Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra.
(Gonzaguinha. Guerreiro Menino)
1 O TRABALHO E A DIGNIDADE HUMANA.
João, o Pedreiro; Carlos, o armador; o Comerciante Zé Mendonça, Dona Candinha, quituteira; Pastor Jerônimo; Dr. Xaves, o médico-cirurgião; Frederico, o enfermeiro; Dra. Márcia, veterinária; a Vereadora Janaína; Werleson, o vaqueiro; Juiz Peixoto; etc. É corrente no meio social o uso do nome acompanhado da profissão para identificar os indivíduos. A pessoa é também a função que ela assume no meio social através de seu trabalho.Para si próprio, o trabalho representa o sustento da família, o sonho de crescimento social, a utilidade da força e da criatividade, a prática das vocações pessoais, a honradez e a liberdade advinda do salário.
Tamanha importância do trabalho é reconhecida pela sociologia, muito bem resumida pela frase célebre de Max Weber: “o trabalho dignifica o homem”. Segundo o sociólogo:
Na verdade, essa idéia tão peculiar do dever do indivíduo em relação à carreira, que nos é familiar atualmente, mas na realidade tão pouco óbvia, é o que há de mais característico na ética social da cultura capitalista e, em certo sentido constitui sua base fundamental. É uma obrigação que se supõe que o indivíduo sinta, e desato sente, em relação ao conteúdo de sua atividade profissional, não importa qual seja, particularmente se ela se manifesta como uma utilização de suas capacidades pessoais ou apenas de suas posses materiais (capital). (2012, p. 21)
No catecismo da Igreja Católica, o trabalho é também revelado como parte da natureza humana e exercício dos dons provindos de Deus. A Igreja relembra o trabalho de carpintaria de Cristo para elevar as profissões nos meios moral e religioso. Interessantes os §§ 2.427 e 378:
§ 2427 O trabalho humano procede imediatamente das pessoas criadas à imagem de Deus e chamadas a prolongar, ajudando-se mutuamente, a obra da criação, dominando a terra. O trabalho é, pois, um dever: "Quem não quer trabalhar também não há de comer" (2Ts 3,10). O trabalho honra os dons do Criador e os talentos recebidos. Também pode ser redentor. Suportando a pena do trabalho unido a Jesus, o artesão de Nazaré e o crucificado do Calvário, o homem colabora de certa maneira com o Filho de Deus em sua obra redentora. Mostra-se discípulo de Cristo carregando a cruz, cada dia, na atividade que é chamado a realizar. O trabalho pode ser um meio de santificação e uma animação das realidades terrestres no Espírito de Cristo.
§378 O sinal da familiaridade com Deus é o fato de Deus o colocar no jardim. Lá vive "para cultivá-lo e guardá-lo" (Gn 2,15): o trabalho não é uma penalidade, mas sim a colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível. (2012)
No meio jurídico, é reprimida a ociosidade, conforme o art.59 da Lei de Contravenções Penais:
Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita:
Pena - prisão simples, de quinze dias a três meses.
Parágrafo único. A aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena.
A Constituição Federal, por sua vez, tutela com generosidade o trabalho humano (arts.1º, IV, art.5°, XIII, 6º, 7º e 170, CF), construindo-o como direito fundamental, muito além de sua função econômica. Ou seja, tutela o trabalho por sua relação com a dignidade do homem e não meramente como mão de obra. Conforme José Afonso da Silva “[…] bem se vê que o de que se fala é um direito, que cabe a todos, de ter trabalho porque este é o meio mais expressivo de se obter uma existência digna […]” (2005, p. 186)
Em resumo, afirmamos que o trabalho não se resume à renda em si, mas abrange a dignidade humana enquanto pessoa capaz e independente de suster a si e sua família sem necessitar de amparo social ou de terceiro. É de certa feita um tomar para si o rumo da própria vida, não prescindindo submeter a razões impostas por quem quer que seja. Ademais, coloca a pessoa em um determinado lugar no meio social, de forma a integrar a sua própria identidade e permitir o exercício das vocações e interesses pessoais.
Apesar de tão nodal à personalidade humana, no entanto, o trabalho não se encontra previsto no Código Civil como direito personalíssimo, o que, lado outro, não o elide de assim ser considerado.
2 A CLÁUSULA GERAL DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE.
Na doutrina brasileira, a teoria da cláusula aberta dos direitos da personalidade é quase unânime. Nesse sentido, compreende-se que os direitos personalíssimos não são redutíveis aos previstos no Código Civil (arts.11-21) .
Os professores brasileiros afirmam que qualquer mácula à dignidade humana é redutível ao conceito de direitos da personalidade. Nesse sentido Nelson Rosenvald (2007), Maria Celina Bodin de Moras (2009), Ingo Wolfgang Sarlet (2011), e Fernanda Borghetti Cantali (2009).
Segundo Anderson Schreiber, a noção de direito da personalidade foi cunhada para inserir a tutela dos direitos fundamentais no direito privado (2011), de forma que qualquer ataque ao direito fundamental do homem é uma lesão a direito da personalidade.
De fato, como demonstra Gustavo Tepedino, a proteção da personalidade não tem seu substrato jurídico no Código Civil, mas nas cláusulas constitucionais:
Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do §2° do art.5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrente dos princípios adotados pelo texto maior, configuram um verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo do ordenamento. (p. 54)
Nesse meandro, Screiber alerta que “Na falta de explícito reconhecimento legal, é preciso definir se tais manifestações integram ou não a dignidade de humana” (2011, p. 15) para em seguida conclamar o meio jurídico para a formação de critérios para definir se um determinado interesse é passível de tutela personalíssima ou não.
Certamente critérios valorosas são a posição assumida pelo interesse no ordenamento jurídico e sua percepção sociológico-histórico contemporânea.
Pensamos ser inegável que o direito fundamental ao trabalho é também elemento da personalidade, atraindo para si as tutelas conferidas aos demais direitos personalíssimos, “[…] em três matizes distintos complementares: prospecção, prevenção e compensação” (TEIXEIRA e RODRIGUES, 2001, p.239).
3 A COMPENSAÇÃO PELA LESÃO AO TRABALHO.
É no campo da responsabilidade civil que o trabalho enquanto direito autônomo da personalidade pode trazer maior importância ou problemas. Ocorre que a perda da capacidade laborativa em razão de ato ilícito é geralmente compensada através de pensão alimentícia e danos morais por lesão a integridade física.
Primeiro, afirmar que a pensão alimentícia e os benefícios securitários encerram o dano é reduzir a capacidade laboral à representação econômica, ao salário, enquanto na verdade é um formador da personalidade humana.
Os aspectos da pessoa humana não podem ser vistos meramente por sua funcionalidade (trabalho/salário), sob pena de transformar os direitos da personalidade em objetos, instrumentos, de um fim outro, quando na verdade são tutelados pela sua própria razão de integrarem a dignidade, independente do valor prático final.
No mesmo sentido, distinguir o direito ao trabalho e a integridade física é curial para a tutela integral da pessoa humana, razão pela qual é preciso reconhecer autonomia entre ambos.
Merecem um olhar individualizado os danos decorrentes da incapacidade laborativa. A lesão ao trabalho não se confunde com a redução da integridade física, uma vez que a chaga da inatividade é mais profunda e grave, tendo em vista o valor do trabalho humano no reconhecimento do ser humano por si próprio e pela sociedade.
Ou seja, embora possam ter um nascedouro comum (acidente automobilístico, v.g.), a lesão a integridade física é bastante diversa da lesão à capacidade laborativa.
Principalmente quando a vítima é jovem, a passagem para a invalidade traz o sentimento de inutilidade, de escória, de coitado, dependente ou fraco. É como se a vida tivesse acelerado.
Ressalta-se que não é só ao preconceito social a que se submete, mas ao próprio sentimento de redução da vida prática. Aquele que há pouco tinha o seu trabalho, a sua capacidade de criar e modificar, de suster a si mesmo sem dependência, volve a um estado socialmente mais débil.
Ainda mais grave é a redução da expressão da própria vocação profissional. Aquele que outrora recebia os louros do exercício de seu preparo em certo ofício, agora se redime nas memórias do que fora.
De fato, o trabalho representa parte da personalidade humana, a vocação do indivíduo e sua própria história, merecendo tutela especializada e autônoma.
4 CONCLUSÃO
A perda da capacidade laborativa promove uma grave reviravolta na história humana, anulando parcialmente o que fora antes. Novos desafios e perspectivas demorarão a se descortinar na mente do indivíduo.
A vítima precisará de tempo e disposição para reconhecer a nova personalidade que se propõe com suas as novas vocações e capacidades.
Certamente o trabalho merece reconhecimento de sua autonomia frente ao direito à integridade física, razão pela qual precisa de indenização compensatória à parte. Assim, promove-se a tutela da personalidade humana em sua amplitude e complexidade, reconhecendo os danos decorrentes da lesão à integridade física e ao trabalho a um só tempo, se for o caso.
REFERÊNCIAS.
CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
CATECISMO da Igreja Católica. Disponível em <http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html>. Acesso em 12 jul. 2012.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no código civil. São Paulo: Saraiva, 2007
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 8.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011.
SILVA, José Afonso. Comentários contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
TEIXEIRA, Anca Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. Aspectos gerais dos direitos da personalidade. In. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Manual de teoria geral do direito civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In. ______. Temas de direito civil. 4.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. t. 1.
Weber, Max. A ética protestante e o espírito capitalista. Disponível em: <http://bib.praxis.ufsc.br:8080/xmlui/bitstream/handle/praxis/78/A%20%C3%89tica%20Protestante%20e%20o%20Esp%C3%ADrito%20do%20Capitalismo.pdf?sequence=1>. Acesso em 12 jul. 2012.