5 A TEORIA DOS SISTEMAS E A ATIVIDADE EMPRESÁRIA
5.1 A Teoria dos Sistemas e as organizações
A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) surgiu com os trabalhos do biólogo austríaco Ludwig Von Bertalanffy, publicados entre 1950 e 1968. Segundo a TGS os sistemas vivos, sejam indivíduos ou organizações, são analisados como “sistemas abertos”, mantendo um contínuo intercâmbio de matéria/energia/informação com o ambiente. (CHIAVENATTO, 1993, p.749).
Segundo essa teoria, a empresa é vista como um sistema organizador e transformador de inputs trazidos do ambiente em outputs para o mesmo ambiente. (AIROLDI et al., 1989, p.73).
De acordo com o princípio da homeostase[9], as organizações, como todo sistema aberto, procuram manter uma certa constância no intercâmbio de energia importada e exportada do ambiente, assegurando o seu caráter organizacional e evitando o processo entrópico (desintegração). Leciona Idalberto Chiavenatto (1993, p.775) que:
Enquanto em teoria de sistemas fala-se em homeostasia dinâmica (ou manutenção de equilíbrio por ajustamento constante e antecipação), usa-se o termo dinâmica de sistema em organizações sociais: o sistema principal e os subsistemas que o compõe são caracterizados por sua própria dinâmica ou complexo de forças motivadoras, que impelem uma determinada estrutura para que ela se torne cada vez mais aquilo que basicamente é. Para sobreviver (e evitar entropia), a organização social deve assegurar-se de um suprimento contínuo de materiais e pessoas (entropia negativa).
A empresa por este enfoque é, à semelhança de um ser vivo, um sistema que quanto mais se torna complexo, mais autonomia ganha em relação à sua própria auto-organização. Dentro desta concepção, a personalidade jurídica da empresa representa algo mais que a união de pessoas físicas em sociedade, representa o próprio sistema.
5.2 A essencialidade da força laborativa do empresário
Maria Helena Diniz (2006, p.755) considera que a figura física do empresário, como organizador dos fatores de produção, é essencial à continuidade da existência da empresa. Todavia, uma vez organizada a empresa, nada impede que o empreendedor delegue a sua gerência a outros indivíduos com aptidão administrativa. Nesta hipótese, a empresa continuará existindo como entidade autônoma e independente. Esse é o destino inevitável das grandes corporações. Nessas empresas, muitas delas transnacionais, os empreendedores originais já morreram faz tempo. Tal assertiva coaduna-se com a moderna Teoria dos Sistemas, já comentada anteriormente. A empresa, como sistema autônomo, tem que funcionar sem o caráter personalíssimo que é próprio da atividade autônoma. A atividade empresária, levada a cabo pela capacidade sistêmica de auto governar-se, subsiste sem o empresário pessoa natural (homeostase). Destaca Andrea Guaccero (1999, p.12, tradução nossa) que conceito semelhante é admitido por parte minoritária da doutrina italiana:
Para existir uma empresa é necessária a criação de um organismo econômico, como entidade objetiva, que em qualquer modo se autonomiza com respeito ao seu criador (o empreendedor). Aquela organização elementar dos fatores produtivos, centrada essencialmente no trabalho do sujeito agente é própria da pequena empresa, que porém está fora da noção de empresa.
Gastone Cottino (2000, p. 161) traz luz a esta discussão e afirma que a empresa pode sobreviver à pessoa física do empreendedor (participação pessoal na gestão da empresa), como de fato ocorre amiúde. Os exemplos das fábricas abandonadas auto geridas pelos empregados demonstram que a presença do empresário não é decisiva nas realizações do processo produtivo.
5.3 A empresa concebida como um sistema
A empresa se concretiza na atividade do empresário, e, como afirma Rubens Requião (2000, p.59): “Desaparecendo o exercício da atividade organizada do empresário, desaparece, ipso facto, a empresa”. Maria Helena Diniz (2006, p.755) aduz que:
Toda atividade empresarial pressupõe o empresário como sujeito de direitos e obrigações e titular da empresa, detentor do poder de iniciativa e de decisão, pois cabe-lhe determinar o destino da empresa e o ritmo de sua atividade, assumindo todos os riscos, ou seja, as vantagens e o prejuízo.
O conceito de Diniz admite a essencialidade do empresário na existência da empresa. Esta concepção é contestada por Gastone Cottino (2000, p.160), objeto de comento no tópico anterior.
Conforme entendimento de Fábio Ulhoa Coelho (2007, p.3) “o empresário é o indivíduo vocacionado à tarefa de combinar e articular os fatores de produção”, que segundo o autor são quatro: capital, mão de obra, insumo e tecnologia. É ele quem, movido pelo lucro, vai estruturar as empresas, tratadas por Coelho como “organizações econômicas especializadas na produção de bens e serviços”.
Fábio Ulhoa Coelho (2007, p.20) admite que, tratando-se de sociedade, a pessoa jurídica que a personifica é que é empresária e não as pessoas físicas de seus sócios. Estes podem ser empreendedores ou investidores. “Os empreendedores, além do capital, costumam devotar também trabalho à pessoa jurídica, na condição de seus administradores, ou as controlam. Os investidores limitam-se a aportar capital”. O autor distingue os conceitos de empreendedor e empresário.
Na mesma esteira, Alberto Trabucchi (1964, p.311) sustenta que, em relação ao ordenamento jurídico italiano, a possibilidade de tornar-se empresário[10] não se limita às pessoas físicas. Também as pessoas jurídicas podem sê-lo, como realmente sucede com as sociedades.
Ambos tocam em um ponto sensível do conceito expresso no art. 966 do CC, pois nada impede que a tarefa de organizar os fatores de produção seja realizada por intermédio de executivos ou consultores. Nesta hipótese, o capitalista que contratou os executivos (ou consultores) deve ser considerado investidor. A figura do empresário que organiza os fatores de produção está sendo exercida pela própria organização, através dos seus executivos. Estes são meros subordinados da estrutura (representada normalmente por um conselho de administração) e não podem ser considerados empresários.
Percebe-se, portanto, que a organização pode ser compreendida sem a figura do empresário que organiza os fatores de produção diretamente (essa tarefa foi delegada pelo investidor aos executivos/consultores). Até porque, uma vez organizados, tais fatores de produção comportam-se como um sistema autônomo (organismo), adquirindo vida própria independente da existência de qualquer empresário pessoa física e com uma função social. O sistema em si cumpre o exercício do empresário. Esta forma de conceber a empresa deriva da Teoria dos Sistemas. Com efeito, essa forma de ver a empresa, como sujeito de direito, é sustentada por Jorge Rubem Folena de Oliveira (1999, p.130), que afirma:
Com o surgimento das macroempresas, os empresários saíram do centro de decisão daquelas organizações, passando as empresas a terem vida própria, independentemente da decisão dos seus donos, que são vistos e tidos como meros investidores de capitais. Porém essa conseqüência fática ainda é pouco percebida nas legislações vigentes, as quais tratam a empresa, não como um ente titular de direitos e obrigações, mas como mero objeto de direito, isto é, como um elemento de propriedade do empresário.
Por este ponto de vista, a pessoa jurídica deveria representar a empresa e não apenas a sociedade. Ou seja, compreendendo a empresa como um sistema, também a firma individual deveria ser considerada uma pessoa jurídica.
6 O MICROEMPREENDEDOR INDIVIDUAL (MEI)
Segundo Filipe Charone Tavares Lopes (2010), o Estatuto da Micro e Empresa, instituído pela LC 123/06 acarretou grandes benefícios para essas empresas, mas não ilidiu a dificuldade para o registro de pequenos autônomos ou ambulantes, que viam na burocratização e nos custos da abertura de seu empreendimento um grande entrave ao seu desenvolvimento.
Por isso, de acordo com o aludido autor, a LC 123/06 teve sua redação alterada pela LC 128/08 que, dentre outras disposições, trouxe maiores oportunidades de regularização das pessoas físicas que exercem a empresa de forma autônoma, com a criação do microempreendedor individual (MEI).
As vantagens para o Estado e para o cidadão que exerce seu trabalho de forma autônoma são muito evidentes. Há uma verdadeira inclusão social de um segmento importante de produção de riquezas que, tradicionalmente, sempre operou na informalidade. Aumenta-se a arrecadação tributária e previdenciária, promove-se a cidadania e possibilita-se ao estado maior controle estatístico sobre todos os estratos da economia.
Há também, benefícios práticos para o autônomo, como a simplificação na emissão de nota fiscal, exigência contábil de pessoas jurídicas contratantes de serviços e produtos.
Lembra, com propriedade, Leonardo Ribeiro Pessoa (2009) que: “A Lei Complementar 128/08, ao modificar a Lei Complementar 123/06, garante uma série de benefícios para os microempreendedores individuais, como por exemplo, aposentadoria, auxílio-maternidade, auxílio por acidente de trabalho, entre outros que, na informalidade, seriam impossíveis.
7 O EQUÍVOCO NA CLASSIFICAÇÃO DO MEI COMO EMPRESÁRIO
A definição legal de MEI está presente no §1º, do art. 18-A, da Lei Complementar 123/06, cujo texto reproduz-se a seguir: “Para os efeitos desta Lei, considera-se MEI o empresário individual a que se refere o art. 966 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil (...)”.
Por sua vez, as atividades possíveis de serem enquadradas como MEI estão elencadas na Resolução 58, de 27/04/2009, do Comitê Gestor do Simples Nacional. Basicamente são atividades de pequeno comércio e indústria e serviços de natureza preponderantemente não intelectual sem regulamentação legal, como, por exemplo: lavanderia, salão de beleza, lava jato, reparação, manutenção, instalação, auto-escolas, chaveiros, organização de festas, encanadores, borracheiros, trabalhos complementares da construção civil, agências de viagem, coveiro, manicure, dentre outros. Até técnico contábil foi incluído na lista.
Não obstante as vantagens já referidas, o legislador errou ao definir o MEI, pois muitas das atividades relacionadas na Resolução 58, claramente não são empresárias, considerando-se os critérios já discutidos nesse artigo.
Onde estão os elementos de empresa na atividade desenvolvida pelo coveiro? Ele organiza fatores de produção? Sua atividade persiste com a sua ausência (critério da não essencialidade da pessoa natural do empresário, segundo a teoria dos sistemas)? Obviamente que não. O legislador equivocou-se, ou na definição jurídica do MEI, ou na elaboração da lista.
Incontestável, porém, que do ponto de vista institucionalista, todas essas atividades elencadas são estratégicas para a economia, já que produzem riquezas e geram impostos. E, por isso, merecem amparo e proteção do estado, mas não devem ser igualadas às empresas. A complexidade da organização dos fatores de produção presente na atividade empresária possibilita enorme potencial de geração de empregos. Só por isso, tecnicamente, as duas categorias, MEI e empresa devem ser diferenciadas, sem qualquer tipo de juízo de valor acerca das duas instituições.
O legislador deveria tão somente criar a figura do microempreendedor, categoria jurídica nova, distinta do empresário. Poderia, também, estender as benesses criadas ao microempreendedor àquelas atividades nitidamente empresárias constantes do rol da Resolução 58.
CONCLUSÃO
Para o CC, a atividade empresária é a organização dos fatores de produção realizada com profissionalismo, isto é, com habitualidade e pessoalidade. Por ser instituição estratégica para a sociedade a empresa recebe do estado proteção especial. Reconhecendo importância estratégica também na atividade autônoma, tradicionalmente relegada à informalidade, o legislador criou a figura do microempeendedor individual (MEI), estendendo-lhe vantagens quanto à tributação e registro.
Todavia, ao defini-lo no §1º do art. 18-A da LC 123, o legislador equivocou-se ao considerá-lo empresário individual. Segundo o enfoque sistêmico, que concebe a empresa como um organismo autônomo, há empresa se a organização prescindir da pessoa natural dos empreendedores para sobreviver. Se não prescindir, a atividade não é empresária, como é o caso de uma sociedade simples ou de um serviço autônomo como o realizado pelas manicures ou coveiros. Outro exemplo ilustrativo é o de um mágico, classificado como MEI segundo o rol da Resolução 58, que realiza seu trabalho contando apenas com uma assistente. Se esse mágico deixar de existir, perece também a pseudo-empresa de entretenimento. Ou seja, sua essencialidade caracteriza a atividade como não empresária.
Um outro aspecto importante para a caracterização da atividade empresária é a presença ou não da exploração do trabalho alheio. A simples presença de colaboradores, como no exemplo acima, não faz com que uma atividade seja empresária. Entretanto, é difícil conceber-se a atividade empresária sem o envolvimento de trabalho alheio. Para deixar claro o conceito, um derradeiro exemplo. Imagine-se um empresário individual (que por força do CC não é pessoa jurídica) que possua um estacionamento. É empresário, pois organizou os fatores de produção: terra, capital e, principalmente, trabalho de outrem. Se há um gerente nesta empresa, é fácil concluir que o negócio continuará existindo independentemente da presença do empresário. Logo, há uma empresa, organismo independente, cujo objetivo intrínseco é sobreviver, como todo organismo. Neste caso, o empresário deixou de ser a pessoa física e passou a ser a força homeostática da organização.
A importância destas reflexões reside na necessidade de prospecção de novos paradigmas que atendam as realidades fáticas que se apresentam com velocidade extraordinária no mundo econômico. O direito tem que acompanhar com a mesma agilidade a natureza mutante dos organismos e estruturas produtoras de riquezas e empregos, sob pena de constituir-se em óbice para o progresso da sociedade. Nesse aspecto, louvável a criação da figura do MEI, porém jamais confundi-lo com empresa, como fez o legislador, sob pena de enterrar toda uma teoria desenvolvida nos últimos setenta anos.
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Notas
[1] Tradução do inglês para o português de Luciana Michelino.
[2] O conceito brasileiro, expresso no art. 966 do CC é tradução quase literal do conceito expresso no art. 2.082 do Código Civil Italiano de 1942, in verbis: “É imprenditore chi esercita professionalmente un attività economica organizzata al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi”. (ITÁLIA, 1991).
[3] Autor do livro ‘Direito de Empresa’ do anteprojeto do Código Civil de 2002.
[4] Refere-se aos perfis subjetivo, presente no art. 2º, e objetivo, que aparece no art. 448, ambos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
[5] Ver art. 129 da Lei 11.196/2005 (MP do bem) e art. 146 do Regulamento do Imposto de Renda, Decreto n. 3000/99.
[6] A legislação do imposto de Renda permite o abatimento de despesas da atividade do autônomo (salário de secretária, aluguel, etc) se registradas em livro caixa.
[7] Em Florianópolis/SC, a alíquota varia entre 2% e 5% (Código Tributário Municipal, art. 256), calculada sobre o valor do serviço. (FLORIANÓPOLIS/SC, 1997).
[8] SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça de Santa Catarina: Apelação Cível n. 2006.003326-5, da Capital;, Apelação Cível n. 2006.004624-8, de Balneário Camboriú e Embargos Infringentes n. 2006.009564-3, da Capital.
[9] Conceito extraído da Teoria dos Sistemas que significa a propriedade de um sistema aberto de regular o seu ambiente interno de modo a manter uma condição estável, mediante múltiplos ajustes de equilíbrio dinâmico controlados por mecanismos de regulação inter-relacionados. (CHIAVENATTO, 1993, p. 765)
[10]Neste caso, tradução direta de imprenditore, pois a doutrina italiana parece não distinguir os significados das palavras impresario e imprenditore, como faz Fábio Ulhoa Coelho em relação a empresário e empreendedor.