4. DA FIXAÇÃO DA MULTA COERCITIVA EM DECISÕES ANTECIPATÓRIAS DE TUTELA MANDAMENTAL
Para falar sobre a provisoriedade da decisão mandamental que concede a antecipação dos efeitos da tutela e ordena sua execução sob pena de incidência da multa coercitiva, é necessário analisar a espécie da cognição utilizada para tanto.vComo se sabe, um dos maiores objetivos do processo é a obtenção da maior aproximação possível da verdade dos fatos, de modo que a solução jurídica eleita seja dotada de justiça.
De maneira clara, Barbosa Moreira citado por Lucon (2000, p. 183) explica:
O conhecimento humano da realidade é unilateral e fragmentário por natureza, podendo somente tornar-se menos imperfeito na medida em que as coisas sejam analisadas por mais de um ângulo e se ponham em confronto as diversas imagens parciais assim colhidas.
Assim, tal conhecimento dos fatos proposto com a instauração do processo judicial leva à caracterização de diferentes tipos de cognição e, pela posição de Lucon (2000, p. 185), são três: a superficial, exauriente e sumária.
A superficial se consubstancia na plausibilidade da alegação da parte formulada em juízo, eis que possível o ato jurisdicional almejado ser concedido sem a oitiva da parte contrária (LUCON, 2000, p. 193-194)
A exauriente, como se pode concluir, conta com o exame aprofundado dos fatos e razões expostas nos autos, ou seja, a atividade de conhecimento do juiz se deu “de forma plenária e completa” (LUCON, 2000, p. 185, itálico no original).
Por outro lado, a cognição sumária, como já adianta sua nomenclatura, conta com um exame menor de certeza sobre os fatos postos a juízo. No entanto, é fundada em requisitos a justificar a efetivação de providências solicitadas. Isso significa que a análise promovida se funda em probabilidades e não juízos de certeza, entretanto, tais probabilidades são suficientes para fazer com que os órgãos jurisdicionais concedem a proteção necessária ao bem da vida ameaçado (LUCON, 2000, p. 190).
E tal cognição sumária, é claramente dotada de provisoriedade, pois requer do magistrado a ulterior confirmação, modificação ou revogação, quando da consumação do pleno conhecimento exercitado no processo.
Adequando a explicação quanto à cognição provisória aplicada ao processo com o tema homenageado no presente trabalho, é importante pontuar que as formas de cognição sumária, a depender da tutela que se almeja, conta com suficiente certeza a ponto de adiantar o mérito da demanda. Nas palavras de Lucon (2000, p. 192):
[...] fica claro aqui que muitas vezes a tutela antecipada é concedida a partir de uma procedência parcial da demanda desde logo passível de ser outorgada (julgamento antecipado do mérito de alguns dos pedidos deduzidos pelo demandante). Nessas hipóteses, relativamente a esses pedidos, não resta dúvida de que a cognição se desenvolveu de forma ampla e exauriente [...].
O autor citado define tal forma de “cognição sumária exauriente” de “procedência parcial da demanda”. No entanto, passaremos a tratá-la como “antecipação do mérito da demanda”, de modo a não gerar interpretações errôneas em relação à nomenclatura adotada pela semelhança que tem com outros institutos do Direito Processual Civil Brasileiro.
De todo o modo, o que se pretende ao demonstrar a provisoriedade da decisão que concede a tutela antecipada, é a necessidade do provimento judicial de modo urgente e imediato, o que, para tanto, parte de um pressuposto superficial de convencimento. Entretanto, embora tal convencimento e motivação possam ser modificados no decorrer do trâmite processual, verdade é que a coercibilidade que decisão concessiva da tutela antecipada deverá ser revestida é inquestionável, sob pena de o provimento se tornar inócuo. Assim sendo, não obstante haver a possível modificação da decisão mandamental antecipatória da tutela, seus efeitos no mundo dos fatos deverão ser plenos a partir de sua prolação, de modo que seja cumprida por todos os envolvidos no processo, com o auxílio, se for o caso, de meios de coerção hábeis para tanto, como a aplicação (e exigibilidade) da multa coercitiva.
Em relação à eficácia do provimento judicial que estabelece a multa, destaca-se que a multa coercitiva está relacionada à decisão de natureza mandamental, e não à condenatória. De acordo com Marinoni (2000, p. 74):
A multa, ao agir sobre a vontade do obrigado, elimina a demora e as complicações que marcam a execução por sub-rogação, notadamente se observarmos o procedimento previsto entre os arts. 632 e 637 do CPC.
Nota-se a vontade do legislador em conceber a multa como mecanismo coercitivo, notadamente para fazer frente à necessária efetividade e celeridade das decisões prolatadas. A finalidade da multa, além de proporcionar a entrega tempestiva e eficaz da tutela jurisdicional pretendida, é também de facilitar o procedimento, de modo que se entende que a multa deverá surtir seus efeitos a partir da ameaça e não necessariamente com a execução de seu montante. Nas palavras de Lucon (2000, p. 164):
O provimento mandamental do artigo 461, concedido na sentença ou mesmo mediante tutela antecipada (§3º), não exige um processo separado de execução e deve, por si só, ser apto a proporcionar a tutela específica pretendida pelo demandante por meio da colaboração do obrigado.
Adota-se, assim, o entendimento de que as astreintes são vinculadas ao provimento judicial de cunho mandamental, podendo adquirir contornos executivos (através de própria prolação de decisão com tal carga executiva) a fim de assegurar o resultado prático equivalente (AMARAL, 2004, p. 83).
Finalmente, neste tópico, e para os fins do presente trabalho, impende destacar a adesão à corrente que defende o cabimento da execução provisória da decisão que fixou a multa coercitiva em sede antecipatória. Bedaque (2003, p. 397), tratando da execução provisória da astreinte nos casos de descumprimento da decisão concessiva de tutela antecipada, traz o contraponto acerca do artigo 12, parágrafo 2º da Lei n. 7.347 (BRASIL, 1985), sustentando que:
A imediata execução do valor da multa, tal como proposta pelo autor (p. 279) encontraria óbice no artigo 12, §2º, da Lei 7.347, de 24.7.85 (Lei da Ação Civil Pública), aplicável por analogia, que só admite após sentença favorável transitada em julgado. Opta-se, todavia, pela imediata exigibilidade da multa, pois se trata de meio de apoio, destinado a conferir efetividade à tutela de urgência. Conclusão contrária implica retirar completamente sua eficácia prática.
Portanto, não obstante a previsão em legislação especial, no tocante à exigibilidade da multa após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor, tem-se que o escopo da multa transcende essa afirmação, fazendo com que sua exigibilidade seja imediata. Continua afirmando o autor:
[...] a multa pode ser executada imediatamente, ainda que em curso o processo. Embora inexistente a tutela final, a multa está vinculada ao provimento antecipatório e pode ser exigida desde logo, pois decorre simplesmente do não atendimento o comando nele contido. (BEDAQUE, 2003, p. 397).
Parte desse posicionamento é seguido por Bueno (2008, p. 416) e Marinoni (2009a, p. 80), quando afirmam que a multa é exigível a partir do momento que a decisão que a fixou é eficaz. No entanto, ressalva-se que a exigibilidade mencionada por esses dois últimos autores refere-se à executoriedade, sendo possível, assim, sua execução provisória, sendo sua exigibilidade dependente, de acordo com os posicionamentos dos autores, do resultado favorável ao autor.
Sérgio Arenhart (2008) defende que a multa independe de qualquer iniciativa das partes para se perfectibilizar, bastando a atuação do juiz, de ofício, inclusive, para determinar os atos necessários a sua eficácia e efetividade, independendo, dessa forma, de qualquer fase ou processo autônomo. Seu posicionamento é fundamentado através da expectativa de que o devedor jamais opte pela multa e sempre cumpra a ordem judicial, motivo pelo qual é necessária certa dose de violência na aplicação do instituto, “sob pena de transformar o Judiciário em um poder de mentira, que só atua para o reconhecimento (mas não para a efetivação) de direitos” (ARENHART, 2008).
Diante disso, embora haja substancial parcela da doutrina e da jurisprudência posicionando-se no sentido de não ser cabível a instauração da fase de cumprimento provisório da decisão mandamental que fixou as astreintes, sendo condição para o seu processamento o trânsito em julgado do processo, constata-se inovadora linha de raciocínio entendendo ser sequer necessária a instauração de fase executiva, podendo a exigibilidade (além de imediata), na própria fase de conhecimento de onde originou sua fixação.
5. A RELAÇÃO ENTRE A EXIGIBILIDADE DA MULTA PREVISTA NO ARTIGO 461 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E O RESULTADO FINAL DA DEMANDA
O advento do instituto da antecipação dos efeitos da tutela e sua aplicação traduzem um amplo embate entre direitos constitucionais, eis que exigem do operador do direito uma atribuição de valores diversos a cada um deles, a depender da situação posta a juízo.
Conforme ensinamentos de Marinoni (2009, p. 240), “o artigo 5º da Constituição Federal do Brasil elenca uma série de direitos fundamentais, entre eles o direito à tutela jurisdicional efetiva”. Em outras palavras, a exemplo do texto legal contido no artigo 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) que, ao conceder ao juiz a possibilidade de, de ofício ou mediante requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, tem-se consagrado o direito à efetividade da jurisdição (ASSAN, 1998, p. 30-31).
Constatou-se, portanto, uma quebra de paradigma nos idos de 1994, quando o legislador brasileiro ponderou a supremacia do direito à efetividade da jurisdição ao da segurança jurídica. Essa mudança, conforme Assan (1998, p. 57), perpassa pelo histórico da sociedade, o que, considerando suas constantes transformações, requer uma ampla defesa e respostas ágeis. Nesse cenário, se fez necessário o aprimoramento do Poder Judiciário, de modo a ser efetivo e célere na apreciação dos conflitos postos em juízo.
Voltando à didática de Marinoni (2009, p. 240):
[...] é sabido que o Estado, após proibir a autotutela, assumiu o monopólio da jurisdição e, como contrapartida, conferiu aos particulares o direito de ação, até bem pouco tempo compreendido apenas como um direito à solução do mérito, mas hoje visto como o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. (grifei).
A proposição em favor da efetividade da tutela jurisdicional se torna tão forte a ponto de o legislador conceder a possibilidade de limitação ao direito de defesa, nos casos em que há a necessidade da urgência. Não é por outro motivo que o artigo 273 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) prevê a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela liminarmente. Isto porque o texto legal indubitavelmente limita o direito do réu em sua defesa, em prol da efetividade da tutela jurisdicional a ser entregue ao autor. Veja-se o texto contido no citado artigo:
Artigo 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: [...]. (grifei). (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973). (grifei).
Verifica-se, portanto, o dever do juiz em entregar antecipadamente o direito ao autor, nos casos em que restarem preenchidos os pressupostos específicos do instituto, o que acaba por priorizá-lo em face da restrição ao direito de defesa da parte contrária (MARINONI, 2009, p. 345). O autor ainda complementa:
Sendo o direito do autor mais provável que o do réu, e restando evidenciado o perigo na demora, não há como negar a tutela urgente, ainda que o réu não tenha exaurido o seu direito de defesa. [...] A postergação do contraditório é obviamente legitima, pois atende a um princípio merecedor de atenção, isto é, à efetividade do direito fundamental de ação. (MARINONI, 2009a, p. 365-366).
Dito isto, o dever de cumprimento da decisão judicial traduz-se no próprio conceito de direito à efetividade da jurisdição e de realização da justiça, justificando em alguns casos, inclusive, a restrição ao direito de defesa da parte contrária. Ou seja, além do interesse da parte em obter a tutela jurisdicional, há o interesse do Estado em que esta tutela seja efetivada. De acordo com Assan (1998, p. 188):
o tempo é um inimigo do direito, contra o qual o juiz deve travar uma guerra sem tréguas, a realidade dos processos judiciais e a angústia das longas esperar se constituíram em fatores tanto de desprestígio do Poder Judiciário como de sofrimento pessoal para aqueles que necessitam da solução dos conflitos e dramas vivenciados por meio da tutela jurisdicional, surgindo o artigo 273 do CPC com o objetivo de ser uma arma poderosíssima contra os males corrosivos do tempo no processo, ao instituir de modo explícito e generalizado a possibilidade da antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional pretendida.
O citado autor continua ressaltando que, caso não se tratasse a antecipação da tutela com a importância devida (e via de consequência, com precípuo dever de seu cumprimento), reconhecendo-a como efetivo instrumento de implementação de valores e garantias constitucionais, consubstanciados inclusive no próprio direito de acesso à justiça e na inafastabilidade do controle jurisdicional, se estaria a constatar que a Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988) obteve o mesmo nível (ou nível inferior) de efetividade em comparação às demais normas inferiores (ASSAN, 1998, p. 189).
Com suas palavras:
Logo, o artigo 273 deve ser compreendido e assimilado como instrumento operacional dos valores e garantias constitucionais, de modo a fazer com que a tutela antecipatória tenha a sua dimensão jurídica atrelada ao ordenamento constitucional, do qual não poderá desgarrar-se no momento da interpretação e da aplicação, convertendo em realidade o direito à adequada tutela jurisdicional e o acesso à ordem jurídica justa. (ASSAN, 1998, p. 189).
Nesse contexto, e conforme já exposto, Marinoni (2009, p. 223) defende a ampliação do âmbito de incidência da astreinte nos seguintes termos:
Se o princípio constitucional da efetividade, albergado no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal do Brasil, garante o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, ele também garante, como diz a melhor doutrina italiana, o direito às modalidades executivas adequadas a cada situação conflitiva concreta. Assim, se a execução da tutela antecipatória baseada em fundado receio de dano não tem efetividade mediante a via expropriatória, deve ser admitida, inclusive para que seja observada a Constituição Federal do Brasil, a tutela antecipatória de soma por meio da imposição da multa.
Não bastasse isso, o dever de cumprimento da decisão também está inserido na própria confirmação de que os requisitos específicos à concessão da antecipação da tutela foram preenchidos. Bertolo (2005, p. 50) explica que o artigo 273 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) possui um forte fundamento no tocante aos requisitos necessários à concessão da medida, sendo um indício de prudência do legislador “forçar” o magistrado, no caso de optar pela concessão, o faça alicerçado em motivação inequívoca naquele momento (ou seja, antes do contraditório).
Continua o mesmo autor:
De acordo com o saber de CARNEIRO (1999, p. 17), os pré-requisitos antes referidos dizem respeito à necessidade de se atender à exigência da existência de uma prova inequívoca que fundamente a verossimilhança das alegações do autor; ademais, do fundado receio de dano potencial e irreparável ao demandante, com base em eventual e previsível delonga no andamento do processo. (BERTOLO, 2005, p. 50).
Nesse sentido, a atribuição do poder ao juiz de determinar medidas executivas que repute necessárias à efetivação de decisões judiciais demanda a compreensão do significado das tutelas no plano do direito material a ser tutelado, sendo indispensável a respectiva justificação judicial de sua escolha (MARINONI, 2009, p. 125). Logo, a opção formalizada quanto ao mecanismo executivo a ser implementado para a obtenção do cumprimento da ordem judicial torna-se legitimo, tornando-se impositivo e coercitivo.
É isso que se depreende do posicionamento de Lucon (2000, p. 203), embora se refira à execução provisória, encaixa-se no contexto, quando afirma que, “Ao autorizar a realização de atos práticos sujeitos ainda ao exame pelos órgãos jurisdicionais, a preocupação do legislador incide unicamente sobre a efetividade do processo” (grifei).
É isso que se extrai da leitura dos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), quando afirma que a decisão antecipatória da tutela é acompanhada de suficiente carga impositiva da obrigação, tratando-se de ordem cujo cumprimento, no caso de não ser observado de modo voluntário, implica na adoção de medidas próprias de coerção, quais sejam, aquelas previstas nos parágrafos 4º e 5º, do artigo 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973).
Não é por outro motivo que as decisões antecipatórias da tutela, exceto no caso da obrigação de pagar, são dotadas, além do caráter declaratório, de executividade e mandamentalidade.
Nas palavras de Marinoni (2000, p. 42), o caráter mandamental da decisão tem a precípua finalidade de forçar o réu, atuando sobre a sua vontade para que este se convença a adimplir. Já o caráter executivo, garante a realização do direito independentemente da sua vontade.
Reconhece-se, assim, que o legislador municiou suficientemente o magistrado para conferir máxima efetividade quando da antecipação dos efeitos da tutela, demonstrando a necessidade do cumprimento da decisão por vontade do réu (artigo 461, parágrafo 4º do Código de Processo Civil, BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) ou não (artigo 461, parágrafo 5º do Código de Processo Civil, BRASIL, Lei n. 5.869, 1973).
De tudo isso, conclui-se que o direito fundamental à tutela jurisdicional implica também no direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, sendo esta dotada da necessária mandamentalidade a ponto de não ser possível a negação de sua consecução pelos particulares, bem como não se tornar uma mera opinião sobre o litígio (MARINONI, 2009, p. 137).
Feitas essas considerações, parte-se da constatação que a autonomia da multa coercitiva em relação à ulterior declaração de improcedência da demanda é alvo de críticas de diversos estudiosos no ramo do Direito Processual Civil. Inicialmente, é preciso ressaltar que a prestação da tutela jurisdicional independe de qualquer resultado final da demanda. Nesse ponto, Marinoni (2009, p. 142) afirma:
[...] é preciso deixar claro que a jurisdição cumpre a sua função mesmo que o direito material não seja reconhecido ao final do processo. Ainda que nesse caso não exista tutela do direto material, é inegável que a jurisdição é sempre exercida com o objetivo de proteger os direitos. A jurisdição atua em nome da tutela dos direitos mesmo quando o direito material não é reconhecido.
Entretanto, no que tange à exigibilidade da multa coercitiva no caso de reconhecimento da improcedência da ação, percebe-se o posicionamento majoritário no sentido de que a multa é diretamente vinculada à sentença de procedência do pedido, dependendo, assim, do resultado da demanda para obter sua exigibilidade definitiva. Coadunam com esse posicionamento Marinoni (2009a, p. 81), Talamini (2003, p. 259), Didier (2009, p. 454), Amaral (2004, p. 59) e Bedaque (2003, p. 397).
Marinoni (2000, p. 109) inicia a reflexão a esse respeito afirmando que a questão gira em torno de dois pontos: o da efetividade da multa e o da justiça em se cobrar o valor daquele a quem o processo ao final dá razão. E continua afirmando que a efetividade da multa não se concentra na cobrança de seu valor, eis que, se fosse assim, faria parte dos instrumentos indispensáveis à efetividade da tutela jurisdicional. E conclui sustentando que a função coercitiva da multa se relaciona com a possibilidade de sua cobrança (MARINONI, 2000, p. 109).
Em sentido semelhante, posiciona-se Bedaque (2003, p. 397), sustentando que a exigibilidade imediata da multa exigível existe, no entanto, se ao final constada a improcedência do pedido do autor, surge a este o dever de indenizar o réu:
Se o beneficiário obtiver a tutela satisfativa referente à sanção e o resultado do processo lhe for desfavorável, surgirá, em tese, o dever de indenizar a parte contrária, fundado na responsabilidade objetiva de quem se beneficia indevidamente com a tutela provisória (CPC, artigo 811).
Na mesma linha, Marinoni (2000, p. 110) defende que a obrigação de pagar a multa não poderá perdurar no caso de improcedência da demanda, justo por não ser a finalidade do Processo Civil o enriquecimento da parte que não tem razão às custas daquela que tem. No seu ponto de vista:
A multa não tem o objetivo de penalizar o réu que não cumpre a ordem; o seu escopo é o de garantir a efetividade das ordens do juiz. A imposição da multa para o cumprimento da ordem é suficiente para realizar este escopo, pois a coerção está na ameaça, e ninguém pode se dizer não ameaçado por uma multa imposta na tutela antecipatória ou na sentença de procedência [...], não há por que se penalizar o réu que, descumprindo a ordem, resulta vitorioso no processo.
Conclui o autor afirmando que, “não é racional admitir que o autor possa ser beneficiado quando a própria jurisdição chega à conclusão de que ele não possui o direito” (MARINONI, 2009, p. 81). Nessa linha argumentativa, expõe Amaral (2004, p. 59) que:
Denota-se, apenas, que a completude do processo de aplicação das astreintes, ou seja, sua previsão in concreto, sua incidência e sua execução, está umbilicalmente ligada ao interesse do autor, e o sucesso da demanda por este movida, independentemente de, no decorrer do processo, ter havido o descumprimento de uma ou outra ordem judicial.
Amaral (2004, p. 58-59) afirma ainda que o interesse na efetivação da prestação jurisdicional é do autor e não do Estado e, portanto, não se deve confundir as astreintes com a medida imposta no contempt of court do sistema da Common Law (a qual é advinda do direito norte-americano, e tem a função de preservar a efetividade das decisões do Estado, para se evitar o desrespeito ao tribunal), a semelhança dos artigos 14, 600 e 601 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), que possuem a função de conceder proteção à dignidade da Justiça.
É por tal motivo, portanto, que nesses casos, a multa é dirigida ao Estado, enquanto no caso das astreintes, para o autor. Continua o autor que “Como bem se vê, aplica-se uma punição a quem atenta contra a dignidade da justiça: e de punição, [...] não se tratam as astreintes” (AMARAL, 2004, p. 60).
Em outra passagem da obra do citado autor, traz-se um fundamento forte quanto à ideia de inexigibilidade das astreintes no caso de improcedência da demanda. Cita-se:
Se a decisão que fixa as astreintes constitui técnica de tutela e, portanto, meio para a obtenção da tutela jurisdicional específica, quando esta última não é sequer devida o autor (credor), ou, em outras palavras, quando o Estado (Juiz) não deve proporcionar ao autor a tutela jurisdicional específica, não há razão para adotar-se técnicas para este fim. (AMARAL, 2004, p. 68).
Amaral (2004, p. 217) traz os posicionamentos de Flávio Cheim Jorge e Marcelo Abelha Rodrigues, os quais também sustentam que a multa fixada não é devida quando houver decisão final de improcedência, “dado o efeito declaratório negativo, ex tunc”.
Talamini (2001, p. 253), defendendo a inexigibilidade da multa no caso de improcedência da demanda, afirmando que tal efeito é inerente do caráter provisório da decisão que a fixa.
Em sentido contrário, colhe-se o posicionamento de Spadoni (2002, p. 182), o qual sustenta que “a exigibilidade da multa pecuniária não recebe nenhuma influência da relação jurídica de direito material”. Para esse autor, o fato gerador da multa é a desobediência de uma ordem essencialmente processual, não se comunicando com o descumprimento da obrigação de direito material. Ou seja, no momento da confirmação de que a multa não atingiu seu desiderato, sua conversão é automática para uma desvantagem patrimonial que o demandado deverá arcar por conta de sua desobediência.
A assertiva recebe um contraponto que pode ser verificado na obra de Didier (2009, p. 453). Afirma este autor que o entendimento de Spadoni é equivocado quando relaciona a multa coercitiva prevista no artigo 461, parágrafo 5º do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) à mesma finalidade daquela multa trazida pelo artigo 14, inciso V e parágrafo único do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973). A multa coercitiva, nos dizeres do autor, não se confunde com aquela punitiva, advinda do contempt of court, tanto que a respectiva cumulação é admitida (justamente por se traduzirem em institutos distintos). Enquanto a astreinte é coercitiva, a multa do artigo 14, inciso V, e parágrafo único do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), é punitiva, tendo como fato gerador de sua incidência a ofensa e o descumprimento de decisão mandamental (DIDIER, 2009, p. 446-450).
Ademais, importante ressaltar que, de acordo com o mesmo autor (DIDER, 2009, p. 450), o caráter das multas diferem deveras (p. ex., quanto à natureza, finalidade, beneficiário e forma de fixação e incidência).
Na visão do autor, talvez a maior diferença entre os dois institutos esteja na natureza jurídica, visto que na astreinte, está-se diante de cominação estritamente processual, relacionada unicamente na pretensão em efetivar a decisão judicial a partir do convencimento do réu de sua obrigação, enquanto que a multa do artigo 14 (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), detém caráter administrativo, de reprimenda por parte do magistrado a quem desobedece ou embaraça seu comando (seja autor ou réu) – eminentemente relacionada ao contempt of court (DIDIER, 2009, p. 450).
Ignorando a crítica formulada e seguindo a linha de Spadoni (2002, 182), posiciona-se também Arenhart citado por Amaral (2004, p. 160), afirmando:
A função, portanto, da multa é garantir a obediência à ordem judicial. Pouco importa se a ordem se justifica ou não; após a sua preclusão temporal ou, eventualmente, a análise do recurso contra ela interposto junto ao tribunal, só resta o seu cumprimento, sem qualquer ulterior questionamento. [...] Se, no futuro, aquela decisão será ou não confirmada pela decisão final da causa, isto pouco importa para a efetividade daquela decisão. Está em jogo, afinal, a própria autoridade do Estado. Não se pode, portanto, dizer que ocorreu apenas o inadimplemento de uma ordem do Estado-juiz. Ocorreu, em verdade, a transgressão a uma ordem, que se presume legal. Se o conteúdo desta ordem será, posteriormente, infirmado pelo exame final da causa, isto pouco importa para o cumprimento da ordem em si.
Verifica-se do entendimento colhido a interpretação de que, no momento do descumprimento da ordem judicial, a conduta do réu acaba por atingir duas vertentes: uma de direito material (relacionada a sua obrigação com o autor), e outra de direito processual (relacionada com o dever de cumprimento da ordem judicial). Ainda, o autor sustenta que a conclusão obtida com a sentença, em nada influencia ou afasta o fato de ter o réu descumprido a determinação do juiz, motivo pelo qual a multa coercitiva permaneceria exigível.
Ainda, continua Arenhart citado por Amaral (2004, p. 163) que:
A parte, a quem incumbe o cumprimento da ordem, sabendo ser ela passível de mudança com a sentença, não tem estímulo para o cumprimento voluntário da ordem, já que: em cumprindo, não terá nenhum benefício; em não cumprindo, sujeita-se à sorte de suas alegações no processo e à eventualidade de sucesso em sua defesa. Põe-se por terra todo o esforço do jurista no intuito da efetividade do processo.
Percebe-se que a posição do autor é que a legitimidade da imposição da multa coercitiva se dá independentemente de sentença de procedência que a ratifique. Ou seja, a efetividade do instituto com a busca de resultados práticos, depende do descumprimento como único fator para a exigibilidade da multa respectiva, sem se vincular ao mérito da demanda.
Amaral (2004, p. 161) discorda de Arenhart sob o fundamento de que este autor estaria equivocado em comparar a multa coercitiva com outras multas que efetivamente possuem um caráter punitivo (o que não seria o caso das astreintes).
O autor (AMARAL, 2004, p. 165) vai mais longe afirmando que “ao se admitir a exigência do crédito resultante das astreintes arbitradas como técnica de tutela de direito que não foi reconhecido por decisão final, se estará desvirtuando a função do processo”. Amaral (2004, p. 165) continua ainda sustentando que:
A deformação das astreintes proposta pelos juristas que pregam sua exigibilidade, mesmo diante de decisão final de mérito que não reconheça o direito do autor, revela a completa escravização do homem à técnica processual, que, por sua vez, deixa de atuar na pacificação dos conflitos, passando a ser fonte dos mesmos, ao permitir resultados socialmente injustos.
Arenhart (2003, p. 371) contrapõe seu posicionamento afirmando que o escopo da multa é garantir a obediência à ordem judicial, não sendo possível cogitar que o requerido a questione (senão pelo processo), sob pena de negar-lhe todo o caráter coercitivo. O autor continua dizendo que pouco importa se a ordem se justifica ou não, ou se a decisão será confirmada, mas sim que decisão seja respeitada, pelo simples fato de decorrer de uma autoridade pública.
Cendon citado por Amaral (2004, p. 67-68) noticia que tal posição é adotada pelo sistema processual francês, baseada na finalidade da multa em assegurar a autoridade e o respeito às decisões judiciais, mesmo nos casos que a decisão que fixa determinada obrigação a ser cumprida é revogada. Complementa Arenhart (2008):
Precisamente em conta disso tudo [da jurisdição como um poder de império e característica indissociável da jurisdição] é que se legitima a imposição de ofício da multa coercitiva, a alteração de seu valor também independente de requerimento e a fixação do valor em patamar desproporcional ao conteúdo da prestação. Porque não há ligação direta da multa coercitiva com a prestação (de direito material) solicitada pela parte, não pode haver vinculação necessária entre o direito material (protegido) e a ordem judicial (cujo cumprimento é garantido pela técnica coercitiva).
Talamini (2001, p. 255) enfrenta pontualmente esse argumento, explicando que não é viável sustentar que a multa serve para resguardar a autoridade do juiz, e que por isso, mesmo que se constasse a falta de razão do autor, não seria possível apagar o descumprimento do réu em cumprir a decisão que lhe fora imposta. Isto porque, na sua visão, “A legitimidade da autoridade jurisdicional ampara-se precisamente na sua finalidade de tutelar quem tem razão”.
Nota-se, portanto que o tema não é pacífico. Outrossim, verifica-se a predominância do entendimento de que a multa não seria exigível no caso de ulterior sentença de improcedência da demanda, e que seria incorreta a atribuição de sua função como forma de proteção à autoridade estatal. Em sentido contrário, entende-se haver harmonia entre o cabimento da multa, sua exigibilidade imediata e sua vinculação ao aspecto processual (e não material) do direito.
Verifica-se também na legislação especial a aplicação das astreintes (notadamente quanto à Lei da Ação Civil Pública, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso e Código de Defesa do Consumidor), de maneira diferenciada, sendo que suas regras, conforme doutrina e jurisprudência, podem ser aplicadas à regra geral, visto que esta possui omissões que dificultam sua aplicabilidade.
Assim sendo, conforme a visão de Amaral (2004, p. 42), embora os artigos 11, da Lei da Ação Civil Pública (BRASIL, Lei n. 7.347, 1985), 213, parágrafo 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, Lei n. 8.069, 1990) e 83, parágrafo 3º do Estatuto do Idoso (BRASIL, Lei n. 10.741, 2003), estejam abrangidos pela sistemática do artigo 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), tais disposições contêm especial previsão de que a exigibilidade da multa coercitiva só se daria com após o trânsito em julgado da sentença favorável ao autor. Por conta disso, grande parte da motivação da doutrina que entende ser a exigibilidade da multa coercitiva prevista no Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973) condicionada ao resultado final da demanda. Veja-se, por exemplo, Didier (2009, p. 454), Nery Jr. (2001, p. 1150).
Talamini citado por Didier (2009, p. 455) afirma não ser possível sustentar a inexigibilidade da multa quando vencido o autor da demanda apenas sob o fundamento do artigo de lei incluído na Lei da Ação Civil Pública (BRASIL, Lei n. 7.347, 1985), uma vez que (a) se deve considerar a especialidade da legislação – expressa nesse sentido; e (b) não houve disposição semelhando no Código de Defesa ao Consumidor (BRASIL, Lei n. 8.078, 1990), que lhe é posterior.
Didier (2009, p. 455) traz a possibilidade de se erigir os mesmos contrapontos formulados por Talamini quanto à Lei da Ação Civil Pública (BRASIL, Lei n. 7.347, 1985), no tocante à previsão legal do Estatuto do Idoso (BRASIL, Lei n. 10.741, 2003) e do Estatuto de Criança e do Adolescente (BRASIL, Lei n. 8.069, 1990).
Assim, verifica-se que a questão está sendo gradativamente superada, com a aplicação de entendimento similar à regra geral insculpida a partir do artigo 461 do Código de Processo Civil (BRASIL, Lei n. 5.869, 1973), na qual não há a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado da decisão que fixou a multa coercitiva para o início do procedimento competente para a sua exigibilidade.