Introdução
Poucos instrumentos processuais nasceram tão vocacionados para o processo do trabalho como a ação civil pública, na medida em que supre dois dos principais dificultores do processo trabalhista: permite, por meio de seus entes legitimados, a paridade entre as partes litigantes, circunstância que geralmente passa ao largo das reclamações trabalhistas individuais entre empregados e empregadores; além disso, permite a imediata correção de ilicitudes, quando o que mais se verifica na Justiça do Trabalho, principalmente com o fenecimento da estabilidade decenária, é que o trabalhador só ingressa em juízo após a extinção da relação de emprego, haja vista o temor de represálias. Como reflexo, o número de ações civis públicas, inquéritos civis e termos de ajuste de conduta na área trabalhista é colossalmente superior ao verificado em qualquer outro ramo jurídico.
Ao mesmo tempo, poucas ferramentas nasceram tão vocacionadas para a ação civil pública quanto a tutela inibitória; na quase totalidade das ações civis públicas trabalhistas, verifica-se pleitos de tutela inibitória com igual ou superior importância aos pleitos de tutela ressarcitória (em que, usualmente, busca-se a condenação do réu por danos morais coletivos).
Diante disso, o vertente artigo se propõe a explicar, com a maior amplitude possível, a tutela inibitória na ação civil pública trabalhista, enfrentando as questões mais complexas que vimos identificando na prática, tais como a possibilidade jurídica da tutela inibitória pura ou quando o réu regulariza sua conduta no curso do processo, o interesse de agir para se pleitear o cumprimento de obrigações previstas em lei, a cumulatividade de multas administrativas com as multas deferidas na tutela inibitória, o grau de criatividade do provimento jurisdicional decorrente da autorização legal para que o magistrado adote medidas assecuratórias dos efeitos práticos da obrigação (inclusive de ofício, em clara mitigação do princípio da congruência entre os pedidos e a decisão).
I. Conceito
Tutela inibitória é a nomeclatura popularizada por Luiz Guilherme Marinoni para designar a) a modalidade de tutela jurisdicional, b) pertencente à classe das tutelas específicas, c) que tem por objetivo prevenir, cessar ou impedir a repetição de um ilícito, d) manifestando-se de maneira sincrética com o direito material por meio da condenação do Réu ao desempenho de uma obrigação de fazer (aqui inclusa a obrigação de entregar) ou não fazer, e) que podem coincidir com o bem da vida buscado ou se tratar de uma medida assecuratória de seu resultado prático, f) com a cominação de alguma sanção decorrente de eventual inobservância da medida.
A tutela inibitória, conforme se pormenorizará, pertence a taxonomia que se vale de referencial distinto do utilizado para a classificações da tutela jurisdicional em cognitiva, executiva e cautelar, bem como para a classificação da tutela cognitiva em declaratória, constitutiva e condenatória. Enquanto o referencial para a primeira taxonomia concerne ao provimento jurisdicional buscado e o referencial para a segunda taxonomia consiste na carga de eficácia da sentença cognitiva, o referencial da tutela inibitória é a combinação entre a natureza da prestação de direito material vindicada e a tutela adequada para tal prestação (obrigação de fazer e não fazer, para a tutela inibitória; obrigação de tolerar, para a tutela de remoção do ilícito; e obrigação de pagar, para a tutela ressarcitória), contrapondo a classe das tutelas específicas em sentido amplo (categoria composta pela tutela específica originária e pela tutela específica derivada, nas modalidades tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito) à classe das tutelas ressarcitórias em sentido amplo (que compreende a sub-rogação real de obrigações de fazer e não fazer por pagamento de perdas e danos).
Dentre os traços fundamentais da tutela inibitória, destacam-se: 1) a atuação em face de um ilícito, e não de um dano (embora este, sintomático do ilícito, possa dar-se simultaneamente àquele, hipótese em que a tutela do ilícito acidentalmente tutelará o dano); 2) a vocação eminentemente preventiva; 3) a materialização por meio de condenações[1] em obrigação de fazer (aqui inclusa a obrigação de entregar) e não fazer; 4) o cumprimento da prestação jurisdicional por meio da coerção psicológica do responsável (no que, conforme abordaremos, distingue-se da tutela de remoção do ilícito, que atua sobre a coisa em si); 5) o escopo de efetividade processual, estando a serviço do ideal de uma tutela jurisdicional adequada; 6) em consonância com a ideologia sobredita, o abrandamento de institutos processuais clássicos, como os princípios da inércia e da congruência entre a sentença e o pedido.
Em seu sentido puro, a tutela inibitória foi densificada pelo art. 84 da Lei 8.078/90, e pela reformulação do art. 461 e advento do art. 461-A do Código de Processo Civil por força das Leis 8.952/94 e 10.444/02. Em sentido amplo, a tutela inibitória já poderia ser vislumbrada em institutos como o interdito proibitório, a nunciação de obra nova, o mandado de segurança, a ação cominatória ou as medidas cautelares de cunho prático satisfativo.
No presente estudo, analisaremos os aspectos mais latentes da tutela inibitória no contexto da ação civil pública trabalhista, aproveitando-se a oportunidade para abordar os aspectos mais proeminentes das tutelas específicas em geral.
II. Origem.
Identifica-se no interdito proibitório, já vigente no País à época das Ordenações Afonsinas e Manuelinas, bem como à época das ordenações Filipinas, as raízes da tutela inibitória, consoante o disposto em seu Livro 3º, Título 78, §5º, que assim enunciava:
Se alguém se temer de outro que o queira ofender na pessoa, ou lhe queira sem razão, ocupar e tomar suas cousas, poderá requerer ao juiz que o segure a ele e as suas cousas do outro que o quiser ofender, a qual a segurança o juiz dará; e se depois dela tudo o que foi cometido e atentado depois da segurança dada, e mais procederá contra o que a quebrantou, e menosprezou seu mandado, como achar por direito.
Entretanto, desde o Direito Romano já se manifestava o germe da atuação judicial preventiva, do que era exemplo o instituto da operis novi nuntiatio (nunciação de obra nova).
Mais recentemente, a partir da doutrina brasileira do habeas corpus, surgirá o mandado de segurança, que em sua forma de manejo preventivo em face do ilícito assume a natureza de tutela inibitória pura.
III. Contexto histórico.
Conquanto se vislumbre em tempos remotos os contornos básicos da tutela inibitória, esta se assumirá, em toda a sua pureza, com o advento dos arts. 84 do Código de Defesa do Consumidor e 461 do Código de Processo Civil, vindo de encontro a um momento de busca intensa pela efetividade jurisdicional.
Inspirada em Cappelletti e Garth, a doutrina usualmente alude a três ondas paradigmáticas no universo temático da ciência processual dos últimos quarenta anos. A primeira onda concerniria à abertura jurisdicional às microlesões, tendo por marco a positivação de institutos como a assistência jurídica, a gratuidade judicial e os juizados de pequenas causas; no pólo antitético, a segunda onda concerniria à tutela das macrolesões, sendo evidenciada pela apreensão das ações coletivas e de institutos como a representatividade adequada, os fundos de recomposição de bens lesados e os danos morais coletivos; finalmente, a terceira onda diria com a consecução de uma tutela judicial adequada e efetiva, culminando no advento de diversos institutos progressistas e no desprestígio do mito da neutralidade processual; é afeto a tal onda o advento de institutos como a antecipação de tutela, o princípio da transcendência dos recursos extraordinários, a súmula impeditiva de recursos e, no que tange diretamente a nosso objeto de estudo, a tutela inibitória.
Diversos temas convergem para tal momento histórico. No plano dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, a tutela inibitória concorre com os direitos de terceira dimensão, caracterizados subjetivamente pela titularidade difusa e pela concepção do homem como sujeito relacional e solidariamente jungido a seus semelhantes presentes e futuros por força das relações travadas em uma sociedade de massas e sem fronteiras artificiais; objetivamente, tal categoria de direitos, cujo marco histórico repousa na tese sobre o direito ao desenvolvimento exibida em 1972 por Etiene R-Mbaya no Instituto Internacional de Direitos do Homem de Estrasburgo, os direitos de terceira dimensão se revelam pela máxima expressão do princípio da dignidade da pessoa humana e sua colocação no centro absoluto do ordenamento jurídico, sendo refratário o triunfo do princípio universal da dignidade da pessoa humana sobre a doutrina do relativismo cultural na Convenção de Viena de 1993.
Em termos políticos, a tutela inibitória coincide com o paradigma do Estado Democrático de Direito, sucessor do modelo de Estado Social de Direito, que, por sua vez, sucedera o Estado Liberal de Direito. O momento atual é marcado pela forte interpenetração entre Poderes, com o reconhecimento, inclusive, da possibilidade de judicialização de políticas públicas, e, como reflexo processual, pelo aparecimento de instrumentos de participação mais ativa dos cidadãos nos processos decisórios, como é o caso da ação civil pública, marcadas pelo papel vocalizador de anseios sociais por seus entes legitimados.
No que concerne à zetética jurídica, a tutela inibitória se apresenta como resposta à chamada crise da modernidade (a idéia de que as promessas da modernidade – liberdade, igualdade e fraternidade – não forma devidamente cumpridas), mesclando-se com pensamentos neopositivistas e voltando-se as demandas do chamado juspositivismo garantista, filosofia jurídica que reformulará conceitos de existência, validade e eficácia a partir da constatação de que conquanto a ordem jurídica seja garantista, porquanto reconhecedora de uma vasta gama de direitos fundamentais, a prática jurídica não o é, porquanto desvirtuada por determinados vícios perpetuados sob o rótulo da cientificidade.
E, finalmente, a tutela inibitória grassa em um momento ímpar de crise da legalidade (constatação de que a atividade legislativa foi derradeiramente atropelada pela velocidade das transformações sociais, impulsionadas pelos avanços tecnológicos e dos meios de comunicação). Diz-se ímpar porque a ordem jurídica, de modo expresso, passará a conceber a proteção de direitos e interesses, sinalizando a abertura da tutela jurídica para questões que vão um pouco além dos direitos formalmente materializados, o que se consubstanciará no maior dos golpes no juspositivismo dogmático.
IV. Taxonomia.
Em espartilhada síntese, seguindo-se a tradição germânica do século XIX, as ações são classificadas, segundo o provimento esperado, em ação de conhecimento, executiva e cautelar. Quanto às primeiras, subdividem-se, à luz da carga de eficácia das sentenças, em ações meramente declaratórias, condenatórias e constitutivas.
Refutando tal classificação, Pontes de Miranda já vaticinava o reconhecimento de novas categorias de provimentos jurisdicionais, aduzindo à existência de tutelas mandamentais e executivas lato sensu dentre as subdivisões da ação de conhecimento. As primeiras teriam, por objeto, uma ordem judicial para que se faça ou se deixa de fazer algo, sendo exemplo o mandado de segurança e a ação de modificação de registro público; já as segundas representariam a possibilidade de convivência, na ação de conhecimento, de medidas executivas, possibilitando ao Juízo determinar a entrega do bem da vida à míngua de uma ação executiva autônoma. A classificação tradicional revela-se tanto mais inadequada quanto constatado o pleno sincretismo entre a ação de conhecimento e a ação de execução, de acordo com as reformas do ordenamento processual brasileiro verificadas na última década.
Taxonomia é a metodologia das classificações. Um dos maiores expoentes do assunto, Durkeim, já concluíra pela natural aptidão do ser humano para organizar o conhecimento em sistemas, aduzindo à existência de taxonomias científicas e populares; ao fazê-lo, isto é, ao organizar o conhecimento em sistemas, está-se reduzindo as complexidades do objeto do conhecimento. É dizer, uma classificação perde a sua razão de ser quando resulta em complexidades maiores do que aquelas inerentes ao seu próprio objeto, razão pela qual deixaremos de lado, por ora, a taxonomia das ações e as discussões entre a classificação trinária ou quinária das ações de conhecimento.
Por outro lado, para uma adequada compreensão da tutela inibitória, propomos uma taxonomia dos provimentos jurisdicionais que adote, por referencial, a circunstância da entrega do bem da vida reclamado demandar provimento jurisdicional consistente na determinação de uma obrigação de fazer (inclusive, de entregar), não fazer, tolerar ou de pagar. Para os três primeiros casos, a tutela jurisdicional pleiteada será a tutela específica em sentido amplo; para o segundo caso, a tutela ressarcitória, que compreende a sub-rogação real da obrigação de fazer ou não fazer pelo seu valor pecuniário. Quanto à tutela específica, com base no art. 461 do CPC e 84 do CDC, propomos sua ramificação em tutela específica originária (correspondente à entrega efetiva do bem da vida) e tutela específica derivada (correspondente à medida judicial assecuratória dos efeitos práticos da obrigação devida). E dentre as tutelas específicas, ex-surgem a tutela inibitória e a tutela de remoção do ilícito como modalidades, conforme será adiante abordado.
V. Fundamento Jurídico.
Quando se fala em tutela inibitória, está-se aludindo ao gênero tutela específica, cujo mais pujante fundamento jurídico repousa no artigo 5º, incisos XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), e LIV (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal), da Constituição Federal.
O segundo dispositivo sobredito obsta a justiça pelas próprias mãos e enaltece a assunção, pelo Estado, do monopólio da jurisdição. Na medida em que o Estado clama para si tal monopólio, surge-lhe o dever, nos termos do primeiro dispositivo citado, de prestação da adequada tutela jurisdicional. De fato, se a tutela não for adequada à reivindicação de direito material, não se estará observando a norma do art. 5º, XXXV, da Constituição, e para que a prestação jurisdicional seja adequada, a tutela inibitória se mostrará essencial.
Densificando normativamente a tutela específica (e, conseqüentemente, a sua modalidade mais latente, a tutela inibitória), os artigos 461 e 461-A do CPC, e 84 do CDC (Lei 8.078/90), prescreverão a tutela específica nos seguintes termos:
CPC, Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1º A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.
§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).
§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.
§ 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.
§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.
Art. 461-A. Na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação.
§ 1º Tratando-se de entrega de coisa determinada pelo gênero e quantidade, o credor a individualizará na petição inicial, se lhe couber a escolha; cabendo ao devedor escolher, este a entregará individualizada, no prazo fixado pelo juiz.
§ 2º Não cumprida a obrigação no prazo estabelecido, expedir-se-á em favor do credor mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse, conforme se tratar de coisa móvel ou imóvel.
§ 3º Aplica-se à ação prevista neste artigo o disposto nos §§ 1º a 6º do art. 461.
CDC, Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1° A conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.
§ 2° A indenização por perdas e danos se fará sem prejuízo da multa (art. 287, do Código de Processo Civil).
§ 3° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu.
§ 4° O juiz poderá, na hipótese do § 3° ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
§ 5° Para a tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz determinar as medidas necessárias, tais como busca e apreensão, remoção de coisas e pessoas, desfazimento de obra, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial.
VI. Tutela Inibitória x Tutela Ressarcitória.
As principais distinções entre a tutela inibitória e a ressarcitória dizem com o objeto e com a eficácia de cada uma. Enquanto a tutela condenatória volta-se à reparação de um dano e, destarte, dirige seu olhar ao passado, a tutela inibitória volta-se especificamente ao ilícito, possuindo vocação prospectiva (preocupando-se com a prevenção, continuação ou repetição do ilícito).
Com efeito, a tutela ressarcitória destina-se à reparação de um dano e foi fortemente inspirada pelo Código Napoleônico, para o qual toda obrigação de fazer ou de não fazer resolver-se-ia em perdas e danos e juros, em caso de descumprimento pelo devedor (art. 1.142). É uma tutela repressiva e que, assim, revela-se insuficiente para a proteção de direitos indisponíveis, insuscetíveis de plena satisfação por meio de conversão pecuniária.
Já “a tutela inibitória, configurando-se como tutela preventiva, visa a prevenir o ilícito, culminando por apresentar-se, assim, como uma tutela anterior à sua prática, e não como uma tutela voltada para o passado, como a tradicional tutela ressarcitória”[2]. Neste sentido, o §1º do art. 461 do CPC e do art. 84 do CDC são expressos.