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Organizações criminosas e o pensamento mágico midiático

Agenda 21/06/2012 às 08:38

Nenhuma lei no Brasil definiu o que se entende por crime organizado. Não existe, do ponto de vista jurídico, o crime de “organização criminosa”. Tudo que se tenta extrair daí (por ora) não passa de um pensamento mágico cavernoso, que deve ser extirpado do ordenamento jurídico.

Existe crime organizado no Brasil? Se imaginarmos o crime organizado como uma atividade empresarial que explora algum tipo de mercado ilícito, a resposta só pode ser positiva. No plano fático (fenomenológico) ele existe. Deve se dizer a mesma coisa a respeito do populismo penal midiático. Não há dia em que algum órgão midiático não esteja praguejando o crime organizado.

No plano jurídico, no entanto, ele não existe. Nenhuma lei no Brasil, nunca, definiu o que se entende por crime organizado (ou por organização criminosa). Um dos maiores exemplos de autoritarismo penal, decorrente do populismo penal midiático, consiste em o juiz se valer desse “fantasma jurídico” (crime organizado ou organização criminosa) para tolher qualquer tipo de direito ou garantia fundamental dos suspeitos, indiciados, acusados ou condenados. Juridicamente os juízes estão proibidos de determinar qualquer tipo de consequência penal ou processual com base nesse “fantasma jurídico”, que é fruto de um dos pensamentos mágicos da atualidade.

Pensamento mágico. Nossos antepassados, nos tempos das cavernas, desenhavam alguns animais nas paredes dos seus “lares” e acreditavam, em razão de uma suposição disparatada, que tendo as imagens pintadas, possuíam o objeto representado. Isso acontecia por força do chamado pensamento mágico, que consiste em um raciocínio causal que procura estabelecer correlações entre algumas ações ou elocuções e determinados eventos. Fala-se aqui também, como sublinha Zaffaroni (2011, p. 380), em causalidade mágica (a partir de uma imagem, acredita-se na posse do objeto nela retratado).

Populismo penal midiático e suas crenças mágicas. O pensamento mágico que dominava a cabeça dos nossos ancestrais continua presente em plena pós-modernidade (século XXI), ao menos no que diz respeito à política criminal e segurança pública. O populismo penal midiático é pródigo em difundir (nessas áreas) dezenas de crenças mágicas (de que mais leis penais significam menos crimes, mais prisões implicam mais prevenção, leis mais duras diminuem a criminalidade etc.). Não são poucas as pessoas que acreditam nessas causalidades irreais. Destaque especial merecem os legisladores.

A crença de que existiria juridicamente o crime organizado. Num determinado dia os legisladores brasileiros elaboraram uma lei para cuidar da criminalidade organizada (Lei 9.034/95), mas não a definiram. Ninguém sabe até hoje o que se entende, do ponto de vista jurídico, por organização criminosa. Pintaram uma imagem na lei (no diário oficial) e, tal como nossos antepassados, passaram a acreditar que já possuíam o objeto representado. Bastaria o desenho na parede!

Disseminação da imagem pintada. Com base em um pensamento mágico, os legisladores começaram a vincular uma série de consequências jurídicas àquela imagem vaga e porosa desenhada no diário oficial. As leis passaram a fazer referência às organizações criminosas, como se elas existissem no mundo jurídico (nesse sentido: lei de execução penal, lei da quebra de sigilo bancário, regime disciplinar diferenciado, lei de drogas etc.).

Lavagem de capitais e a imagem desenhada na lei. Dentre elas se acha a lei de lavagem de capitais (inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98), que definiu como crime ocultar a origem de bens, valores ou capitais oriundos de organização criminosa. Considerando-se que as organizações criminosas, como “crime antecedente”, não existem juridicamente, resulta claro que tampouco pode se falar em lavagem de dinheiro. Sem o precedente não existe o consequente (de acordo com a estrutura da lei brasileira). Sem a causa não decorre o efeito. O pensamento mágico do legislador, que acredita - por força do populismo penal midiático - em realidades inexistentes assim como em causalidades irreais, não é suficiente para transformar em coisa material o que só existe na sua imaginação.

STF põe fim a um pensamento mágico das cavernas. O mundo das imagens e das causalidades mágicas (crenças em coisas não verdadeiras) é bem diverso do mundo real. Num determinado dia, no entanto, também o Ministério Público acreditou na imagem cavernosa das organizações criminais. Processou os donos da Igreja Renascer em Cristo por crime de lavagem de capitais. A Primeira Turma do STF, no dia 12.06.12, por unanimidade, deferiu pedido de Habeas Corpus (HC 96.007-SP) para encerrar definitivamente a ação penal promovida pelo Ministério Público contra os fundadores da Igreja Renascer em Cristo pela suposta prática do crime de lavagem de dinheiro, que seria decorrente de uma “organização criminosa”, consistente em arrecadar bens e valores dos seus fiéis de forma fraudulenta.

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Voto-vista da Ministra Cármen Lúcia:

“A matéria voltou a julgamento com a apresentação do voto-vista da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha que, em novembro de 2009, havia pedido vista dos autos após os votos dos ministros Marco Aurélio (relator) e Dias Toffoli, favoráveis ao encerramento da ação penal contra os líderes da Igreja Renascer. Na sessão de 12.06.12, a ministra Cármen Lúcia votou da mesma forma, concedendo a ordem e, na sequência do julgamento, os ministros Luiz Fux e Rosa Weber também se manifestaram nesse sentido. A ministra Cármen Lúcia ressaltou a atipicidade do crime de organização criminosa, tendo em vista que o delito não consta na legislação penal brasileira. Ela afirmou que, conforme o relator, se não há o tipo penal antecedente, que se supõe ter provocado o surgimento do que posteriormente seria “lavado”, não se tem como dizer que o acusado praticou o delito previsto no artigo 1º da Lei 9.613/98.”

“De acordo com a ministra, a questão foi debatida recentemente pelo Plenário do Supremo, que concluiu no sentido do voto do ministro Marco Aurélio, ou seja, de que “a definição emprestada de organização criminosa seria acrescentar à norma penal elementos inexistentes, o que seria uma intolerável tentativa de substituir o legislador, que não se expressou nesse sentido”. “Não há como se levar em consideração o que foi denunciado e o que foi aceito”, concluiu”.

Conclusão: não existe no Brasil, do ponto de vista jurídico, o crime de “organização criminosa”. Tudo que se tenta extrair daí (por ora) não passa de um pensamento mágico cavernoso, que deve ser extirpado do ordenamento jurídico brasileiro o mais pronto possível. O mundo mágico (oriundo das cavernas) não se coaduna com a segurança jurídica exigida pelo Estado de Direito.

Tratado de Palermo e o Crime Organizado transnacional. Primeiro vem o pensamento mágico (a crença de que existiria organização criminosa no Brasil, do ponto de vista jurídico). Em segundo lugar as tentativas discursivas de racionalização do citado pensamento. A Lei 9.034/95 não conceitua o que é organização criminosa. Surgiram duas correntes doutrinárias sobre o assunto: a) uma primeira corrente entende que não existe mesmo o conceito legal de organizações criminosas no Brasil; b) a segunda defende a possibilidade de se fazer uso do conceito dado pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, realizada em Palermo (Convenção de Palermo) em 15.12.2000.

Conteúdo do Tratado de Palermo. De acordo com a Convenção de Palermo:

Artigo 2º

Terminologia

Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:

a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material; (Destacamos)

O direito internacional e a definição de crime no Brasil. A convenção de Palermo foi ratificada pelo Decreto legislativo 231 e pelo Decreto 5.015/2004. Ocorre que nenhum texto internacional pode suprir a garantia da legalidade para disciplinar crimes dentro do Brasil. O texto internacional pode definir crimes para efeitos internacionais (para aplicação pelos tribunais internacionais – TPI, por exemplo). Admitir o Tratado de Palermo como fonte normativa da organização criminosa no Brasil significa violar a sub-garantia da lex populi (lei discutida, votada e aprovada pelo Parlamento brasileiro). No caso dos tratados internacionais a ratificação do legislativo não pode alterar o seu conteúdo. Daí o não atendimento da garantia da legalidade.

Conceito de crime organizado. Não havendo descrição típica no direito interno brasileiro, pretende-se (grande parte da doutrina) fazer a integração do direito interno com o direito internacional. O conceito de organização criminosa, dessa maneira, estaria dado pelo Decreto 5.015, de 2004:

“DECRETO Nº 5.015, DE 12 DE MARÇO DE 2004.

Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e

Considerando que o Congresso Nacional aprovou, por meio do Decreto Legislativo nº 231, de 29 de maio de 2003, o texto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000;

Considerando que o Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação junto à Secretaria-Geral da ONU, em 29 de janeiro de 2004;

Considerando que a Convenção entrou em vigor internacional, em 29 de setembro de 2003, e entrou em vigor para o Brasil, em 28 de fevereiro de 2004;

DECRETA:

Art. 1º A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém.

Art. 2º São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão da referida Convenção ou que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, nos termos do art. 49, inciso I, da Constituição.

Art. 3º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 12 de março de 2004; 183º da Independência e 116º da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA. Samuel Pinheiro Guimarães Neto.

Da inadmissibilidade da tese da admissão da Convenção de Palermo. A tese da admissão deste conceito de organização criminosa no direito interno brasileiro enfrenta vários obstáculos:

(a) a Convenção versa (só) sobre a criminalidade organizada transnacional; admiti-la internamente para a criminalidade organizada não transnacional significaria autorizar (no Direito penal) a analogia in malam partem (que é vedada);

(b) os tratados internacionais (centrípetos) não podem definir crimes e penas no Brasil (que exigem, por força da garantia da lex populi, uma lei discutida e aprovada pelo parlamento brasileiro);

(c) a definição de crime no Brasil exige uma lei formal. A utilização de um “decreto” para isso viola o princípio da legalidade;

(d) ainda que um “decreto” pudesse cumprir esse papel, como bem enfatizou o Min. Marco Aurélio (HC 97.006-SP), no Tratado de Palermo não  existe a previsão de nenhuma pena. E não existe crime sem pena (ou seja: sem a cominação de uma sanção penal o crime não se transforma em fato punível).

Quando o direito internacional pode ser aplicado internamente? Em relação ao Direito internacional impõe-se fazer a seguinte distinção: quando se trata das relações do indivíduo com organismos internacionais (com o Tribunal Penal Internacional, v.g.), os tratados e convenções constituem as diretas fontes desse Direito penal, ou seja, eles definem os crimes e as penas. É o que foi feito, por exemplo, no Tratado de Roma (que criou o TPI). Nele acham-se contemplados os crimes internacionais (crimes de guerra, contra a humanidade etc.) e suas respectivas sanções penais. Como se trata de um ius puniendi que pertence ao TPI (organismo supranacional), a única fonte (direta) desse Direito penal só pode mesmo ser um Tratado internacional. Quem produz esse específico Direito penal são os Estados soberanos que subscrevem e ratificam o respectivo tratado.

Direito penal interno. Cuidando-se do Direito penal interno (relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro) tais tratados e convenções não podem servir de fonte do Direito penal incriminador, ou seja, nenhum documento internacional, em matéria de definição de crimes e penas, pode ser fonte normativa direta válida para o Direito interno brasileiro. O Tratado de Palermo (que definiu o crime organizado transnacional), por exemplo, não possui valor normativo suficiente para delimitar internamente o conceito de organização criminosa (até hoje inexistente no nosso país) (STF, HC 97.006-SP).

Fundamento da tese anterior. O que acaba de ser dito fundamenta-se no seguinte: quem tem poder de celebrar tratados e convenções é o Presidente da República (Poder Executivo) (CF, art. 84, VIII), mas sua vontade (unilateral) não produz nenhum efeito jurídico enquanto o Congresso Nacional não aprovar (referendar) definitivamente o documento internacional (CF, art. 49, I). O Parlamento brasileiro, de qualquer modo, não pode alterar o conteúdo daquilo que foi subscrito pelo Presidente da República (em outras palavras: não pode alterar o conteúdo do Tratado ou da Convenção). O que resulta aprovado, por decreto legislativo, não é fruto ou expressão das discussões parlamentares, que não contam com poderes para alterar o conteúdo do que foi celebrado pelo Presidente da República. Uma vez referendado o Tratado, cabe ao Presidente do Senado Federal a promulgação do texto (CF, art. 57, § 5º), que será publicado no Diário Oficial. Mas isso não significa que o Tratado já possua valor interno. Depois de aprovado ele deve ser ratificado (pelo Executivo). Essa ratificação se dá pelo Chefe do Poder Executivo que expede um decreto de execução (interna), que é publicado no Diário Oficial. É só a partir dessa publicação que o texto ganha força jurídica interna.[1]

Conclusão. Os tratados e convenções configuram fontes diretas (imediatas) do Direito internacional penal (relações do indivíduo com o ius puniendi internacional, que pertence a organismos internacionais – TPI, v.g.), mas jamais podem servir de base normativa para o Direito penal interno (que cuida das relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro), porque o parlamento brasileiro, neste caso, só tem o poder de referendar (não o de criar a norma). A dimensão democrática do princípio da legalidade em matéria penal incriminatória exige que o parlamento brasileiro discuta e crie a norma. Isso não é a mesma coisa que referendar. Referendar não é criar ex novo.

Impossibilidade de analogia contra o réu. Se a Convenção da ONU (Convenção de Palermo) diz respeito à criminalidade organizada transnacional, aplicá-la no direito interno para a criminalidade (uma espécie de criminalidade) que não reúne essa característica significa violar a garantia da lex stricta e admitir analogia contra o réu (analogia in malam partem). Em direito penal só vale (contra o réu) o que está na lei. Se o fato está expressamente previsto na lei pode o Estado adotar medidas restritivas (dos direitos fundamentais) contra o réu. Se o fato não está expressamente previsto na lei (lei formal, aprovada pelo parlamento) nada pode ser feito contra ele.

A garantia da forma jurídica. A Convenção da ONU estabeleceu uma determinada forma (jurídica). Essa forma jurídica só pode ter incidência em relação aos fatos rigorosamente adequados a ela. Uma criminalidade interna não tem nada a ver com criminalidade internacional ou transnacional. A divergência que existe entre a realidade (os fatos) e a forma jurídica criada (criminalidade transnacional) nos conduz a concluir que essa forma jurídica é inaplicável para fatos que não condizem com o seu conteúdo estrito.

Direito internacional centrípeto não pode definir crimes e penas no direito interno brasileito. De outro lado, não pode o direito internacional (centrípeto) criar crimes e penas em relação ao direito interno. A relação que existe entre o direito internacional e o direito interno, no âmbito da descrição típica, é a seguinte:

(a) quando se trata das relações do indivíduo com organismos internacionais (com o Tribunal Penal Internacional, v.g.), os tratados e convenções constituem as diretas fontes desse Direito penal, ou seja, eles definem os crimes e as penas. É o que foi feito, por exemplo, no Tratado de Roma (que criou o TPI). Nele acham-se contemplados os crimes internacionais (crimes de guerra, contra a humanidade etc.) e suas respectivas sanções penais. Como se trata de um ius puniendi que pertence ao TPI (organismo supranacional), a única fonte (direta) desse Direito penal só pode mesmo ser um Tratado internacional. Quem produz esse específico Direito penal são os Estados soberanos que subscrevem e ratificam o respectivo tratado;

(b) cuidando-se do Direito penal interno (relações do indivíduo com o ius puniendi do Estado brasileiro) tais tratados e convenções não podem servir de fonte do Direito penal incriminador, ou seja, nenhum documento internacional, em matéria de definição de crimes e penas, pode ser fonte normativa direta válida para o Direito interno brasileiro. O Tratado de Palermo (que definiu o crime organizado transnacional), por exemplo, não possui valor normativo suficiente para delimitar internamente o conceito de organização criminosa (até hoje inexistente no nosso país).


Nota

[1]  Cf. MAZZUOLI, Valério de Oliveira, Curso de Direito Internacional Público, 2. ed., São Paulo: RT, 2007, p. 291 e ss.

Sobre o autor
Luiz Flávio Gomes

Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998), Advogado (1999 a 2001) e Deputado Federal (2019). Falecido em 2019.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Organizações criminosas e o pensamento mágico midiático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3277, 21 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22078. Acesso em: 23 dez. 2024.

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