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A crise do serviço público e a concepção de Léon Duguit: uma visão finalística

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Agenda 18/10/2012 às 17:10

O elemento finalístico do conceito de serviço público é algo que persiste e deve sempre persistir ante as mudanças e alterações de mercado, economia, política e sociedade.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo expor os principais termos da teoria desenvolvida por Léon Duguit, especialmente na sua concepção e fundamentação do Estado e na noção de serviço público como razão de ser do Estado. Será exposta a questão da denominada “crise da noção de serviço público” ante o novo papel do Estado neo-liberal, analisando esta questão ante o finalismo da teoria duguitiana do Estado/serviço público voltado para a consecução da solidariedade e interdependência social, ou do próprio interesse público, demonstrando-se assim a inexistência desta crise e a plena aplicação desta visão de Duguit considerando-a em seu aspecto finalístico.

Palavra-chave: Léon Duguit. Teoria do Estado e serviço público. Crise da noção de serviço público. Concepção finalística.

Sumário: I. Introdução; II. Breve Biografia de Léon Duguit; III. A Influência do Pensamento de Émile Durkheim; IV. A Base da Teoria do Estado de Duguit; V. A Soberania e o Conceito de Nação; VII.Os Três Fundamentos do Estado de Dugit; VIII. A Crise da Noção de Serviço Público Numa Perspectiva Duguitiana: Uma Análise Finalística; IX.  Conclusão.


I – INTRODUÇÃO

Tema dos mais caros ao Direito Administrativo, desde sua origem enquanto ramo autônomo do Direito até os dias atuais tem sido a questão da conceituação do serviço público, ou da sua noção, como preferem alguns.

Trata-se de categoria das mais importantes para o estudo do Direito Administrativo, chegando quase que a se confundir muitas vezes com o próprio estudo deste ramo do Direito, ante a sua dimensão e importância para a sociedade, além de buscar definir o exato papel do Estado.

Neste contexto avulta a figura de Léon Duguit, proeminente jurista francês, conhecido como o fundador da “Escola de Serviço Público” ou “Escola de Bourdeux”. Duguit não formulou simplesmente uma teoria sobre o serviço público, mas sim reformulou a própria teoria do Estado e as bases do Direito Público, propondo o serviço público como conceito que substituiria o próprio conceito de poder público, constituindo a própria razão de existir o Estado.

Partindo da constatação das profundas mudanças sociais ocorridas no final do século XIX, realidade que fez com que, na sua visão, a proposta liberal não mais oferecesse resposta adequada, Duguit funda sua teoria no solidarismo, com base nas ideias do sociólogo Émile Durkheim. O solidarismo passa a ser o conceito que substituiria, em sua obra, o conceito de soberania.

As ideias de Duguit constituíram verdadeira revolução que atingiram os pilares do Direito Público. Tratava-se de nova concepção do Direito impulsionada por uma nova realidade social, realidade que se consagraria como o Estado Social, marco sociológico e jurídico que ainda mantém sua atualidade no campo teórico e político.

A concepção proposta por Duguit, seja pelo seu caráter inovador e mesmo polêmico, seja pelo pioneirismo e marcante traço ideológico, influenciaram gerações de juristas, sendo estudadas até os dias atuais, defendida o ou criticada, mas reconhecida pelo seu conteúdo e importância para o Direito Público e mais especificamente para o Direito Administrativo.

A par da evolução do conceito ou noção de serviço, que não constitui objeto deste estudo, fala-se numa crise deste conceito ou noção, especialmente nos dias atuais, em que as transformações do Estado, cíclicas e inevitáveis, levam a novas formas de prestação de serviços, novas figuras jurídicas, a um forte traço econômico, marcado pela livre concorrência e atuação do setor privado em áreas até então tipicamente afetas ao Estado através de prestação de serviço público, algo similar ao do sistema das public utilities do Direito anglo-saxônico, e fortemente causado pelas regras do Direito Comunitário Europeu, marcado pelo aspecto concorrencial e econômico.

Visa o presente trabalho apresentar inicialmente as principais ideias de Duguit, de forma evidentemente resumida, porém não se limitando a tratar especificamente da sua noção de serviço público, mas sim das bases de sua construção teórica, desde a influência das ideias de Durkheim no campo sociológico, passando pela reconstrução da teoria do Estado até chegar a importância dentro de sua teoria da noção de serviço público.

Compreendida a teoria de Duguit se verá a questão da crise atual do conceito de serviço público, ante as novas categorias e figuras surgidas da complexidade dos atuais Estados.

Finalmente se fará um cotejo entre a suposta crise da noção de serviço público e a teoria de Duguit, conferindo-se ênfase no aspecto finalístico de sua teoria, demonstrando a atualidade de suas ideias e a aplicabilidade, ao menos em parte, dos pressupostos finalísticos de sua teoria ao atual quadro do serviço público, noção que persiste ao longo das trajetórias político-econômicas dos Estados.


I I– BREVE BIOGRAFIA DE LÉON DUGUIT

Pierre Marie Nicolas Léon Duguit nasceu em 4 de fevereiro de 1859, em Libourne, na França, vindo a falecer em 19 de dezembro de 1928. No ano de 1882 ele foi aprovado no concurso para professor titular (professeur agrégé), também chamado grand concours, o qual era um concurso único para todas as disciplinas jurídicas, demandando conhecimento integrado das ciências jurídicas[2].

No início de sua carreira Duguit foi professor na cidade de Caen, sendo que em 1886 ele retorna para Bourdeux para lecionar Direito Constitucional. Na Faculdade de Direito de Bourdeux Duguit foi professor e também diretor, cargo que exerceu entre 1901 e 1919.

Como professor a marca característica de Duguit foi seu espírito crítico e combativo contra as teorias tradicionais do Direito, tendo ainda forte atuação social como membro do Conselho Municipal de Bourdeux e estando a frente de várias obras de proteção a infância.

O consagrado professor de Bourdeux se definia como um positivista que procurava uma concepção científica do direito, perseguindo sempre um método indutivo e experimental. Suas concepções o levaram a ser classificado pelos partidos de direita como “republicano de esquerda” e ao mesmo tempo como “grande burguês” pelos partidos de esquerda.

Em suas reuniões periódicas realizadas em sua casa com colegas de faculdade, tais como o historiador Camille Jullian, o físico Duhem e o sociólogo Émile Durkheim, Duguit recebeu grande influência em seus pensamentos, em especial deste último, conforme se demonstrará.

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Os diversos rótulos que lhes são atribuídos por autores diversos demonstram a complexidade do sistema duguitiano: para Bonnard um “positivista agnóstico”, para Gurvitch um “objetivista sensualista”, para Laski o precursor do “pluralismo”, para Hauriou um “monista” e “anarquista da cátedra”, e para Waline um moralista, dentre outros tantos rótulos (Farias, 1999, p.15).

Seus trabalhos vertem para a elaboração de uma doutrina do direito e do Estado fundada na natureza sociológica do fenômeno jurídico. Ele recorre a sociologia para diminuir o afastamento do direito em relação as outras ciências sociais. Assim, a análise do Estado e do direito são essencialmente críticas.

Segundo José Fernando de Castro Farias, as reflexões desenvolvidas por Duguit se dividem em três fases. A primeira é marcada pela influência da filosofia de Spencer[3], adotando um organicismo em que o direito e a economia política são vistas como as duas partes que compõem a sociologia. Na segunda fase, a partir de 1901, há forte influência do pensamento de Durkheim, calcado num sociologismo experimental, recorrendo principalmente ao conceito de solidariedade social para a análise jurídica. Já num terceiro momento, a partir de 1914, ele faz grande apelo ao trabalho de Santo Tomás de Aquino e ao sentimento de justiça (Farias, 1999, p.19-21).

 Algumas de suas obras mais importantes são: Traité du Droit Constitutionel (5 vol., 1911), Les Transformations Générales du Droit Privé depuis le Code Napoleon (1912), Les Transformations Générales du Droit Public (1913), Le Droit Social, le Droit Individuel et les Transformations de l’Etat (1922), Le Pragmatisme Juridique (1923), Lecciones de Derecho Público General(1926)[4].


III– A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO DE ÉMILE DURKHEIM

Apesar de ter sofrido outras importantes influências, o pensamento de Duguit em sua proposta de reformulação do Estado, do fundamento do direito e da relação Estado x indivíduo x sociedade, teve decisiva influência das idéias solidaristas de Durkheim.

Émile Durkheim é considerado um dos pais da moderna sociologia, juntamente com Max Weber. Após ter estudado na École Normale Superieure se formou em filosofia no ano de 1882, tendo ido trabalhar cinco anos mais tarde na Universidade de Bourdeux como professor de pedagogia e ciências sociais, quando então começou seus estudos sociológicos (Pereira, 2002).

Durkheim é o fundador da chamada Escola Francesa de Sociologia, sendo um ferrenho opositor da educação religiosa, defendendo que o método científico era a forma de desenvolvimento do conhecimento. Podemos apontar como principais pontos de sua teoria sociológica:

Existem fenômenos sociais que devem ser analisados e demonstrados com técnicas especificamente sociais;· A sociedade era algo que estava fora e dentro do homem ao mesmo tempo, graças ao que se adotava de valores e princípios morais;· As pessoas se educam influenciadas pelos valores da sociedade onde vivem;· A sociedade está estruturada em pilares, que se manifestam através de expressões (conceito de estrutura);· Divisão do trabalho social: numa sociedade cada indivíduo deve exercer uma função específica, seguindo direitos e deveres, em busca da solidariedade social. Desta forma, pode-se chegar ao progresso e avanço para todos.

Acerca do solidarismo, objeto de interesse para este estudo, Durkheim escreveu em 1893 o livro A Divisão do Trabalho Social, que é sua grande obra de sociologia econômica, fruto de sua tese de doutoramento. Esta tese é uma crítica profunda ao individualismo utilitarista dos economistas da época. Usando suas palavras, a vida econômica não nasceu da vida individual, ao contrário foi a segunda que nasceu da primeira. Ele centra suas atenções nas conseqüências sociais do modo capitalista de organização social e econômica, partindo de uma premissa que os fenômenos econômicos são fruto de um contexto histórico, sendo influenciado pelo comportamento dos indivíduos, os quais influenciam. O individualismo racional seria um fenômeno recente e gradual, característico de sociedades modernas (Silva, 2006).

Partindo de uma análise institucional da economia ele tenta abordar os efeitos desestabilizadores dessa nova sociedade e do capitalismo, tendo como tema central a relação indivíduos x coletividade e a ordem social.

Segundo Durkheim, para que vários indivíduos possam constituir uma sociedade é necessário o estabelecimento de laços de solidariedade, podendo esta solidariedade ser mecânica ou orgânica. A primeira se caracteriza por uma igualdade entre os indivíduos, todos se assemelhando em idéias e valores, enquanto que a segunda é exatamente o oposto, em que o consenso resulta ou é fruto da diferenciação, havendo analogia com o corpo (orgânico), onde o todo depende de cada órgão. As sociedades primitivas tem solidariedade mecânica.

A nova ordem de divisão do trabalho capitalista, especializada, traz, segundo os utilitaristas, maior ganho geral, portanto maior felicidade a todos. Ele contradita esta tese com o argumento de que esta nova ordem na verdade traz novos problemas, necessidades e é motivo de infelicidades, verificada no aumento de suicídios, pois a felicidade esta ligada ao equilíbrio entre as necessidades e os meios para satisfazê-las.

Para Durkheim a divisão de trabalho com fins a aumento de eficácia, conforme justificado pela teoria econômica, contraria a solidariedade orgânica, pois essas regras não poderia ser explicadas em termos puramente econômicos. Parte Durkheim do pressuposto que assim pensando os indivíduos seriam diferentes conscientemente uns dos outros antes de ter ocorrido a própria diferenciação social. A individualidade não pode ter ocorrido antes da solidariedade orgânica e da divisão de trabalho. A divisão de trabalho deve, assim, ser encontrada na morfologia da sociedade.

Como a sociedade mecânica precedeu a solidariedade orgânica não é possível explicar os fenômenos da diferenciação social a partir dos indivíduos. Na ideia defendida por Durkheim as instituições não tem origem contratual e nem se fundam a partir de acordos que objetivam fins comuns, pelo contrário, elas tem origem em momentos de efervescência social onde as relações entre os homens são mais intensa, qualitativa e quantitativamente (Pereira, 2002).

Nessa ordem de ideias as instituições organizam as relações sociais e atividades econômicas, regulando os conflitos de interesse e permitindo a própria definição dos interesses individuais. As regras sociais nunca terão seu peso diminuído pelo individualismo, havendo, assim, uma prioridade histórica da sociedade sobre o indivíduo, sendo os fenômenos individuais explicados pelo estado da sociedade.

Nas sociedades modernas o problema é a manutenção de um mínimo de consciência coletiva, sem o que haverá desintegração social. O problema central das sociedades modernas é a relação indivíduo x grupo. Para evitar uma anomia própria dessas sociedades é necessário organizar grupos profissionais que favoreçam a integração dos indivíduos na coletividade, sendo verdadeiro antídoto ao progresso da divisão de tarefas econômicas e sociais (Pereira, 2002).


IV – A BASE DA TEORIA DO ESTADO DE DUGUIT.

O Estado de Direito é uma concepção de Estado que surgiu como contraponto ao Estado de Polícia. Este é caracterizado essencialmente pelo poder absoluto do Estado, confundindo-se com arbitrariedade, uma vez que o governante e os agentes do Estado não se submetiam a lei. Com o Estado de Direito tal situação é alterada, passando o Estado a estar sujeito ao império do direito, sujeitando-se as mesmas leis que os cidadãos, que passam a ter uma proteção contra a arbitrariedade do Estado.

Esses movimentos de limitação de poder político do Estado são identificados já mesmo na Carta Magna de 1215, sendo que para além do aspecto político e mais especificamente no campo jurídico o Estado de Direito se liga a Revolução Gloriosa na Inglaterra em 1688, a independência dos Estados Unidos da América em 1776 e na França teve o seu ápice com a Revolução Francesa de 1789.

Teve este movimento de afirmação do Estado de Direito forte apelo liberal, uma vez que os movimentos norte-americano e francês estiveram inspirados no liberalismo enquanto afirmação do indivíduo e do individualismo, especialmente nos seus direitos naturais sagrados contra o Estado[5].

Quando da passagem do final do século XIX para o século XX o cenário político, histórico e social era outro, agora inspirado na revolução industrial, no aumento em quantidade e complexidade da própria função do Estado, na previdência social, no movimento operário e o sindicalismo. A resposta para este quadro era uma readequação da própria teoria do Estado, considerada por alguns como uma evolução do Estado Liberal clássico e por outros como um novo Estado de Direito, calcado na supremacia da lei, porém adotando-se critérios sócio-jurídicos para fundamentar um Estado de Solidariedade.

Segundo Alexandre Santos Aragão (Aragão, 2008, p. 35), a teoria do Estado de Duguit corresponde a uma teorização que visava atender a passagem do Estado monoclasse para o Estado pluriclasse[6], com conseqüências no Direito e no Estado, essencialmente sobre suas ações e fundamentações.

Para Duguit as teorias acerca do Estado de Direito não atendiam a esse novo quadro. Nem a visão de Stahl sobre o Estado de Direito formal, limitador do papel do Estado, nem a visão revolucionária francesa de soberania popular e divisão de poderes, ou ainda a concepção de Carré de Malberg da supremacia do legislador conseguiam responder ao novo quadro social existente. Da mesma forma a teoria alemã da Autolimitação do Estado, formulada por Ihering, que conferia a lei a supremacia absoluta, deixando pouco espaço ao parlamento e conferindo poder a burocracia atendia aos novos tempos, pois segundo Duguit o Estado, nesta concepção, se submetia as leis que ele mesmo estabelecia, mantendo intocada sua soberania. E esta soberania, para esse jurista francês, deveria ser da lei, com base na solidariedade social, prevalecendo sobre o individualismo (Farias, 1999, p. 59 e s.).

Duguit considera que confundir o Estado com o direito, como o fez Kelsen, torna difícil estabelecer o fundamento da limitação do Estado por este direito, pois tudo é o Estado. Isto, para ele, era uma verdadeira negação do direito público. Além disso, tal fórmula não abre espaço ao pluralismo político, pois em sua visão o direito não é uma criação do Estado, mas sim independente deste, impondo-se na verdade ao Estado como se impõe ao indivíduo (Duguit, 2005, pp. 12-25).

Assim também na questão da autolimitação, pois esta limitação, se imposta pelo próprio Estado, modificável a qualquer tempo também pelo Estado, não implica uma subordinação a lei. A Teoria da Autolimitação leva a uma concepção de poder público (puissance publique), que viria a ser superado pela concepção de serviço público de Duguit (Justen, 2003, p. 25)

Propõe Duguit uma reformulação do Estado com base no solidarismo social, o que implicava uma reflexão profunda sobre o próprio Estado Contemporâneo, não se limitando a uma revisão e ajuste do Estado Liberal, mas sim uma nova forma de Estado, com uma radical mudança no plano das práticas sociais, compreendendo uma nova racionalidade político-jurídica.

Este Estado calcado no direito de solidariedade proposto por Duguit propõe o abandono do individualismo liberal, encontrando sua essência no pluralismo, nas diversas forças da sociedade. Os campos político e jurídico tornam-se âmbitos de mediação de valores pessoais e políticos. A soberania passa a ser fundada no direito de solidariedade, sendo criada pela sociedade subjacente a organização estatal. Abandona-se a lógica subjetivista e se passa a uma lógica objetiva, do direito social (Duguit, 2005, pp. 18-23).

O poder, que para o liberalismo clássico é ocupado pelo Estado enquanto representante da sociedade, é externo a sociedade e não a incorpora. Na concepção solidarista este poder é construído dentro da sociedade, em suas múltiplas forças, sempre calcado nas práticas do direito de solidariedade, demandando um Estado que respeite a liberdade na sociedade, efetivamente emancipada, mas que também intervenha na consecução da igualdade social, da solidariedade social.    


V – A SOBERANIA E O CONCEITO DE NAÇÃO

A clássica divisão de soberania a tratava no viés da soberania externa, frente outros países numa visão de direito internacional, e da soberania interna, nacional ou popular, que é atribuída ao Estado em razão do poder concedido a nação. Tais conceitos não servem mais as transformações sociais do século XIX e início do século XX. A crise da noção de Estado e soberania caminhava concomitantemente.

Desde a Revolução Francesa que a noção de soberania nacional se consolidou como um dos fundamentos do direito público, sendo verdadeiro dogma da sociedade francesa. Porém a doutrina contestou tal conceito, a exemplo de Royer-Collard e Guizot, que falavam em uma soberania da justiça e da razão, passando por Carré de Malberg, que dividia a soberania em soberania nacional e soberania do povo, que segundo Bacot implicavam uma única soberania de uma coletividade indivisível de cidadãos atuais, até Saint-Simon e Auguste Comte, que criticavam esta noção como metafísica, distanciada da realidade dos fatos, só tendo significado se contraposta a soberania divina (Farias, 1999, pp. 142-147).

Duguit parte desta linha de crítica de Comte, onde a noção de soberania serve para derrubar a soberania da monarquia do ancien regime, substituindo o poder divino pelo poder do povo. A questão era como tornar efetiva a parte de cada um do povo e como equalizar a relação Estado x indivíduo na nova realidade do século XIX.

A teoria da soberania não rompeu, segundo Duguit, com a lógica anterior. Embora ele não negasse a importância da revolução na substituição da titularidade do Estado, a essência da concepção jurídica da soberania permanecia subjetiva, em razão de sua origem (nação), e não em razão de seu exercício conforme o direito.

Compreende Duguit que a ideia de nação é abstrata e vazia, não atendendo a nova divisão do trabalho e das classes sociais, sendo que a soberania era ilimitada, absoluta, admitindo somente um centro de decisão político. O conceito de nação necessitava empreender a unidade nacional, a coesão social, representando critérios sociológicos, numa nova estrutura social haurida da realidade, e não mais metafísica. A nação é uma realidade que se expressa no laço da solidariedade, atendendo a fragmentariedade da nova ordem social (Farias, 1999, pp. 148-152).

Dessa forma, Duguit propõe a substituição da noção de soberania pela noção de serviço público, uma vez que o poder não pode se legitimar pela causa de sua origem, mas pelo objetivo que persegue, imposto legitimamente pelo direito social. Não há um eu comum, uma personalidade na coletividade com vontade distinta das vontades pessoais.  

Nesta concepção em que a noção de soberania é substituída pela noção de serviço público, há obrigações dos governantes para com os governados, sendo a realização dessas obrigações a conseqüência e o fundamento da força dos governantes. As regras que limitam o Estado e sua força não são as regras comuns, mas a do Direito Administrativo. O Estado, como órgão da vontade dos governantes, se subordina a uma ordem objetiva não criada por ele próprio, que repousa na idéia da solidariedade social. Dessa forma o Estado passa a ser uma realidade distinta do Direito, sendo por ele limitado (Aragão, 2008, pp. 76-80).   

Em seu Tratado de Direito Constitucional ele afirma:

La nocción de servicio público sustituye al concepto de soberania como fundamento Del derecho público. Seguramente esta nocción no es nueva. El dia mismo en que bajo la acción de causa muy diversas, cuyo estúdio no nos interesa en este momento, se produjo  La distinción entre gobernantes y gobernados, La nocción de servicio público nació en el espíritu de lós hombres. Em efecto, desde ese momento se há compreendido que ciertas obligaciones se inponían a los gobernantes com los gobernados y que La realizacción de estos deberes era a la vez y la consecuencia y la justificación de su mayor fuerza. Tal es esencialmente La nocción de servicio público. Lo nuevo es el lugar preferente que esta nocción ocupa hoy en el campo del derecho, y La transformación profunda que por tal camino se produce em el derecho moderno (Duguit, Las Transformaciones del Derecho Público y Privado, 1975, p. 27)

Sobre o autor
Disney Rosseti

Mestrando em Direito e Política Públicas pelo UniCEUB, foi Diretor da Academia Nacional de Polícia e Superintende da Polícia Federal no Distrito Federal. É professor de Inteligência Policial na Escola Superior de Polícia da Academia Nacional de Polícia. Delegado de Polícia Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROSSETI, Disney. A crise do serviço público e a concepção de Léon Duguit: uma visão finalística. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3396, 18 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22834. Acesso em: 22 dez. 2024.

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