurídico quanto seus operadores e sistema não são imparciais ou neutros, e, em razão dessa parcialidade, tem-se um tratamento ou paternalista, de proteção ao papel da mulher, ou de severidade. Todavia, a benevolência está intimamente ligada ao tipo de conduta das mulheres, pois o tratamento será brando se a mulher agir de acordo com o comportamento dela esperado. Se a conduta não for condizente, aproximando-se de condutas consideradas masculinas, o tratamento recebido é mais severo147.

Em nosso país, precisamente em São Paulo, havia o propósito de controlar segmentos como o das prostitutas, em 1893, quando foi baixado o Regulamento Provisório da Polícia de Costumes, os bordeis eram considerados antros de jogos e roubo148. Quanto ao tratamento dado à mulher, o Código do Império lhes conferia alguns privilégios, como o de não andar com calceta (espécie de argola com que se prende a perna dos condenados) nos pés e de não ser enforcada, quando grávida. Já o Código de 1890, falava claramente em superioridade do sexo masculino sobre o feminino. No Código de 1940, por sua vez, não havia diferença entre os gêneros, considerando que ambos possuíam a mesma capacidade de responder pelos crimes, exceto em duas situações, punindo de forma mais branda os crimes de infanticídio e de aborto149.

Quando os crimes cometidos por mulheres, portanto, fogem ao padrão de “crimes femininos”, estas são tratadas de forma mais severas que os homens, com maior punição e controle, pois além de quebrar as regras penais impostas pelo Estado, rompem com os papéis de gênero construídos150. Além disso, estas criminosas costumam ser identificadas como “sendo mais parecidas com homens, mais machonas e mais habituadas à rua e à delinqüência e, por isso, mais aptas a matar”151. Assim, ou a mulher é movida pela emoção, ou é uma mulher masculinizada, chamada de não mulher, um monstro, pois age contra a natureza da mulher152.

A influência da visão positivista, através de Cesare Lombroso, juntamente com William Ferrero, conferiu à mulher criminosa uma série de características – que até hoje permeiam a visão da sociedade –, colocando-a em inferioridade, apontando suas deficiências e infantilizando-a. Comandadas pela natureza e por seus impulsos mais instintivos, a mulher aparecia biológica e intelectualmente inferior ao homem. Partiam das características das mulheres que consideravam normais (como toda a tese lombrosiana), e buscavam analisar as chamadas "desviantes", que eram as prostitutas e as criminosas.

Para eles, a mulher considerada normal apresentaria menor tendência ao crime por ter evoluído menos que os homens, e seriam mais passivas e conservadoras por razões orgânicas, principalmente devido à imobilidade do óvulo comparada à mobilidade do espermatozóide. A mulher, desse modo, era vista como menos inteligente, sem criatividade, passiva, submissa, dócil, com instinto maternal, motivo pelo qual cometiam menos crimes. As criminosas, portanto, seriam desviantes desse modelo153.

Tinha-se a idéia de que a mulher criminosa poderia ser reconhecida por meio três tipos distintos. A primeira, criminosa nata, possuiria grande erotismo e inteligência, utilizada para perpetrar violência, possuindo, ainda, características como coragem, energia, gosto por bebidas alcoólicas e fumo, incapacidade para as funções maternais, disposição para a aventura e ócio, aproximando-se bastante de figuras masculinas. O segundo tipo seria a criminosa por ocasião, que se arrependia facilmente do crime e eram capazes de amor ideal por um homem. O último, a criminosa por paixão, ocorreria de forma mais numerosa, cometendo seus atos durante a juventude, período em que estariam em plenitude sexual154.

Cesare Lombroso chegou a afirmar, inclusive, que as mulheres delinqüentes poderiam ser distinguidas das demais pelas suas características físicas, como a abundância extrema de cabeleira, desenvolvimento mandibular, olhar sinistro, olhos oblíquos, saliência dos zigomas, fisionomia viril e penugem, lábio fino, estrabismo, dentes anormais. Chegava, ainda, a especificar características de tipos de criminosas: as ladras apresentariam apófises zigomáticas enormes e orelhas anormais; as infanticidas teriam penugem abundante; e as homicidas possuiriam lábios superiores finos155.

Acrescente-se que, para esta corrente de pensamento, a mulher estaria mais facilmente sujeita ao cometimento de crimes quando estivesse influenciada por fenômenos biológicos como a puberdade, a menstruação, a menopausa e o parto, teoria que ainda é considerada válida, em razão dos distúrbios hormonais que influenciam o estado psíquico da mulher, havendo crimes tipificados no CP, a exemplo do infanticídio, que exige a presença do estado puerperal156.

A idéia de mulher criminosa, diante do modelo feminino de docilidade, a imagem da mãe, dona de casa, esposa e musa inspiradora do marido, nos leva à concepção de que esta é uma exceção157. Contudo, tem-se notado um crescimento da inserção da mulher na criminalidade, inclusive na prática de delitos considerados atípicos, até então, para mulheres, mesmo em proporção menor que a dos homens, conforme se verá a seguir.

3.3. Atual perfil criminológico feminino e participação masculina

Como abordado anteriormente, tem-se observado uma crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho, principalmente nos últimos 50 (cinqüenta) anos, que foi possibilitada por uma combinação de fatores econômicos e culturais, como o avanço da industrialização, a continuidade do processo de urbanização, e, ainda, a queda das taxas de fecundidade, proporcionando um aumento das possibilidades das mulheres encontrarem postos de trabalho, sem precisarem se preocupar em cuidar de filhos158.

Esta mudança na posição das mulheres, em termos sociais e econômicos, gerou alterações, de ordem material e estrutural, na sociedade, trazendo a mulher cada vez mais para o âmbito público.159

A penetração da mulher ocorreu não só no mercado de trabalho, mas em outros segmentos da atividade humana, num processo de emancipação feminina de forma avançada, que acabou trazendo conseqüências como menor tempo no lar e para educar os filhos, maior competitividade e integração nas relações sociais, e mais conquistas de direitos sociais. Também quanto ao comportamento, houve mudanças expressivas, que contrariam o já tão falado padrão de feminilidade160.

Portanto, a mulher vem conquistando maior independência e tem usado de variadas formas para tal. Estas mudanças, na realidade, não estão meramente ligadas à luta pela igualdade entre os sexos, e a população feminina vem buscando a solução para suas demandas diante de suas dificuldades161.

A visibilidade dada às questões femininas, antes mantidas apenas na esfera privada, tem influenciado as conquistas de espaço pelas mulheres, no mercado de trabalho, na família e na sociedade de uma forma geral. O papel social que a mulher desempenha passou, assim, a ser redimensionado162.

Esta transformação não ocorreu de uma hora para outra, decerto, mas as atividades criminais das mulheres começaram a ser realmente vistas a partir da mudança e do aumento de importância dado ao papel público da mulher na sociedade163.

Conforme apontam alguns estudiosos, algumas tendências verificadas nas taxas de criminalidade dos últimos anos fazem supor que, à medida que as mulheres adquirem maior participação na força de trabalho e há maior igualdade entre os sexos, há um aumento na participação da mulher nas estatísticas criminais, e isto em crimes tidos como majoritariamente masculinos164, de forma que "a redução da desigualdade entre os sexos, no âmbito da sociedade ocidental, implica a maior presença da mulher não apenas na área do trabalho fora de casa, mas em diferentes campos, entre os quais se inclui a criminalidade"165.

Assim, o espaço atualmente conquistado pelas mulheres conferiu, também, uma alteração no perfil da criminalidade feminina, haja vista que, conforme já visto anteriormente, os crimes mais praticados pelas mulheres eram os caracteristicamente passionais e relacionados ao ideal feminino. Sobre o aumento da criminalidade, Paulo Roberto da Silva Bastos exemplifica:

No Brasil, entre 1957 e 1971, as condenações de mulheres cresceram duas vezes mais rapidamente do que as de homens, e, paralelamente, a participação da mulher brasileira na população economi­camente ativa passa de 14,7% em 1950, para 17,9% em 1960, e finalmente, 21,0% em 1970.

[...]

A taxa de delinqüência feminina, no Brasil, na década de 50 era de 2% em relação à masculina. Já no ano de 2000, passou a representar 3,5% de toda a população carcerária brasileira (a população carcerária feminina até novembro de 2000 era de 9.949 presas)166

A maior participação das mulheres no espaço urbano, desse modo, reflete-se também na marginalização desse sistema. Por isto, um crescente número de mulheres à parte do processo industrial, educacional e do mercado de trabalho, é também colhido pela mecânica da delinqüência. A criminalidade feminina e, conseqüentemente, a população encarcerada de mulheres deve aumentar, portanto, na medida em que as diferenças sociais, econômicas e estruturais diminuam entre os sexos e aumentem entre as classes167.

Por outro lado, tem-se, também, o entendimento de que a pouca importância concedida à criminalidade feminina se deve ao preconceito contra as manifestações de desajuste social das mulheres, o que quer dizer que não é que tenha havido mudança no perfil criminológico das mulheres, ocorre apenas que este nunca foi devidamente percebido168.

Quanto à criminalidade em si, não existem evidências que confirmem um aumento relativo dos crimes cometidos por mulheres em comparação com os cometidos por homens, mas apenas uma elevação em termos absolutos, que seria explicado pela mudança de atitudes dos que rotulam as mulheres como criminosas, que seriam o público, a polícia, os juízes e os promotores169.

Essa realidade está em transição, como já dito, pois tem havido aumento da incidência de mulheres envolvidas no cometimento de atos ilícitos e práticas de violência. Tem-se, ainda, entre os próprios gestores de segurança pública e pesquisadores, a idéia de que o envolvimento de mulheres em atos ilícitos está vinculado a laços afetivo-conjugais com parceiros que cometem crimes.170.

Deve-se ressaltar, por oportuno, que já houve uma mudança nas práticas delitivas femininas, pois os crimes cometidos por elas não mais se encaixam apenas nos entendidos delitos femininos, havendo aumento nos índices de condenação por outros crimes171. Tem-se verificado, assim, aumento do número de mulheres envolvidas em assaltos, tráfico de drogas, seqüestros, brigas (individualmente ou em gangues), homicídios, entre outros, o que ressalta diferentes posições subjetivas delas no crime172:

Percebe-se que ao longo da década o tipo de crimes realizado por mulheres tem progressivamente se equiparado aos tipos considerados como crimes "próprios de homens". No primeiro trimestre de 1997 o principal delito cometido pelas mulheres era tráfico, sendo responsável por 34,2% das causas de prisão, um aumento de 2% em comparação com 1995. Seguidos por homicídios (22,36%) e roubos (17,10%). Em 1995 os homicídios representavam apenas 16,43% do total das condenações, enquanto que roubo e furto se igualavam em 19%173.

Tem ganhado destaque a participação de mulheres em delitos relacionados ao tráfico de drogas, como intermediação com os consumidores – a parte mais visível do tráfico, por isso mais freqüentemente detidas, além de estarem envolvidas com o transporte de drogas para outros países e fronteiras, o que explicaria o elevado número de mulheres estrangeiras nas prisões latino-americanas174. É costumeiramente reservado às mulheres, desse modo, um papel de menor importância dentro do esquema do tráfico, com a ocupação de posições subalternas e vulneráveis175.

Vários são os motivos apontados para o envolvimento das mulheres com a criminalidade, como matar por vingança, para roubar, por se sentirem violentadas, para se defender. Pode-se constatar que, por vezes, a conduta está ligada a sentimentos de vingança, hostilidade ou para sair de situações que as colocam como vítimas de violência e maus tratos176.

Algumas mulheres se envolvem diretamente com o crime no desempenho de funções de liderança, em razão da vontade de adquirir bens materiais, ter mais dinheiro, usar drogas como causa do envolvimento177.

A condição socioeconômica, através da necessidade de obtenção de renda, também é comumente apontada como fator motivador para a inserção no crime, principalmente para conseguir criar os filhos de forma digna, pois cada vez mais caberia a elas o papel de mantenedoras da família178, razão pela qual estas dificuldades socioeconômicas podem estar relacionadas também a questões afetivas, como abandono do lar pelo marido179.

Assim, o crime feminino constitui uma das estratégias de sobrevivência das mulheres das camadas populares, pois o tráfico, por exemplo, é uma maneira rápida de conseguir dinheiro para garantir o sustento dos filhos, especialmente quando falta um companheiro ou quando ele se encontra encarcerado. Nesta situação, a prática de crime acaba sendo uma forma de conseguir dinheiro para ajudar na manutenção do companheiro preso, dentro do estabelecimento prisional, ou, ainda, para pagar um advogado particular que possa obter sua liberdade180.

Apesar de toda a transformação que tem ocorrido no perfil criminológico feminino, com as mulheres cometendo crimes que não sejam tidos como “delitos de gênero”, alguns estudiosos tem verificado que o envolvimento de mulheres com estes crimes se dá em virtude de uma anterior relação afetiva, como esposas, companheiras, irmãs ou filhas de criminosos181:

Cumpre notar que há muitos estudiosos que acreditam que o envolvimento das mulheres no tráfico de drogas é inegavelmente marcado pela presença masculina, considerada o fator propulsor da entrada feminina no contexto do crime. Desse ponto de vista, as mulheres seriam influenciadas por parentes, amigos e namorados, supervalorizando essas relações sem se preocuparem individualmente com as conseqüências pessoais, deixando-se levar por impulsos emotivos.182

Tem-se percebido que, de alguma maneira as mulheres criminosas se referem a algum homem como sendo o responsável, direta ou indiretamente, pela sua inserção na criminalidade ou sua prisão.183 Esta participação se dá de diferentes formas:

Segundo os relatos, há diferentes tipos de participações, desde o envolvimento direto com a venda de entorpecentes, carregamento de drogas no Sistema Prisional para ajudar seu companheiro ou familiar que se encontravam preso, até participações indiretas, como o conhecimento e conivência de familiares que fazem de sua residência local para guardar ou vender droga. Dessa forma, quando a participante nega o delito, menciona geralmente autoria aos filhos ou companheiros, e quando assumem a participação no delito associam o delito ao sustento econômico ou como mantenedor do uso de drogas.184

Rita de Cássia Salmasso assevera que o delito que mais aparece nesta situação é o tráfico de drogas, quando a mulher atua mais como coadjuvante, e há uma figura do sexo masculino a ela ligada por laços de afetividade, como irmãos, parceiros, parentes. Observou-se também a presença de um número significativo de mulheres envolvidas com o crime de estelionato, detidas em razão de casos muito semelhantes aos observados no tráfico de entorpecente, com a mulher atuando como coadjuvante enquanto que o protagonista geralmente é um homem185.

Iara Ilgenfritz, da mesma forma, identificou que as mulheres envolvidas com o tráfico de drogas apontavam como motivos a “influências de terceiros, quase sempre homens com quem têm ou tiveram vínculos afetivos fortes (maridos, companheiros, namorados, filhos)”, aliada a dificuldades financeiras. Destaca, ainda, que muitas dessas mulheres foram presas quando tentavam transportar drogas para dentro dos presídios, principalmente dos masculinos, quando iam visitar familiares que se encontravam detidos186.

Gabriela Jacinto, juntamente com outros pesquisadores, constatou, da mesma forma, o envolvimento de mulheres com o tráfico de drogas a partir da união com alguém que já estava envolvido com o tráfico, uma figura masculina, sendo este um marido/companheiro, filho, irmão ou primo, apontando-o como justificativa preponderante entre as detentas do Presídio Feminino de Florianópolis187.

Miriam Ida Rodrigues Breitman vai mais longe ao afirmar que “certo tipo de delito não é cometido pelas mulheres sem a participação de um homem”, acrescentando que, nesses casos, não havendo testemunhas, eles buscam isentar as mulheres da culpa para que não sejam punidas, e possam, assim, cuidar da família ou conseguir os meios necessários à sua manutenção na prisão188.

Diante de tão relevantes constatações, é necessário que se analise de forma mais aprofundada as motivações das mulheres na prática de crimes, e que se verifique, ainda, se as situações descritas pelos pesquisadores acima citados ocorrem, da mesma forma, no Estado do Piauí, principalmente para que se possa verificar a efetiva participação masculina nos crimes femininos, em especial a forma como se dá esta participação, se apenas por influência direta ou se é possível que se dê por influência indireta, razão pela qual deve-se realizar um estudo mais aprofundado dos aspectos emocionais que envolvem as relações.

Sobre a autora
Malú Flávia Pôrto Amorim

Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Pós-graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Malú Flávia Pôrto. O fenômeno da dependência afetiva na criminalidade feminina no Estado do Piauí. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3265, 9 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21974. Acesso em: 22 nov. 2024.

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