4.Teorias Publicistas
Não tendo as teorias civilistas resistido às críticas que contra ela se lançaram, logram espaço no cenário jurídico teorias fundadas em princípios específicos de direito público, independente das anteriores concepções civilistas. Nesse momento, começaram a surgir as denominadas teorias publicísticas da responsabilidade do Estado, a exemplo da teoria da culpa do serviço e da teoria do risco.
Essa terceira fase da evolução histórica da responsabilidade civil do Estado coincide com a consagração do Estado Social. Nela, a responsabilidade do Poder Público torna-se autônoma, como matéria específica do Direito Administrativo, o que se logrou, sobretudo, a partir do labor do Conselho de Estado francês (DERGINT, 1994, p. 38).
Enquanto vigia o reconhecimento da responsabilidade do Estado nos moldes civilistas, era evidente que, na França, a competência para apreciar ações indenizatórias propostas em face de agentes públicos ou do próprio Estado era da justiça comum, como o seria se o fosse em face de um particular (CAMPOS, 2011, p. 9).
O marco histórico dessa guinada deu-se com o famoso caso Blanco[6], no qual houve a efetiva submissão do Estado à responsabilidade com base em princípios próprios de Direito Público. O Tribunal de Conflitos consagrou o reconhecimento da responsabilidade estatal e atribuiu competência ao sistema de contencioso administrativo – excluindo, pois, a do sistema judicial comum – para examinar os pedidos de indenização formulados por particulares contra o Estado.
Na verdade, no caso Blanco o Tribunal de Conflitos nada mais fez do que reafirmar e consagrar os fundamentos anteriormente adotados pelo Conselho de Estado no caso Rothschild, de 6 de dezembro de 1855. Mas foi a partir do caso Blanco que essa jurisprudência se manteve firmemente no Conselho de Estado e na Corte de Cassação (DUEZ, 1938, p. 19).
A partir de então, se desenvolveram as teorias que, inicialmente, despersonalizaram a culpa, posteriormente substituída pelo risco, culminando, enfim, com a responsabilidade objetiva do Estado.
4.1. Teoria da culpa do serviço
A teoria da culpa do serviço visava substituir a ideia da culpa do funcionário pela noção de culpa anônima, assim entendida, segundo a clássica lição de Paul Duez, como aquela existente quando “1) le service a mal fonctionné (culpa in commitendo;) 2) le service n’a pas fonctionné (culpa in omittendo); le service a fonctionné tardivement”. Para o francês, essa divisão corresponde, essencialmente, à evolução cronológica da jurisprudência do Conselho de Estado (1938, p. 27). No primeiro título, se incluem os casos de comportamentos e atividades da administração suscetíveis de causar danos, sendo a primeira e mais evidente parte das teorias.
Com relação ao não funcionamento do serviço, trata-se de situação na qual o Estado, não agindo, comete uma falta, pois estava obrigado a agir. Nesse caso, deve reparar as consequências de sua inação. Isto porque o exercício de uma competência administrativa não é um privilégio, mas um dever para o agente que tem obrigação funcional de ser vigilante. Valendo tal assertiva não só para os casos de competência vinculada, trata-se de uma alternativa encontrada pelo Conselho de Estado para controlar o poder discricionário da administração: apesar de não poder obriga-la a agir, por não haver, estritamente, ilegalidade, poderia declará-la responsável pelas consequências na omissão (DUEZ, 1938, p. 29-30).
Por fim, adveio a responsabilidade pela lentidão do serviço, modalidade mais recente de culpa administrativa. A administração tem por dever funcional der diligente, e a falta de certo grau de diligência administrativa deve ser sancionada pela responsabilidade. Trata-se de um poder de censurar a inércia da administração (DUEZ, 1938, p. 34-35).
Em todas as três categorias, não importa se o dano é causado por um ato jurídico ou um fato material, ambos podem, igualmente, ensejar a responsabilidade. Ademais, não é necessário que tenha tido lugar uma ilegalidade para que se reconheça a responsabilidade, bastante a ocorrência de negligência ou erro de fato para tanto. E, por fim, supera-se definitivamente a distinção entre atos de império e atos de gestão, sendo tal separação irrelevante para a configuração do dever de indenizar (DUEZ, 1938, p. 38).
Como se pode observar, a grande contribuição de Duez à teoria da responsabilidade civil do Estado repousa na sistematização do afastamento entre a noção de culpa individual do funcionário e a de culpa do serviço, ou seja, torna-se desnecessário precisar, dentro do universo dos servidores estatais, aquele que laborou com culpa individual. Afasta-se definitivamente das antigas noções de culpa in vigilando ou in elegendo das pessoas de direito público, bem como as analogias com as regras privadas de responsabilidade do patrão ou comitente por seus funcionários ou prepostos (SERRANO JÚNIOR, 1996, p. 56).
A culpa administrativa deve, nesse contexto, ser fundada em caracteres próprios, a saber: a culpa é autônoma, primária, anônima, matizada e geral.
Por culpa autônoma, entende-se a culpa desapegada das noções de direito civil, sendo uma construção original a partir dos princípios de direito público. Não se trata, sequer, de uma adaptação das ideias civilistas. Tal concepção foi cristalizada no já referido caso Blanco. Nele, o autor pleiteou a responsabilidade do Estado com fundamento no Código Civil francês, ao passo que o Conselho de Estado, apesar de reconhecê-la, fixou expressamente que a responsabilidade que pode incumbir ao Estado pelos danos causados aos particulares não pode ser regida por princípios estabelecidos naquele estatuto, mas por regras especiais que variam de acordo com as necessidades do serviço e o imperativo de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados (FRANÇA, 1873, p. 2).
O caráter primário da culpa do serviço revela-se na possibilidade da vítima acionar diretamente o Estado, sem, necessariamente, precisar acionar o por primeiro funcionário ou provar sua insolvência. A personalidade do agente não mais aparece, pois sua figura é absorvida dentro da organização administrativa, da qual é um simples órgão. É essa característica que torna inviável a aplicação do já citado art. 1.384 do Código Civil francês ao caso, pois este prevê a dualidade de personalidades, tornando o comitente responsável pela culpa de seu preposto (DUEZ, 1938, p. 20-21).
A culpa é dita anônima por não exigir que se identifique a culpa de um funcionário nominalmente identificado. Basta demonstrar uma má condução do serviço no bojo do qual o dano pode ser imputado a uma falha, seja na sua organização, seja no seu funcionamento. Julga-se o serviço, e não mais o agente (DUEZ, 1938, p. 21-22).
Ademais, nem todo serviço defeituoso ensejará responsabilidade. A culpa deve ser matizada de acordo com o serviço, o local e as características. Deve-se aprecias a culpa in concreto, segundo a diligência média que se pode legitimamente esperar do serviço (DUEZ, 1938, p. 24-25).
Por fim, a culpa deve ser geral, englobando não só a responsabilidade do Estado, mas de todas as entidades que integram a administração pública. A relevância que Duez deu a esse caráter deve-se à relutância inicial da jurisprudência francesa em conferir às comunas o mesmo tratamento dado ao Estado central, aplicando-lhe as teorias de direito privado mesmo após consolidado o entendimento acerca da autonomia da culpa (1938, p. 25). No nosso ordenamento, tal concepção revela-se importante para afirmar a unidade da teoria da responsabilidade civil em face de todas as pessoas jurídicas de direito público, bem como as pessoas privadas que prestam serviços públicos, ainda que não integrem a administração, nos termos do art. 7º da Constituição Federal de 1988.
Como restou demonstrado, a culpa ainda é elemento nuclear dessa teoria publicista, de modo que não é correto considera-la vertente de responsabilidade objetiva. É, isto sim, reponsabilidade subjetiva, lastreada na culpa, ainda que redefinida segundo critérios de direito público. Em diversas situações, nas quais ainda assim seria um esforço desproporcional para o particular provar a culpa anônima, tal teoria contempla uma presunção, o que, por dispensar o lesado dessa prova, faz parecer que a culpa é irrelevante. Mas não é esse o caso, pois, tratando-se de verdadeira inversão do ônus da prova, o Estado poderia se esquivar da reparação, bastando para tanto provar que o seu serviço não padecia de culpa – o que demonstra que o elemento subjetivo ainda permanecia subjacente à questão.
Da doutrina de Duez acima referida dessume-se que a teoria da culpa do serviço era aplicável especialmente em situações de omissão estatal (serviço que não funcionou, não funcionou a tempo). Mas, para ele, de acordo com a jurisprudência administrativa, não será qualquer culpa do serviço que engendrará a responsabilidade; mas somente aquela dotada de certa gravidade, apreciada in concreto, em cada caso, em função da diligência que o administrado pode legitimamente exigir da Administração. Tal apreciação deve ter em conta as circunstâncias de tempo, de lugar, os encargos do serviço, os recursos disponíveis para fazer face às obrigações, a situação da vítima à vista do serviço público e a natureza do serviço causador do dano (1938, p. 40-47).
4.2.Teoria do Risco
Sem abandonar a teoria da culpa do serviço, o Conselho de Estado francês passou a adotar a teoria do risco, que serve de fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado. Nela, a noção de culpa é substituída pela noção de nexo de causalidade entre o funcionamento do serviço e o prejuízo experimentado pela vítima, derivado do risco ínsito à atividade administrativa, pouco importando se houve ou não um funcionário culpado ou se o serviço funcionou bem ou mal. E tampouco a Administração poderá se livrar da responsabilidade provando que não agiu com culpa, seja do serviço, seja do funcionário.
O próprio direito civil já vem adotando a teoria do risco em diversos cenários. Tal ideação resulta de uma visão que substituiu o patrimonialismo do Século XIX, fruto dos ideais iluministas, pela concepção mais solidarizante da sociedade, na qual há a valorização da dignidade da pessoa humana (PEDRO, 2011, p. 65). Nesse sentido, sintomática foi a edição do Código de Defesa do Consumidor, de 1990, que incorporou a teoria do risco nas relações de consumo, e tornou lá, por primeiro, despicienda a distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual.
O próprio Código Civil de 2002, apesar de ainda prever a culpa como núcleo do sistema (arts. 186 e 187), introduziu a teoria do risco numa cláusula geral (art. 927, parágrafo único). Tal passo civilista é, nitidamente, influente e influenciada pelas modernas concepções da responsabilidade do Estado.
Nesse jaez, legitima-se a atribuição de responsabilidade ao Estado pelos danos causados por sua atividade, seja ela lícita ou ilícita. Sendo o risco inerente à atividade administrativa, deve ele ser suportado pelo próprio Estado, uma vez que “quem cria o risco deve, se este risco vem a verificar-se à custa de outrem, suportar as consequências, abstração feita de qualquer falta cometida. [...] ‘Qui casse les verres les paye’; quem criar um risco deve suportar a efetivação dele” (JOSSERAND, 1941, p.556-557).
O fundamento de tal teoria é, remotamente, o princípio da isonomia e, mais proximamente, o princípio da repartição dos ônus e encargos sociais, previsto no art. XIII da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1787[7]. Ora, se o Estado age para beneficiar todos os cidadãos, também os prejuízos experimentados por alguns especificamente devem ser repartidos entre todos, o que será feito através do repasse, àqueles que tenham sido especialmente agravados, de recursos do erário. Com expôs Lessa, os serviços públicos acarretam necessariamente certos males, e estes devem ser sofridos por todos, contribuindo cada um para a indenização do dano que incidir numa só pessoa (1915, p. 164).
A respeito, pioneira no contexto nacional foi a lição de Amaro Cavalcanti:
assim como a igualdade dos direitos, assim também a igualdade dos encargos, é hoje fundamental no direito constitucional dos povos civilisados. Portanto, dado que um indivíduo seja lesado nos seus direitos, como condição ou necessidade do bem commum, segue-se, que os effeitos da lesão, ou os encargos da sua reparação, devem ser igualmente repartidos por toda a conectividade, isto é, satisfeitos pelo Estado,— afim de que, por este modo, se restabeleça o equilibrio da justiça commutativa: “Quod omnes tangit, ab omnibus debet supportari” (1905, p.XI).
A teoria do risco admite variações acerca da amplitude do risco a ser assumido pelo autor do fato, falando-se, aí, em risco administrativo, risco integral ou risco social.
Pelo risco administrativo, em que pese não se discutir a existência ou não de culpa, pode o Estado furtar-se à indenização caso demonstre a inexistência de nexo causal entre uma conduta sua e o dano alegado – o que pode ser obtido pela prova de situação de caso fortuito ou força maior, e culpa exclusiva da vítima ou de terceiro. E, quando tais fatores, apesar de não excluírem o liame causal, concorrem para o evento danos, verá o Estado ser minimizada a sua responsabilidade, proporcionalmente à sua relevância na produção do dano.
O risco integral, por sua vez, é a modalidade extremada da doutrina do risco, pela qual o Estado assumiria a responsabilidade por qualquer dano causado a qualquer vítima, numa concepção extremamente alargada de nexo causal. Não cabe, segundo tal teoria, a alegação de excludentes do nexo a fim de elidir a responsabilidade estatal. Nas palavras de Dergint, “obrigar-se-ia o Estado a indenizar todo e qualquer dano, ainda que decorrente de dolo ou culpa da vítima, o que levaria ao abuso e à iniquidade social” (1994, p. 45). Por conta disso, sua aplicação no cenário jurídico atual é absolutamente excepcional[8].
Por fim, o risco social enseja a chamada responsabilidade sem risco, tem por fundamento o Estado como garantidor da paz social e da realização das necessidades coletivas e individuais dos cidadãos (RIBEIRO, 2003, p. 31). Trata-se de indenização por danos assumida pelo Estado, mas que não derivou de qualquer comportamento seu, cujo objetivo é não deixar a vítima alijada de qualquer reparação, em casos em que não se logra identificar o responsável ou em casos de insolvência do mesmo.
Há ainda quem distinga a teoria do risco da teoria do dano objetivo, a qual prevê a responsabilização do Estado com fundamento exclusivamente na teoria da repartição dos ônus e encargos sociais, tornando desnecessária a investigação acerca de ser a atividade arriscada ou perigosa. Nesse sentido, existem danos causados pelas atividades estatais lícitas, que visam atender a interesses da sociedade, mas que oneram somente algumas pessoas. Não seria legítimo, pois, impor-lhes o sacrifício individualmente, para o benefício de toda a sociedade. Assim, a relevância da análise se deslocaria da conduta (atividade de risco) para o dano, que deve, para ensejar tal responsabilidade, ser qualificado como específico e anormal. Será específico quando recair apenas sobre pessoa ou pessoas determinadas; será anormal quando superar os meros aborrecimentos inerentes à vida cotidiana (SERRANO, JÚNIOR, 1996, p. 60-61).
No Brasil, como dito alhures, a teoria do risco administrativo foi consagrada expressamente, como regra geral, a partir da Constituição de 1946, em seu art. 194[9]. A previsão da culpa restringiu-se à ação de regresso contra os funcionários causadores do dano, com o que se rejeitou categoricamente a solidariedade entre Estado e funcionário. Tais dispositivos foram repetidos no art. 105 da Constituição de 1967 e no art. 107 da Emenda Constitucional nº 1, de 1969[10].
Atualmente, a matéria encontra-se disciplinada pela CF/88 no seu art. 37, § 6º, a qual fez englobar na mesma teoria a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, e alterou a referência a “funcionários”, substituindo-a pela noção mais abrangente de “agentes”.
Embora não conste nos citados dispositivos constitucionais clara referência à responsabilidade objetiva ou à desnecessidade de culpa, não se tem dúvidas que a previsão expressa do elemento subjetivo para viabilizar a ação de regresso contra o funcionário/agente público num parágrafo permitia interpretar o silêncio do caput como eloquente. Identicamente, a não reprodução da tradicional redação constante de Constituições anteriores reforça tal argumento, pelo que não mais se discute a adoção constitucional da teoria do risco na responsabilização do Estado, ao menos como regra geral (CAHALI, 2007, p. 32).
O vigente Código Civil de 2002, em seu art. 43, também consagra a responsabilidade objetiva do Estado, apesar de omitir-se quanto à responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviços públicos, advindo atrasado em relação à CF/88, no particular.
O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já sufragou expressamente essa teoria, como se pode observar no seguinte aresto:
CONSTITUCIONAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. C.F., 1967, art. 107. C.F./88, art. 37, par-6. I. A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. A consideração no sentido da licitude da ação administrativa e irrelevante, pois o que interessa, e isto: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, e devida a indenização, que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais. II. Ação de indenização movida por particular contra o Município, em virtude dos prejuízos decorrentes da construção de viaduto. Procedência da ação. III. R.E. conhecido e provido (BRASIL, 1992, p. 1).
Ante a clareza de tais dispositivos, não mais se contesta a admissão, pelo ordenamento jurídico pátrio, da responsabilidade objetiva do Estado. O que ainda pode ser objeto de discussão, isto sim, é a exclusividade de tal teoria, para reger ambas ações e omissões do Estado, ou se ainda se admite a convivência entre as teorias do risco, para atos comissivos, e da culpa anônima, para os omissivos.