3.O IPTU PROGRESSIVO E A PROIBIÇÃO DO TRIBUTO COM EFEITO DE CONFISCO
Sabe-se que a colisão entre regras é dirimida por meio do método do conflito aparente. Na impossibilidade de se solucionar o entrevero, declara-se a inconstitucionalidade da norma defeituosa.
Todavia, no que concerne ao abalroamento entre regras e princípios, o caminho é diverso.
Diferentemente das regras, que são aplicadas na base do tudo ou nada, os princípios, por serem direitos humanos fundamentais, irradiam mandamentos de otimização permeando todo o ordenamento jurídico. Logo, é natural que possam existir “choques de competências” entre princípios ou normas e princípios (ALEXY; Robert apud SILVA; Virgílio Afonso da, 2009, p. 47).
Neste diapasão, Virgílio Afonso da Silva aduz que na oposição de princípios a celeuma será sanada por intermédio das “relações condicionadas de precedência” (SILVA, 2009, p. 50).
Assim, a predileção por um ou por outro valerá apenas na análise em apreço e não induzirá a uma revogação já que os princípios foram introduzidos no ordenamento jurídico em razão das diversas conquistas sociais.
No que tange ao confronto entre regras e princípios, Robert Alexy entende que a primeira deverá ser dissecada e, portanto, extraída a sua essência que corresponderá ao princípio que norteou sua confecção (ALEXY; Robert apud SILVA; Virgílio Afonso da, 2009, p. 50).
Neste esteio, merece ressalva a seguinte indagação: como é possível se harmonizar o instituto do IPTU progressivo, propriedade privada, função social, vedação do confisco e dignidade da pessoa humana?
Pois bem, sabe-se que a propriedade privada adquiriu nova roupagem sob a égide da Constituição Federal de 1988. Esta, em conformidade com o Estado Social e Democrático de Direito, criou uma verdadeira relação de simbiose entre a função social e a propriedade privada. Logo, conclui-se que aqui não há relação de conflito nem sobreposição de um princípio pelo outro já que ambos dependem um do outro para existir.
Assim, conjugada a propriedade privada, função social e IPTU progressivo de natureza extrafiscal, conclui-se que tão pouco há confronto. A progressividade exarada nesta vertente se coaduna com a função social da propriedade na medida em que objetiva o bem da coletividade por meio da procura de uma cidade sustentável e em atenção as diretrizes dispostas no Plano Diretor.
Também se mostra em consonância com o bem estar da comunidade o IPTU progressivo de caráter fiscal. Embora esta modalidade possua cunho arrecadatório, utiliza a elevação da alíquota como mecanismo de isonomia tributária e promoção de políticas públicas.
Portanto e conforme já mencionava o então Ministro Carlos Velloso no julgamento do RE 153.771/MG de 1996, o IPTU progressivo de natureza fiscal cria, indiretamente, outra social função através da capacidade contributiva lastreada no valor do imóvel. Propriedades mais abastadas contribuem mais a favor dos necessitados (STF, 1996).
Tanto a vertente extrafiscal quanto a fiscal harmonizam-se, pois atuam no interesse da maioria e culminam por perfazer a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa pátria.
Constatado que a dignidade da pessoa humana guarda nexo com a função social da propriedade e é também essência do IPTU progressivo, resta a análise ponderada deste instituto em face da vedação ao confisco.
Ricardo Lobo Torres esclarece que “a proibição de confisco é imunidade tributária de uma parcela mínima necessária à sobrevivência da propriedade privada” (TORRES, 2005, p. 67).
Arimatéa, por sua vez, enfatiza que:
O poder de polícia não deve ir além do necessário para a satisfação do interesse público que visa proteger; a sua finalidade não é destruir os direitos individuais, mas, ao contrário, assegurar o seu exercício, condicionando-os ao bem-estar social (ARIMATÉA, 2003, p. 61).
Desta forma, como evitar que a progressividade tenha um efeito confiscatório e deite por terra todo o ordenamento jurídico suprimido postulados básicos e ultrajando garantias seculares?
Será que se estará diante de outra medida expropriatória excepcional como a contida no artigo 243 da Lei Maior?
A resposta é negativa e a solução é bem mais simples do que parece. Basta, para tanto, a utilização dos critérios já mencionados (conflito aparente de normas, relações condicionadas de precedência e ponderação).
No que concerne a progressividade extrafiscal, o caso é solucionado por meio do conflito aparente de normas, já que o parágrafo 4º do artigo 182 da carta magna prevê que eventual desapropriação deverá ser contemplada em superveniente plano diretor e em conformidade com os ditames do Estatuto da Cidade. Sendo a lei municipal hierarquicamente inferior ao Constituição Federal, deve, por decorrência lógica, respeitar o postulado da vedação ao confisco (critério hierárquico). Para tanto, lembre-se que o inciso primeiro do artigo 24 da CR de 1988 estabelece competência legislativa concorrente (vertical) as pessoas jurídicas de direito público para versarem sobre direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico.
Outrossim, ressalva-se que a desapropriação deverá ser ultimada tão somente quando restar ineficaz os postulados corretivos dispostos nos incisos I e II do parágrafo 4º do artigo 182 da Carta Constitucional.
Ato contínuo, merece lembrança que o parágrafo 1º do artigo 7º da Lei 10.257 prevê que “o valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na Lei específica a que se refere o caput do art. 5º desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento”.
Destarte, Paulo Macedo esclarece que:
O art. 182, § 4º da Lei Maior impõe penalidades sucessivas, não se tratando a incidência de IPTU progressivo da mais severa delas e sim aquela prevista no inciso III do mencionado parágrafo (a desapropriação). E, mesmo no caso extremo de o proprietário de imóvel urbano não proceder o seu adequado aproveitamento após cinco anos de incidência da alíquota máxima do IPTU progressivo (art. 8º do Estatuto da Cidade), garantiu o texto constitucional (art. 182, § 4º, III) que o mesmo receberá o valor real da indenização e os juros legais, vedando assim o confisco, embora permitida a desapropriação (MACEDO, 2004, p. 20).
Logo, afere-se que a progressividade extrafiscal, seja por meio da solução do conflito através do critério hierárquico ou do respeito a alíquota máxima estabelecida no artigo 7º do Estatuto da Cidade, não permite a tributação com efeito de confisco e não autoriza expropriação, já que apenas admite a desapropriação de forma indenizada.
Em contrapartida, no que tange a progressão fiscal, ao se decompor a norma, extrai-se que sua essência prima pelo bem estar social na promoção de políticas públicas e na busca pela isonomia. Porém, o desenvolvimento local não pode conduzir cidadãos a bancarrota sob pena de afronta a dignidade da pessoa humana e usurpação do mínimo existencial.
Neste esteio, embora não exista propriamente um tutorial acerca da instituição da progressividade fiscal, fato é que ela também não poderá expropriar bens já que a Constituição Federal de 1988 apenas autoriza esta nos termos de seu artigo 243.
Cumpre ventilar, ainda, que a vedação ao confisco, em ambos os casos, deve ser entendida como uma limitação ao poder de tributar do Estado. Sendo este um direito fundamental do contribuinte, espalha-se, portanto, por todo o ordenamento jurídico.
Por fim, Castilho, ressalva que “não se admite tributação exacerbada, que ultrapasse os limites da razoabilidade, ou seja, que não guarde correlação lógica entre meio e fim” (MACEDO; Paulo apud CASTILHO; Paulo de Barros, 2004, p. 24).
Assim, não paira dúvidas de que o IPTU progressivo confere destinação útil à propriedade privada, aplicando-lhe fim socializante, tutelando direitos individuais, coletivos e transindividuais na promoção de um ambiente sadio, gerando, desta forma, condições dignas de existência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo tentou demonstrar, ainda que de maneira sucinta, que o objetivo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana é a promoção do bem estar coletivo.
Para o Ministro Carlos Velloso, a progressividade do IPTU, de uma forma generalizante, atenderá sempre a função social.
Neste espeque, vê-se que a majoração de natureza arrecadatória alcançará seu fim social através da isonomia tributária. Propriedades mais abastadas deverão contribuir mais em favor dos necessitados, pois uma maior arrecadação, em tese, beneficiará a promoção dos direitos sociais.
No que tange a elevação da alíquota de natureza extrafiscal, extrai-se que a correção dos desvios comportamentais também guarda íntimo nexo com a função social da propriedade já que tem por escopo atender aos anseios dos constituintes, conferindo destinação útil e satisfatória (nos ditames do plano diretor) aos prédios e terrenos urbanos.
Portanto, mais uma vez se afirma aqui que a progressividade do IPTU representa a busca por um ambiente sadio, pois tenta homogeneizar as disparidades perseguindo um ambiente sustentável.
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