5. A CONCORRÊNCIA SUCESSÓRIA ENTRE O COMPANHEIRO SOBREVIVENTE E OS PARENTES COLATERAIS DO FALECIDO.
Ao determinar que o companheiro sujeita-se à concorrência com os demais parentes sucessíveis, o art. 1.790, inciso III, do Código Civil, possibilita que na ausência de descendentes e ascendentes, os parentes colaterais até o quarto grau sejam chamados a suceder, cabendo ao companheiro apenas um terço da herança em casos tais. Trata-se de um evidente retrocesso, diante do caráter protetivo das leis que anteriormente disciplinavam a sucessão na união estável.
Além disso, “para acentuar ainda mais o rebaixamento no trato sucessório do companheiro, sua concorrência na herança restringe-se aos bens havidos onerosamente durante a convivência, conforme a regra do caput do art. 1.790. Ou seja, ele nada receberá sobre bens havidos pelo de cujus a título de liberalidade (doação ou herança) e sobre aqueles adquiridos antes de iniciada a convivência”. (OLIVEIRA, 2005, p. 174).
Antes de analisarmos as críticas feitas pelos doutrinadores e pelos magistrados a este dispositivo, vejamos quem são os parentes colaterais sucessíveis do de cujus: os irmãos do falecido (colaterais em 2º grau), os sobrinhos e os tios do morto (colaterais em 3º grau), bem como os tios-avós, os sobrinhos-netos e os primos-irmãos (colaterais em 4º grau). (TARTUCE; SIMÃO, 2007).
Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2007, p. 221) demonstram a injustiça gerada por este dispositivo através do seguinte exemplo:
João, companheiro de Maria, ao falecer sem descendentes nem ascendentes, tinha dois bens: uma casa de praia que comprou antes do início da união estável (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum). Deixou seu tio-avô vivo. Nesse caso, a divisão da herança será a seguinte:
Bens do falecido Apartamento – Bem comum (arts. 1.790, III, e 1.839 do CC) - 50% (meação) pertencem à companheira; - 50% (herança) serão partilhados entre a companheira (1/3) e o tio-avô do falecido (2/3). Casa de praia – Bem particular (arts. 1.790, caput, e 1.839 do CC) - 100% (herança) será apenas do tio-avô do falecido. |
Ainda mais absurda seria a situação em que o autor da herança houvesse deixado apenas o imóvel em que residia com o companheiro, sendo esse um bem particular e supondo a habilitação de um herdeiro colateral, o convivente supérstite não teria qualquer participação na herança e não poderia continuar residindo no referido imóvel, já que o novo Código Civil não lhe assegura o direito real de habitação.
Causa espanto imaginar que a parentes tão distantes, como um primo-irmão ou um sobrinho-neto, sejam assegurados mais direitos que ao companheiro de uma vida.
Note-se também que, em oposição ao tratamento sucessório do companheiro, o cônjuge sobrevivo ocupa o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, sendo-lhe atribuída a totalidade da herança na falta de descendentes e de ascendentes do falecido (art. 1.829, III c/c o art. 1.838).
O retrocesso evidencia-se quando comparamos o atual regime sucessório da união estável com aquele anteriormente previsto no art. 2º, inciso III, da Lei nº. 8.971/94, segundo o qual na falta de descendentes ou ascendentes ao convivente era deferida a totalidade da herança.
Quanto ao tema, vale lembrar a lição de Ingo Wolfgang Sarlet que, ao fazer referência à doutrina portuguesa de Vital Moreira e J.J. Gomes Canotilho, afirma que a proibição do retrocesso “pode ser considerada uma das consequências da perspectiva jurídico-subjetiva dos direitos fundamentais sociais na sua dimensão prestacional, que, nesse contexto, assume condição de verdadeiros direitos de defesa contra medidas de cunho retrocessivo, que tenham por objeto a sua destruição ou redução”. (apud TARTUCE; SIMÃO, 2007, p. 221).
Ao autorizar a participação dos colaterais em concorrência com o companheiro, atribuindo-lhes a maior parte do patrimônio deixado pelo falecido, o legislador infraconstitucional privilegiou de forma equivocada laços sanguíneos remotos, em detrimento dos laços de afeto, hoje tão valorizados pelo Direito, e, por conseguinte, promoveu uma injustificável discriminação entre cônjuges e companheiros.
Após sucinta apresentação do evidente retrocesso decorrente da norma contida no inciso III, do art. 1.790 do Código Civil, cumpre-nos trazer à baila as controvérsias suscitadas pela doutrina, bem como a interpretação que vem sendo consolidada na jurisprudência acerca da matéria.
5.1. Controvérsia sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, inciso III, CC.
Desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a doutrina e a jurisprudência criticam veementemente o art. 1.790, em virtude do tratamento sucessório conferido ao companheiro supérstite, muitas vezes discriminatório, se comparado ao novo status do cônjuge sobrevivente.
O mestre Zeno Veloso (2003) faz crítica contundente ao legislador. Após lembrar que na sociedade contemporânea, em oposição à família patriarcal, ampla e hierarquizada de outrora, prevalece a família nuclear, correspondente à comunidade formada pelo casal e seus descendentes, fundada na afetividade, bem como nos princípios da liberdade e igualdade, conclui que “o legislador não pode dar as costas para este fato social”.
A respeito da concorrência sucessória entre o companheiro e os colaterais até o quarto grau, objeto imediato do presente trabalho, o autor afirma:
Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram. E o novo Código Civil brasileiro, que começou a vigorar no Terceiro Milênio, resolve que o companheiro sobrevivente, que formou uma família, manteve uma comunidade de vida com o falecido, só vai herdar, sozinho, se não existirem descendentes, ascendentes, nem colaterais até o 4º grau do de cujus. Temos de convir: isto é demais! Para tornar a situação mais grave e intolerável, conforme a severa restrição do caput do art. 1.790, que foi analisado acima, o que o companheiro sobrevivente vai herdar sozinho não é todo o patrimônio deixado pelo de cujus, mas, apenas, o que foi adquirido na constância da união estável, e a título oneroso. (...) Haverá alguma pessoa, neste país, jurista ou leigo, que assegure que tal solução é boa ou justa? Por que privilegiar a este extremo vínculos biológicos, ainda que remotos, em prejuízo dos vínculos do amor, da afetividade? Por que os membros da família parental, em grau tão longínquo, devem ter preferências sobre a família afetiva (que em tudo é comparável à família conjugal) do hereditando? (VELOSO, 2003, p. 293).
Silvio Rodrigues (2002, p. 119) também não poupa críticas ao dispositivo em comento:
Não vejo razão alguma para que o companheiro sobrevivente concorra – e apenas com relação à parte da herança que for representada por bens adquiridos onerosamente durante a união estável – com os colaterais do de cujus. Nada justifica colocar-se o companheiro sobrevivente numa posição tão acanhada e bisonha na sucessão da pessoa com quem viveu pública, contínua e duradouramente, constituindo uma família, que merece tanto reconhecimento e apreço, e que é tão digna quanto a família fundada no casamento. O correto, como já fazia a Lei n. 8.971/94, art. 2º, III, teria sido colocar o companheiro sobrevivente à frente dos colaterais, na sucessão do de cujus.
Inúmeros autores, além de apontarem as injustiças do atual regime sucessório do companheiro, afirmam a inconstitucionalidade do inciso III do art. 1.790, seja pela valorização excessiva do parentesco biológico, seja pela violação a princípios constitucionais.
Um dos primeiros autores a abordar este assunto foi o professor Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2003, p. 46), para quem:
O correto seria cuidar, em igualdade de condições às pessoas dos cônjuges, da sucessão em favor dos companheiros. Tal conclusão decorre da constatação de que, desde o advento das Leis nº 8.971/94 e 9.278/96, os companheiros e os cônjuges passaram a receber igual tratamento em matéria de Direito das Sucessões: ora como sucessores na propriedade, ora como titulares de usufruto legal, ora como titulares de direito real de habitação. Desse modo, considerando que, por força de normas infraconstitucionais, desde 1996 existe tratamento igual na sucessão entre cônjuges e na sucessão entre companheiros, deveria ter sido mantido tal tratamento para dar efetividade ao comando constitucional contido no art. 226, caput, da Constituição Federal. Diante de tais ponderações, cabe à doutrina e à jurisprudência corrigir os vícios detectados no curso do processo legislativo e, desse modo, proceder a combinação das disposições contidas no art. 2º da Lei nº 8.971/94, com as relativas aos cônjuges no art. 1.829, incisos I, II e III, CC, sob pena de flagrantes inconstitucionalidades serem cometidas contra as pessoas dos companheiros. (grifo nosso)
Combatendo a valorização dos vínculos sanguíneos, a Juíza Maria Luiza Póvoa Cruz (2007, p. 156) leciona:
Limitar o direito sucessório dos companheiros aos bens adquiridos a ‘título oneroso’ na vigência da união estável e estabelecer um sistema de fixação das quotas hereditárias em supremacia aos vínculos sanguíneos (colaterais até o 4º. Grau) é inconstitucional e representa retrocesso, abandonando os direitos que as Leis 8.971/94 e 9.278/96 haviam concedido aos companheiros.
Denigelson da Rosa Ismael (2008), apoiado em vários julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, posiciona-se a favor da inconstitucionalidade do dispositivo em foco, vez que, a seu sentir:
Inferioriza aquele que dividiu e compartilhou uma vida em comum com o de cujus. Coloca numa esfera abaixo aquele que participou e contribuiu para a aquisição do patrimônio em comum. Valorizou o legislador ordinário, de forma errônea e equivocada, um grupo de pessoas "outros parentes sucessíveis" que, em muitos casos, nem ao menos têm convivência com o autor da herança (...).
Para o advogado Antonio Artêncio Filho (2008) a regra em comento é inconstitucional por ofensa aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, cabendo aos interessados requerer a declaração de inconstitucionalidade, pelo controle difuso, com vistas à obtenção de uma solução mais justa.
Elisa Costa Cruz (2005) enfrenta a questão da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790, sob o prisma dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da vedação do retrocesso, concluindo que é indispensável um exame acurado da matéria.
Contudo, em oposição à tese da inconstitucionalidade do novo regime sucessório dos companheiros, Inacio de Carvalho Neto (2007) defende que não se pode falar em igualdade constitucional entre o casamento e a união estável, motivo pelo qual seria constitucional a distinção operada pela lei.
Uma vez registradas as opiniões que impulsionam a polêmica doutrinária, passemos à análise do posicionamento jurisprudencial acerca do tema.
Com o objetivo de estabelecer regras e critérios de aplicação do novo Código Civil aos casos concretos, no ano de 2006, magistrados paulistas reunidos no I Encontro dos Juízes de Família do Interior de São Paulo resolveram, por maioria de 2/3 dos presentes e após extensos debates, formular enunciados, norteadores de sua atuação em questões sobre o Direito da Família e das Sucessões.
Dentre os enunciados elaborados nesse Encontro, Carlos Eduardo Silva e Souza (2008) destaca aqueles relativos à sucessão do companheiro:
ENUNCIADO 49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legítima.
ENUNCIADO 50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos bens particulares, não nos quais tem meação.
ENUNCIADO 51. O companheiro sobrevivente, não mencionado nos arts. 1.845 e 1.850 do Código Civil, é herdeiro necessário, seja porque não pode ser tratado diferentemente do cônjuge, seja porque, na concorrência com descendentes e ascendentes, herda necessariamente, sendo incongruente que, tornando-se o único herdeiro, possa ficar desprotegido.
ENUNCIADO 52. Se admitida a constitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da herança deixada pelo outro, na falta de parentes sucessíveis, conforme o previsto no inciso IV, sem a limitação indicada na cabeça do artigo.
Como se vê, boa parte da magistratura brasileira vem posicionando-se a favor da declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790, do Código Civil, em especial o seu inciso III, em virtude do tratamento desigual dispensado ao companheiro em relação ao cônjuge, verdadeira afronta à proteção jurídica reservada pela Constituição à união estável.
Enfrentando tal questão o Desembargador Justino Magno Araújo, do Tribunal de Justiça de São Paulo, afastou a aplicação do art. 1.790, inciso III do Código Civil, no julgamento do Agravo de Instrumento nº. 386.577.4/3-00, cuja Ementa é a seguinte:
Agravo. Arrolamento de bens. Morte do companheiro. Ausência de ascendentes ou descendentes. Existência, porém, de colaterais noticiada pela própria companheira. União estável iniciada na vigência da lei 8.971/94 e que perdurou até o falecimento do companheiro. Fato ocorrido em 2004. Inaplicabilidade da disciplina sucessória prevista no Novo Código Civil. Atribuição à companheira sobrevivente do mesmo status hereditário que a lei atribui ao cônjuge supérstite. Totalidade da herança devida à companheira, afastando da sucessão os colaterais e o Estado. Inaplicabilidade da norma do art. 1.790, III, do Código Civil em vigor. Recurso provido. (TJESP, 6ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº. 386.577.4/3-00, Rel. Des. Justino Magno Araújo, julgado em 02/06/2005, apud ZUCCARINO, 2007)
Nesse sentido, também decidiu o Desembargador Ricardo Raupp Ruschel, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, argumentando que é inaceitável “que prevaleça a interpretação literal do artigo 1.790 do CC 2002, (...) o que implicaria em verdadeiro retrocesso social frente à evolução doutrinária e jurisprudencial do instituto da união estável havida até então”. (BRASIL, 2007).
A respeito da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790, o Desembargador José Ataídes Siqueira Trindade, também do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao julgar o Agravo de Instrumento nº. 70017169335, que buscava o reconhecimento de colaterais como herdeiros, em seu voto delineou:
Observa-se que o legislador de 2002, ao tratar do direito sucessório, não conferiu tratamento igualitário entre companheiros e cônjuges, o que até então havia e era recepcionado pelas leis e decisões dos Tribunais. A Carta Magna de 1988, entretanto, o que é importante, deu tratamento igualitário à união estável em relação ao casamento. No entanto, o Código Civil em vigor, ao tratar a sucessão entre companheiros, rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, o que se evidencia inconstitucional. (...) Assim, rogando a mais respeitosa vênia aos que pensam de modo diverso, entendo que a regra contida no art. 1790, inc. III, se apresenta absolutamente inconstitucional porque atenta contra o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana esculpido no art. 1º, inc. III, da CF, bem como contra o direito de igualdade, já que o art. 226, § 3º, da CF, deu tratamento paritário ao instituto da união estável em relação ao casamento (grifo nosso). (apud ISMAEL, 2008).
Em decisão recente, o Dr. Maurício Pinto Ferreira, Juiz Titular da 2ª Vara de Sucessões de Belo Horizonte acampou a tese da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790 do Código Civil, para afastar da sucessão os parentes colaterais do falecido e deferir à companheira a totalidade da herança. (BRASIL, 2009).
Contudo, assim como na doutrina, a questão da inconstitucionalidade do referido inciso também não é pacífica na jurisprudência, como se vê da decisão proferida pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Agravo de Instrumento. Inventário. Sucessão aberta após a vigência do novo Código Civil. Direito sucessório da companheira em concurso com irmãos do obituado. Inteligência do art. 1.790, III da novel legislação. Direito a um terço da herança. Inocorrência de inconstitucionalidade. (apud GAMA, 2007, p. 124)
Nesse sentido, também se manifestou a 8ª Câmara Cível do mesmo Tribunal:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. DIREITOS DA COMPANHEIRA NA SUCESSÃO DO EX-COMPANHEIRO. APLICAÇÃO DO ART. 1.790, III, DO CÓDIGO CIVIL. EXISTÊNCIA DE OUTROS PARENTES SUCESSÍVEIS, QUAIS SEJAM, OS COLATERAIS. ARGUIÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790, SOB O ARGUMENTO DE TRATAMENTO DESIGUAL ENTRE UNIÃO ESTÁVEL E CASAMENTO. IMPROCEDÊNCIA. O §3º do artigo 226 da Constituição Federal apenas determina que a união estável entre homem e mulher é reconhecida, para efeito de proteção do Estado, como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento, o que evidencia que união estável e casamento são conceitos e realidades jurídicas distintas, razão pela qual não constitui afronta à Constituição o tratamento dado ao companheiro na nova legislação civilista. (...) Desprovimento do recurso. (TJRJ, 8ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº. 2004.002.16474, Rel. Des. Odete Knaack de Souza, julgado em 19/04/2005).
Comentando a controvérsia sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, inciso III, a Juíza Rita de Cássia Andrade (2008) chega à seguinte conclusão:
Diante dessa nova concepção do Código Civil, tarefa de maior urgência é a alteração legislativa, ou a declaração de inconstitucionalidade erga omnes do seu art.1790, haja vista a igualdade de tratamento dado pela CF/88, a união estável e ao casamento. Pois apesar dos julgamentos de inconstitucionalidade de forma incidental, relativamente a casos concretos e isolados, tal situação não se mostra satisfatória para a produção de uma justiça ordenada e lógica, havendo sempre decisões controvertidas para situações jurídicas iguais, na intimidade da família brasileira, uma vez que o legislador ordinário quis se sobrepor às disposições da própria Constituição, pois apesar de se tratar de uma lei nova, a mesma passou por muitos anos de espera no Congresso Nacional, vindo a entrar em vigência já de forma totalmente ultrapassada, preconceituosa, e distante da evolução dos fatos sociais, especificamente em relação a família e sucessões.
Se inexiste consenso a respeito da inconstitucionalidade do inciso III, do art. 1.790 do Código Civil e das demais disposições acerca da sucessão dos companheiros, fato é que a reforma da atual codificação afigura-se indispensável, motivo pelo qual analisaremos a seguir os dois principais Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional.
5.2. A reforma do Código Civil: os Projetos Fiúza e Biscaia/IBDFAM.
O Projeto de Lei nº. 6.960/2002, apresentado pelo deputado Ricardo Fiúza, ainda no ano de 2002, objetiva a alteração substancial do art. 1.790 do Código Civil.
O princípio orientador do Projeto Fiúza é a manutenção do atual artigo 1829, inciso I, que trata da sucessão do cônjuge em concorrência com os descendentes. O regime de bens dos companheiros seria o marco divisório entre a concorrência ou não com os descendentes.
Este Projeto confere ao companheiro tratamento análogo ao do cônjuge, sem promover a equiparação entre eles, uma vez que o companheiro terá sempre meia quota em concorrência com ascendentes e descendentes, privilegiando os cônjuges.
Este Projeto consegue afastar as críticas formuladas contra o atual artigo 1.790, solucionando os problemas referentes à filiação híbrida, à concorrência do companheiro com colaterais do falecido, além disso, devolve ao convivente o direito real de habitação e impossibilita que parte da herança seja considerada vacante e, portanto, de propriedade do Poder Público. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).
O Projeto Fiúza propõe a seguinte redação para o art. 1.790:
Art. 1.790. O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte:
I – em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art. 1641);
II – em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes;
III – em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança.
Parágrafo único: Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Já o Projeto de Lei nº. 4.944/2005, também conhecido como Projeto Biscaia/IBDFAM, é fruto de um amplo debate doutrinário travado no âmbito do Instituto Brasileiro de Direito de Família e principalmente da comissão de legislação que conta com membros notáveis dentre os quais estão Giselda Hironaka e Francisco José Cahali.
Este Projeto difere do anterior por alterar os dispositivos do Código Civil, estabelecendo total igualdade de direitos sucessórios entre cônjuges e companheiros, que seriam disciplinados por apenas um único dispositivo, qual seja, o artigo 1.829, com a revogação do art. 1.790. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).
De acordo com o Projeto Biscaia/IBDFAM, o art. 1.829 passaria a vigorar com a seguinte redação:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente ou com o companheiro sobrevivente;
III – ao cônjuge sobrevivente ou ao companheiro sobrevivente;
IV – aos colaterais.
Parágrafo único. A concorrência referida nos incisos I e II dar-se-á, exclusivamente, quanto aos bens adquiridos onerosamente, durante a vigência do casamento ou da união estável, e sobre os quais não incida direito à meação, excluídos os sub-rogados.
O Projeto em análise merece aplausos por equalizar os direitos sucessórios dos cônjuges e dos companheiros, por eliminar a concorrência do companheiro com os colaterais e com o Poder Público, bem como por eliminar diferenças entre a filiação híbrida, comum ou exclusiva na hipótese de concorrência do companheiro com descendentes. (TARTUCE; SIMÃO, 2007).
Merece destaque a solução da polêmica decorrente da atual redação do inciso III, do artigo 1.790, já que, assim como o cônjuge, o companheiro ocuparia o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária e em nenhuma hipótese haveria concorrência com os colaterais do falecido. Além disso, os colaterais chamados a suceder seriam apenas os parentes até o 3º grau, através da alteração do art. 1.839.
Contudo, nas palavras de Flávio Tartuce e José Fernando Simão, o parágrafo único do art.1.829 do Projeto Biscaia/IBDFAM representa verdadeiro retrocesso, já que não garante ao cônjuge ou companheiro, em regra, situação patrimonial que assegure o seu sustento na hipótese de falecimento do consorte.
Apesar de não serem ideais, os supracitados Projetos de Lei merecem aplausos, por demonstrarem que o legislador está atento às críticas acima explicitadas e aos anseios da sociedade brasileira.