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Notas sobre o fato jurídico tributário.

Crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho

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Agenda 01/11/2001 às 01:00

3. A solução proposta por Eurico M. Diniz de Santi: enunciação do enunciado e enunciado do enunciado.

Buscando superar as dificuldades lógicas apontadas na intimidade da teoria carvalhiana, Eurico Marcos Diniz de Santi(26) introduz a distinção entre enunciação do enunciado e enunciado do enunciado. Inicia ele afirmando que seria necessário apartar o enunciado da enunciação. A enunciação seria o próprio ato de fala, enquanto o enunciado seria o seu produto, ou seja, aquilo que se fala(27). Partindo dessa distinção entre a instância da enunciação e o texto enunciado, Eurico Marcos Diniz de Santi assere que o conjunto de marcas, identificáveis no texto, que remetem à instância da enunciação denomina-se enunciação enunciada; doutra banda, a seqüência enunciada desprovida dessas marcas de enunciação denomina-se enunciado enunciado. Tais marcas da instância de enunciação seriam os dêiticos de espaço, tempo e pessoa disseminados no texto e que se referem à enunciação(28). Em uma lei, por exemplo, o seu conteúdo seria o enunciado enunciado, enquanto o seu número (Lei Complementar n° 64, por exemplo), a sua data e a autoridade da qual emanou seriam as marcas da instância de enunciação, ou seja, consistiriam na enunciação enunciada.

Mas qual a importância dessa distinção proposta? Partindo daquela distinção entre fato e evento, na forma levada a cabo por Paulo de Barros Carvalho, pela qual se teria deslocado o estudo das fontes, do universo normativo para o ato de aplicação do direito, afirma Eurico Santi: "(...) o ato de aplicação para entrar no direito há que se revestir de linguagem. (...) O ato de aplicação é o evento, que é traduzido por uma articulação lingüística, o fato: o evento retido do passado é o significado; o fato representado, o significante"(29). Sendo o ato de aplicação um evento, como se tornaria ele fato? Diz-nos o professor paulista: "O direito é criado por eventos que se tornam fatos à medida que são enunciados no produto desses processos normativos. Assim, numa lei identificamos a enunciação enunciada como as marcas do processo que ficam no produto: (i) o próprio nome lei, que indica a realização de determinado procedimento produtor de normas; (ii) a data da promulgação e da publicação; (iii) a referência à pessoa que sanciona e promulga a lei, e (iv) o local onde foi produzida a lei"(30).

Eurico Marcos Diniz de Santi, destarte, assume ostensivamente que o direito é criado por eventos, é dizer, o jurídico é criado pelo não-jurídico (ou ajurídico, se se preferir). O lançamento, como ato de aplicação, seria um evento que criaria o fato jurídico tributário enunciado (a norma individual e concreta, ou o enunciado protocolar e denotativo). Todavia, enquanto enunciação enunciada, também se relataria em linguagem competente, constituindo a si mesma como fato. Ou seja, o ato de aplicação constituiria o fato pelo enunciado enunciado, e se constituiria como fato pela enunciação enunciada.

Em que pese todo o esforço da construção teórica exposta, bem como a introdução de um acervo de expressões novas tomadas de empréstimo da lingüística, o certo é que o problema central da teoria carvalhiana continuou intocado: o como justificar que o evento do ato de enunciação (chamado de ato de aplicação) se constitua a si mesmo como fato. Para superar essa aporia, Eurico Santi radicalizou aquilo que a teoria carvalhiana havia deixado sem resposta. Asseriu ele: "Fica assim demonstrada, nessa teoria, que o direito não só cria suas próprias realidades nos enunciados enunciados de uma lei, como constitui a própria realidade de sua criação na enunciação enunciada. Ou seja, o próprio fato do poder constituinte originário torna-se fato jurídico, não porque juridicizado por uma regra a priori, como a norma hipotética fundamental de Hans Kelsen, mas porque entra para o direito pelo próprio documento que produz: os produtos juridicizam o processo"(31). Eurico Marcos Diniz de Santi, desse modo, descarta a existência da norma fundamental de Kelsen, como fundamento de validade do sistema jurídico, e em seu lugar põe um texto (veiculo introdutor de normas jurídicas, suporte físico), que se tornaria jurídico por si mesmo, através da enunciação enunciada das marcas do processo que ficam no produto. É dizer, o produto (Constituição) faria jurídico o processo (poder constituinte originário); o puramente fáctico (evento) constituiria a normatividade(32). Esse entendimento é levado às últimas conseqüências, como se pode ver na seguinte afirmação: "(...) o direito não só cria suas próprias realidades nos enunciados enunciados de uma lei, como recria e constitui a própria realidade de sua criação na enunciação enunciada. Ou seja, o próprio ato de aplicação da Constituição, que cria lei, torna-se fato jurídico, não porque juridicizado pela regra de competência, mas porque entra para o direito pelo próprio documento que produz: os produtos juridicizam o processo. Ou seja, o fato da criação da lei entra no corpus da lei: a lei é lei porque diz que é lei"(33).

Mas, é conveniente dizer, Eurico de Santi não leva suas afirmações às últimas conseqüências, como seria próprio. E não o faz pela impossibilidade lógica de fazê-lo. Se a lei é lei porque diz que é lei, o lançamento é lançamento porque diz que é lançamento, então o ato de aplicação estaria aplicando o quê? Nada, seria a única resposta adequada, vez que a norma não seria a priori à aplicação. Na verdade, o lançamento é ato administrativo porque a norma do art.142 do CTN assim o prescreve, especificando a autoridade competente para emiti-lo, seus pressupostos e sua forma, além dos seus efeitos. É absurda a afirmação de Eurico Santi segundo a qual "(...) a identificação da forma, do momento, do local e da autoridade é suficiente para atribuir força jurídica ao documento. Essa identificação estabelece a priori a validade do texto jurídico, ressalvando-se que eventuais desvios de conteúdo podem ser absorvidos por formas de correção previstas pelo sistema, como o mandado de segurança, a ação direta de incosntitucionalidade, e o amplo controle exercido pelo Poder Judiciário"(34). Ora, a identificação do documento apenas é juridicamente possível porque há uma norma a priori que prescreve a sua forma, o momento, o local e a autoridade competente para emiti-lo, ou do contrário não haveria critérios pelos quais pudessem ser apontados desvios de conteúdo. Se "o lançamento é lançamento porque diz que é lançamento", é evidente que o seu conteúdo não poderia ser sindicado pelo Judiciário, através do manejo de alguma ação, a não ser que admitíssemos - como seria conseqüente - a existência de critérios para o exercício desse controle do ato de aplicação, que lhe fosse exterior e anterior. E isso fica ainda mais patente, quando Eurico Santi conceitua o signo /validade/. Diz ele: "(...) validade será entendida doravante como a pertinência de um documento normativo ao direito positivo, em função dos critérios instituídos por sua fonte de produção, identificáveis na enunciação enunciada do próprio documento normativo"(35). Se há relação de pertinência do documento ao direito positivo, é porque o direito positivo é prius, de maneira que a enunciação enunciada haveria de guardar correspondência com a norma, que seria fundamento de validade do ato de aplicação (o lançamento, v.g.).

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A solução ofertada por Eurico Marcos Diniz de Santi para a aporia da teoria carvalhiana é, sem dúvida, a mais rica tentativa de justificar a juridicidade do ato de enunciação (relato, ato de aplicação, documento, suporte físico, veículo introdutor de normas) sem fazer remissão à incidência da norma geral e abstrata. Debalde. Submetida a uma severa análise crítica, resta evidenciada a inconsistência lógica dessa teoria, que se estriba em postulados arbitrários. Afinal, se a lei é lei porque diz que é lei, há exclusão de qualquer indagação mais séria sobre a validade dessa afirmação, dada a sua tautologia e ausência de fundamentação. Mas de onde a lei retiraria a sua juridicidade? Dela própria, seria a resposta. Mas por quê? Porque sim. Mas onde estaria dito isto? Nela mesma. A lei, desse modo, como todo e qualquer ato de aplicação, teria o seu fundamento de validade nela mesma, tornando o ordenamento jurídico um conjunto amorfo de normas individuais auto-fundamentadas. Cada ato de enunciação (relato) valeria por si mesmo, não havendo meios objetivos (ou ao menos intersubjetivos) de controle da sua juridicidade. Essa a razão pela qual não podemos endossar a teoria glosada.


4. Fato e evento em Habermas: sobre o plano da ação comunicativa e o plano do discurso.

Um empresário entra em uma livraria, escolhe um exemplar qualquer de um livro e se dirige à balconista. Apresenta o volume que escolheu e lhe dá um cartão de plástico. Ela, automaticamente, passa o cartão de plástico em uma máquina, que emite um cupom. O empresário apõe a sua assinatura no papel apresentado, pega o exemplar do livro escolhido e segue o seu caminho. Essa é uma situação comum na vida moderna, impensável anos atrás. Aquele evento cotidiano, corriqueiro, é prenhe de significado, seja econômico, seja sociológico, seja psicológico, seja jurídico. A sua apreciação pode ser feita sob os mais facetados ângulos, e ainda assim não ser esgotado como objeto do conhecimento. Se o observo sob a visada jurídica, posso simplesmente afirmar que significado algum possui, negando-lhe juridicidade. Tratar-se-ia de um mero evento social, sem a dignidade necessária para se tornar relevante para o direito. Esse evento apenas teria importância para o ordenamento jurídico se houvesse o descumprimento de alguma norma (por exemplo, o valor do livro era inferior ao valor do cupom, e apenas posteriormente o empresário se deu conta) e, não chegando os interessados a algum acordo, fosse o caso levado ao Poder Judiciário, que o relataria em linguagem competente, constituindo aquele evento do descumprimento da norma em fato jurídico, através da emissão de um enunciado protocolar e denotativo (sentença), subministrado pelas provas produzidas na instrução processual. Essa seria a visão sustentada pela teoria carvalhiana.

Qual o efeito mágico provocado pelo cartão de plástico, pelo qual o exemplar do livro passou para a posse do empresário? Como e em que circunstâncias posso denominar alguém de empresário? O livro adquirido passou a ser possuído ou passou a ser propriedade do comprador? As manifestações de vontades convergentes entre duas pessoas vinculam os seus emissores? Enfim, há alguma significação jurídica atribuível àquele evento, inclusive com a finalidade de prevenir a ocorrência de conflito de interesses?

Convencionamos chamar o cartão de plástico de cartão de crédito, substituindo assim o uso de papel, a que o ordenamento jurídico denomina dinheiro ou moeda. Quando, no mundo da vida, alguém entrega uma importância em dinheiro e adquire um produto, por certo não reflete sobre o significado dos seus gestos: "celebrei um negócio de compra e venda", "esse papel pode ser trocado por esse livro porque há normas que outorgam a ele uma referência econômica"; "tenho o direito subjetivo sobre esse objeto, que agora está incorporado ao meu patrimônio", etc. Ninguém, na mundanidade da vida, tematiza essas questões, porque o significado desses gestos é vivido dentro de uma dimensão simbólica intersubjetiva, social. A experiência atemática e pré-reflexiva do simbolismo jurídico ocorre no plano da ação comunicativa. Todos os dias aplicamos normas jurídicas, exercitamos direitos e nos submetemos a deveres sem que discutamos, ao menos mais profundamente, sobre o significado jurídico de cada uma dessas vivências, nada obstante não nos passe desapercebido que existe um plexo de normas jurídicas que regem as nossas vidas, como quando paramos em um sinal de trânsito, ou usamos o cinto de segurança em nosso automóvel, ou vamos escolher um candidato através do exercício do voto. A ação comunicativa, portanto, se realiza no mundo da vida(36). Entretanto, por vezes bastas surgem conflitos de interesses, questionamentos sobre a ocorrência de alguma situação que beneficiaria alguém, ou mesmo sobre o sentido de uma norma jurídica aplicável a uma dada ocorrência não controvertida pelos interessados. Nesse caso, já não mais estaríamos diante de uma experiência atemática, porém diante de pontos de vistas problematizados e contraditórios. Aqui, estaríamos no plano do discurso. Podemos dizer que passamos do plano da ação comunicativa para o plano do discurso quando as afirmações ingenuamente entabuladas (ou seja, atematizadas) quedam postas em questão, ou seja, quando a pretensão de validade implicitamente contida em uma afirmação se torna explícita e passa a ser objeto de confirmação ou negação.

Consoante expõe Habermas, "Bajo la rúbrica «acción» introduzco el ámbito de comunicación en el que tácitamente reconecemos e presuponemos las pretenciones de validez implicadas en las emisiones o manifestaciones (y, por tanto, también en las afirmaciones), para intercambiar informaciones (es decir, experiencias relativas a la acción). Bajo la rúbrica «discurso» introduzco la forma de comunicación caracterizada por la argumentación, en la que se tornan tema la pretensiones de validez que se han vulto problemáticas y se examina se son legítimas o no. Para inciar un discurso tenemos en cierto modo que salir de los contextos de acción y experiencia; en los discursos non intercambiamos informaciones, sino argumentos que sirven para razonar (o rechazar) pretensiones de validez problematizadas"(37). E, explicitando ainda mais sua teoria, afirma ele: "(...) en los plexos de acción comunicativa seria redundancia una explicitación de la pretensión de validez entablada com las afirmaciones; pero, tal explicitación es ineludible en los discursos, pues éstos tematizan el derecho que asiste a tales pretensiones de validez"(38).

Mas o que seria /ação/ para Habermas? Distingue ele entre comportamento (behavior) e ação (action). Comportamento seria um movimento produzido por organismo que reproduz a sua vida adaptando-se ao seu entorno. Pois bem, intencional é um comportamento que vem dirigido por normas ou se orienta por regras. "Las reglas y normas no son algo que acaezca, sino que rigen en virtud de un significado intersubjetivamente reconocido. Las normas tienen un contenido semántico, justamente un sentido que simpre un sujeto capaz de entenderlo las sigue, se há convertido en razón o motivo de un comportamiento; y es entonces cuando hablamos de una acción. Al sentido de la regla responde la intención de un agente que pueda orientar su comportamiento por ella. Sólo a este comportamiento orientado por reglas lo llamamos acción; sólo de las acciones decimos que son intencionales"(39).

Quando aquele empresário, do exemplo acima hipotisado, pega um livro na prateleira de uma livraria e dá à balconista o seu cartão de crédito, não está realizando um comportamento regular ou mecânico, mas sim um comportamento orientado por normas (ação). Enquanto um comportamento pode ser observado (o homem entrega a uma mulher sentada atrás de um balcão um pedaço de plástico e leva consigo um livro), as ações apenas podem ser entendidas, isto é, hão de ser analisadas determinadas notas desse comportamento com referência a regras subjacentes, as quais também devem ter previamente o seu sentido entendido (o empresário realiza o pagamento do negócio jurídico celebrado com a livraria, da qual a balconista é empregada, através do uso de um cartão de crédito, e leva consigo o livro comprado, que passou a integrar o seu patrimônio). Aqui, no plano da ação comunicativa, o sujeito capaz de ação pode em muitos casos não ser capaz de explicar as normas pelas quais orienta o seu comportamento. Todavia, na medida em que domina as normas e pode segui-las, tem um saber implícito delas. Em virtude desse know how pode, em princípio, decidir se uma determinada ação comportamental pode ser entendida através de uma regra conhecida, é dizer, se pode entender-se como ação(40).

Com essas observações abaetadas na retentiva, podemos com Habermas entender a ação comunicativa como uma interação simbolicamente mediada. Se orienta por normas obrigatórias que definem expectativas recíprocas de comportamento e que têm que ser entendidas e compreendidas ao menos por dois sujeitos agentes. Seu conteúdo semântico se objetiva em expressões simbólicas e só é acessível à comunicação por meio da linguagem ordinária(41). Nesse passo, temos que deixar assentado ponto de subido relevo para nossas reflexões: para que possamos entender uma ação, é necessário confrontamos o comportamento intencional com as normas, as quais logicamente lhe antecedem. Como diz Lourival Vilanova(42), lapidarmente, ao tratar da aprioridade das normas: "A norma não se pospõe, indutivamente, prepõe-se, antepõe-se aos fatos". Desse modo, os atos de fala regulativos apenas possuem pretensão de validade se houver uma norma que antecede já sempre estes atos. No dizer de Habermas: "Al dar a alguien una orden, o bien estoy expresando una necesidad subjetiva y una relación contigente de poder, y en tales casos estoy expresando una intención; o bien estoy expresando una relación legítima de dependencia, y en tal caso me estoy apoyando en una norma, cuya validez non es generada por mi acto de habla (como sucede en los actos de habla constatativos o representativos), sino que ya viene presupuesta en mi acto de habla"(43).

Voltemos ao exemplo da mulher que pára o seu carro diante de um semáforo vermelho. Sua ação é um comportamento orientado pelas normas de trânsito, que são uma objetivação conceptual que qualifica o fáctico, em sua dimensão simbólica e intersubejtiva(44). Se ela ultrapassa o sinal de trânsito e colide com outro veículo, pode travar-se uma discussão sobre se o sinal estava vermelho ou não, bem como a situação em que o acidente se deu, de modo a se ter um consenso sobre a quem assiste razão e a quem cabe o dever de ressarcir os prejuízos. Ora, nesse ponto deixamos o plano da ação comunicativa e passamos ao plano do discurso, quando então a pretensão de validade das afirmações feitas pelos agentes passa a ser problematizada, uma vez que cada qual emite proposições contraditórias sobre um mesmo estado de coisas.

Chegamos agora ao conceito de fato para Habermas. Ensina ele: "Que un semáforo esté en amarillo es(...), en el contexto del tráfico automovilístico (...), una informatión (la comunicación de una experiencia referida a la acción); se puede también decir que éstos son hechos, pero lo decimos, es decir, emplezamos a hablar de hechos, cuando tras un accidente automovilístico hay que aclarar el estado de cosas consistente en si aquel semáforo en un determinado momento estaba en amarillo (...). En el contexto de la acción la afirmación tiene el papel de una información acerca de una experiencia com objetos, en el discurso cumple la función de un enunciado com pretensión de validez problematizada"(45). Desse modo, os fatos para Habermas apenas advêm à linguagem no âmbito da comunicação que é o discurso, é dizer, quando, e apenas quando, resta problematizada a pretensão de validade que os enunciados levam consigo anexa. No contexto da ação comunicativa nos informamos ou nos transmitimos informações sobre objetos da experiência (eventos, para a teoria carvalhiana). Certamente que o conteúdo das informações se apoiam em fatos, mas apenas quando a informação se põe em dúvida e se passa a discutir sobre o seu conteúdo desde o ponto de vista de que algo seja o caso, embora possa não sê-lo, deve-se falar de fatos, que ao menos alguém afirma e que ao menos alguém o põe em dúvida(46).

Diante da resumida exposição do pensamento habermasiano, sobre o objeto de nossas reflexões, podemos observar que a distinção entre fato e evento levada a cabo pela teoria carvalhiana não absorve a distinção entre contexto da ação comunicativa e contexto do discurso, se divorciando por completo da teoria da verdade consensual, própria à teoria do agir comunicativo. Enquanto Paulo de Barros Carvalho formaliza o discurso jurídico, limitando a facticidade do direito àquilo que é relatado em linguagem competente, Habermas deita olhos sobre o mundo da vida e sobre a ação comunicativa, em que o simbólico da norma desempenha papel fundamental para a estruturação dialógica do tecido social. O plano do discurso, ademais, em seu sentido forte, há de ser motivado, ainda que contrafacticamente, pela disponibilidade cooperativa a entender-se, para além da coação própria da ação comunicativa(47). Os argumentos, no plano do discurso, devem ser expostos dentro de um espírito de sinceridade e cooperação, e não com a finalidade de vencer por vencer, atarvés de um formalismo legitimado pelo procedimento (Luhmann).

Apenas através de uma violência simbólica - insistamos mais uma vez - poderíamos aplicar a distinção entre fato e objetos da experiência, própria ao giro lingüístico (do qual Habermas é apenas um dos seus expoentes), para servir de joeira entre o jurídico e o não jurídico. No contexto do pensamento de Habermas, essa é uma questão sem sentido. Mais ainda por ser ele um crítico ácido do pensamento estruturalista de Luhmann e da teoria do sistema autopoiético, os quais renegam a importância do mundo da vida para a compreensão do fenômeno jurídico, nada obstante estejam eles à base da teoria carvalhiana(48).

Para uma utilização conseqüente, no contexto da dogmática jurídica, da distinção entre plano da ação comunicativa e plano do discurso, poderíamos fazer uso do conceito carneluttiano de lide, como conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida(49). Para Carnelutti, interesse não significa um juízo, mas uma posição favorável do homem à satisfação de uma necessidade. Como as necessidades humanas são infinitas e os bens que a satisfazem, escassos, há necessidade de se impor meios que induzam o homem a se abster do uso da violência. Os homens, reunidos em sociedade, estabelecem regras conforme as quais os conflitos de interesse venham a ser resolvidos, distribuindo os bens da vida. Todavia, as regras não são suficientes. Em caso de conflito, mesmo os homens reconhecendo a regra, podem sentir-se impulsionados, pelos seus interesses, a descumpri-la. Razão pela qual, nessas hipóteses, se faz necessário a expedição de um mandato, que nada mais é do que a imposição da regra por meio da força. Desse modo, o mandato encontra na norma o seu prius lógico. Os conflitos de interesse são compostos por meio de relações jurídicas, que subordinam um a outro interesse, de forma consensual. Por vezes bastas, porém, o titular de um interesse em conflito opõe resistência ao interesse de outrem. Quando isso acontece, o conflito de interesses se converte em litígio. O meio próprio para se compor a lide, com a subordinação autoritativa de um interesse a outro, é o processo.

A regulação que o direito faz da vida em sociedade possibilita a co-presença dos seres humanos, através da autonomização do simbolismo jurídico no mundo da vida. Os conflitos de interesses são compostos na mundanidade através da vivência intencional das normas jurídicas, que pelo diálogo possibilitam a cooperação consensual dos actantes. Logo, essa experiência do jurídico é pré-reflexiva e atematizada, nada obstante subordinadas a normas: estamos no plano da ação comunicativa. Quando, porém, o conflito não se resolve pelo diálogo, sendo as razões de cada actante contraditórias, entramos no plano do discurso, com a finalidade de compor aquele conflito de interesse qualificado com uma pretensão resistida, através do exercício cooperativo da argumentação fundamentada. Como se pode ver, essa tematização do conflito de interesse, com a finalidade de alcançar o consenso (composição da lide), é o que proporcionaria a edição de uma norma individual e concreta, constituindo aquela realidade conflituosa (evento) em fato. Enquanto para Carnelutti só há jurisdição onde houver lide; para a teoria carvalhiana, só haveria juridicidade onde houvesse a emissão protocolar de um enunciado denotativo. Em Paulo de Barros de Carvalho, de conseguinte, o direito, para factualizar-se, necessitaria sempre de uma formalização procedimental, que culminasse com um ato de autoridade. Vale dizer, a teoria carvalhiana é, nesse passo, mais reducionista do que a teoria carneluttiana(50).

Podemos deixar assentado - ao largo e por sobre tais teorias reducionistas do fenômeno jurídico -, que a incidência da norma jurídica, bem assim a sua aplicação consensual (atematizada), ocorre no plano da ação comunicativa; a aplicação problemática da norma, no plano do discurso. Tantos os particulares, como o Poder Público, aplicam as normas jurídicas consensualmente; apenas o Poder Público as aplica autoritativamente, como função específica sua (quer através da função administrativa, quer da jurisdicional). Mas todo ato de aplicação pressupõe a norma, dialogicamente vivida em sua dimensão simbólica, no plano do pensamento. Por essa razão, os eventos se juridicizam sempre no contexto da ação comunicativa, adjetivados de fatos jurídicos pela incidência da norma.

Essa a razão pela qual não abonamos a distinção, para a dogmática jurídica, entre fato e evento. Melhor, segundo pensamos, continuarmos a falar em fatos e fatos jurídicos: aqueles como fatos do mundo (hipotisados ou já concretizados na mundanidade da vida), e esses como fatos que ingressaram no mundo jurídico pela incidência de uma norma, no plano do pensamento.

Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: asc@adrianosoares.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Notas sobre o fato jurídico tributário.: Crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2298. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Continuação do artigo "Incidência e aplicação da norma jurídica tributária: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho", publicado na Revista Tributária n° 38, maio-junho de 2001, pp.19-35.

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