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Estado K.: sempre o Urso Branco

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A rotina de graves violações dos direitos humanos no Presídio Urso Branco, em Rondônia, revelam o que ocorre na sociedade. Os níveis de consciência e de responsabilidade pública indicam o estágio em que se encontram as relações sociais no conjunto do processo civilizatório.

Que é isso? – Aonde se foram? Voaram? Como!

Foi-se o tesouro!

Foi-me abstraída a posse única e rara,

A alma sem par, que se penhorara,

E pra dar queixa agora, aonde, a quem me dirijo?

De quem meu bom direito exijo?

MEFISTÓFELES - Goethe

Resumo: A rotina de graves violações dos direitos humanos no Presídio Urso Branco – Porto Velho/RO tem ocupado por tempo demais a “consciência social”. Não é possível que todo ano nós tenhamos o país denunciado nas cortes internacionais de direitos humanos, pelo descaso ou conivência das autoridades do Executivo e do Judiciário. Na verdade, o que se passa neste presídio revela o que ocorre na sociedade – os níveis de consciência e de responsabilidade pública indicam o estágio em que se encontram as relações sociais no conjunto do processo civilizatório.

Palavras-chave: Estado de Direito; direitos humanos; criminalização das relações sociais; Estado Penal.


Na fase atual da Modernidade Tardia, o processo civilizatório indica o aprofundamento que o humanismo atinge no mais amplo contexto social e cultural. Desse modo, se os presos são tratados pior do que os animais silvestres, caçados ilegalmente, é certo que as pessoas do lado de cá das grades não recebem comendas de convivialidade. Não é apenas uma questão formal de cumprimento e respeito ao Estado de Direito, pois trata-se de garantir que a dignidade humana esteja presente no cotidiano do homem médio. A tarefa civilizatória, se e quando cumprida, trará reflexos no não-desmatamento, na punição da violência contra a mulher, no combate ao trabalho informal. O cumprimento dos direitos humanos, como processo civilizatório, trará reflexos para a qualidade da educação e da saúde (pode um homem soltar vermes pelo nariz, dentro do hospital João Paulo II, sem que ninguém seja responsabilizado?1).

No sentido inverso, o cumprimento dos direitos humanos fundamentais implica em dizer que seremos pessoas melhores, mais “iluminadas pela razão”, inibindo nossa própria violência. Em todos os casos de graves violações, se o Judiciário não pune os responsáveis é conivente com a barbárie. O que se passa no Urso Branco é um termômetro do que acontece com o povo em todas as áreas significativas de sua vida, quando se depara com o trabalho escravo, com a prostituição infantil, com os homicídios encomendados. A negação dos direitos humanos fundamentais também está presente na inexistência do saneamento básico, quando o povo é condenado a beber água contaminada, quando se depara com a corrupção endêmica que condena milhares de pessoas à morte antecipada, quando é defrontado com o genocídio indígena2, quando o preso não tem assessoria jurídica ou é torturado e morto.

Vale lembrar que no Urso Branco ocorreu o segundo maior massacre de presos do país, só superado pelo Carandiru: oficialmente, 111 presos. Entre os dias 1° e 2 de janeiro de 2002, foram assassinadas 27 pessoas neste presídio de RO. Atualmente, o retrato global não é diferente: “De acordo com a Justiça Global, a superlotação na penitenciária persiste – com capacidade para 460 homens, atualmente abriga cerca de 700. ‘No Presídio Urso Branco houve um homicídio em janeiro. Há falta de assessoria jurídica e casos de tortura”3. Esse estado de coisas, com homicídios anunciados e torturas dentro do Presídio, lembra o panorama sombrio de outro complexo penitenciário: Guantânamo – Cuba. O que este modelo de sistema prisional tem em comum com tantos outros pelo mundo afora, é a vigência do terror, da tortura. O que esses meios revelam, é a ocorrência de meios de exceção acionados em nome da Razão de Estado, da Justiça e da vingança pública. Em suma, o emprego da exceção pelo Império, é o que se revela como meio de sustentação de uma espécie de Estado de Direito Internacional.


A exceção com previsão legal

A receita da confiabilidade não é nova, mas parece esquecida: “A manutenção da ordem pública, seja em uma era de violência ou não, depende do equilíbrio entre a força, a confiança e a inteligência” (Hobsbawm, 2007, p. 149). No terço final do século XX, até mesmo países de tradição liberal têm visto recrudescer a relação entre violência social e violência política. O que mais aproxima o terrorismo e a segurança pública não é o número de vítimas, mas sim a militarização (Estado Penal) e o medo irracional provocado pela violência. Aliás, é crescente o estresse pré-traumático diante da criminalidade e da violência social. Porém, o terrorismo baseado em assassinatos aleatórios, com emprego de assassinos de aluguel, nunca foi bem recebido por movimentos políticos mais tradicionais, como o IRA e o ETA. Em todo caso, a violência no século XXI é indiscriminada: “Essa degeneração patológica da violência política aplica-se tanto a forças insurgentes quanto às do Estado” (Hobsbawm, 2007, p. 126). É uma combinação expansiva de anomia social e enfraquecimento da força política (mas, como acréscimo da força policial) do Estado-Nação.

Além disso, desde 1914, vem se forjando a convicção ideológica de que o adversário é um inimigo bárbaro e deve ser abatido a todo custo. Na base desse realismo político, o Outro virou o “outro” – assim reduzido, relativizado, comprimido: “Isso significa que tanto os Estados quanto os insurgentes sentem ter uma justificativa moral para o barbarismo” (Hobsbawm, 2007, p. 127). A desnaturalização do indivíduo e a banalização do Mal implicam na substituição dos conceitos morais por imperativos superiores (força). Por sua vez, como fluxo regular desse tipo de oposição política, fortaleceu-se o terrorismo individual e os assassinatos políticos. Talvez o maior objetivo fosse ganhar notoriedade e exposição midiática.

Neste fluxo histórico, a Al-Qaeda, por exemplo, apenas é uma sucessora de grupos de insurgência política, étnica ou religiosa e que desembocou na transnacionalização do terror – o mesmo efeito que se vê com a Blackwater. O contra-terror mobilizado pelo Estado, muitas vezes como “esquadrões da morte” (inspirados na SS nazista), não tem como objetivo a prevenção ou a contenção política; mas sim a eliminação física do “outro”. Isto ainda revela uma “crise de civilização”, aguçada pelo desequilíbrio social, fracasso na descolonização, implosão do sistema internacional e crise nos sistemas peritos de autoridade, hegemonia e legitimidade. Os mercenários recrutados para lutar contra as forças dos ditadores são altamente profissionais e letais. São vários grupos envolvidos, mas destaca-se a empresa Blackwater. Para ficar em poucas referências, basta lembrar que esta empresa patrocinou os atos de maior violência conhecidos na Guerra do Iraque. A Blackwater ainda recrutou mercenários no Chile, soldados treinados pela ditadura de Pinochet: a mais mortífera da América Latina.

No Brasil, a Blackwater tem bases em reservas indígenas na Amazônia e em plataformas de petróleo administradas pela empresa Halliburton. Quem autorizou a entrada e a presença da Blackwater no Brasil? Até o governo do Afeganistão, outro ocupado pelos interesses do Império, proibiu a presença da empresa; mas, no Brasil, avançam pelo território. A mesma empresa que serviu à ocupação do Iraque, sob o governo de Bush, serve agora ao presidente Obama. A Blackwater conseguiu o que ninguém imaginaria ser possível, uma autorização especial para matar sem responder judicialmente. Seus atos de terrorismo não podem ser julgados como crimes de guerra, graças ao salvo conduto ganho do governo dos EUA – que também não respeitam o direito internacional. O exército de mercenários a serviço do Estado Penal Internacional, portanto, serve diretamente à Razão de Estado: “Diferentemente de muitas empresas privadas trabalhando para a ocupação no Iraque, a Blackwater respondia diretamente à Casa Branca, e não ao Exército” (Scahill, 2008, p.27). A privatização da guerra ou da função de polícia é a última ratio do capital que se move pelo Império, é a mão de ferro do capital que se move globalmente. Como tal, este exército tem licença para matar, instalando-se um status legal acima do Estado de Direito:

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Enquanto esse inaudito exército privado se expandia no Iraque, o último ato de Bremer antes de se esgueirar para longe de Bagdá, no dia 28 de junho de 2004, foi um decreto conhecido como Ordem 17, isentando de eventuais processos penais os prestadores de serviços no país [...] Enquanto soldados dos Estados Unidos têm sido processados por matanças e torturas no Iraque, o Pentágono não impôs as mesmas regras às vastas forças privadas (Scahill, 2008, pp. 66-67).

Seu objetivo, enquanto exército mercenário a serviço do Império é brutalizar a guerra e seus alvos humanos: “O fato de eles gozarem de imunidade significa que não existe sequer a possibilidade de eles temerem quaisquer conseqüências dos seus atos de brutalidade e assassinato’, disse Michael Ratner, presidente do Centro de Direitos Constitucionais. ‘Nada disso é por acaso; o verdadeiro objetivo deles é brutalizar e incutir o medo no povo do Iraque” (Scahill, 2008, p. 25).


O Estado Penal Internacional e a guarda pretoriana do Império

O Estado Penal se caracteriza basicamente pela lógica econômica de que o poder conquistado (ou mantido) militarmente é um ótimo negócio para a Razão de Estado. Seja para agir internamente, na defesa da soberania, agindo como milícia terceirizada da segurança pública, seja no plano internacional, quando age como exército de mercenários. O que se confirma com a desumanização do inimigo, como meta a conquistar: “É exatamente essa desumanização do ‘inimigo’ que torna fácil para companhias particulares e para o governo dos Estados Unidos recrutar mercenários. É a mesmíssima estratégia usada pelos militares chilenos para treinar membros da política secreta e facilitar a aniquilação de opositores da ditadura” (Scahill, 2008, p. 268). É o que se vê, portanto, na reprodução de técnicas aplicadas no governo Pinochet, mas agora no Iraque invadido. Distintamente de uma mera ressurreição da Gestapo, as forças do Estado Penal Internacional não conhecem limites legais. O nazismo se pautou na legalidade, ainda que sob a forma do Estado de Sítio. Com a Blackwater, o crime está arranjado acima da lei, indiferente a ela (porque simplesmente não há lei para a Blackwater) e o assassinato fortalece o poder. Mas, ocorre que se trata de um poder sem lei alguma:

Não se trata apenas de perseguir a resistência, e sim de direcionar a repressão, a tortura e os assassinatos para a base que a sustenta, para os familiares e as comunidades onde ela se insere. Políticas desse tipo constituem crimes de guerra [...] Hoje, essas milícias vestem uniforme e distintivo policial, cumprindo uma agenda que não interessa ao país como um todo. Montam barreiras rodoviárias em Bagdá e em outras áreas, seqüestram pessoas e estão intimamente ligadas a numerosas execuções em massa (Scahill, 2008, p. 344).

Assim, exército e milícia se juntam para formar esquadrões da morte, com treinamento americano e execução das tarefas por grupos iraquianos: “Uma das milícias, os ‘Comandos da Polícia Especial’, foi fundada pelo general Adnan Thabit, que tomara parte na tentativa frustrada de golpe contra Saddan Hussein em 1996” (Scahill, 2008, p. 340). No entanto, a ordem para matar serve a uma outra cruzada; seus membros mais ativos na direção pertencem à Soberana Ordem Militar de Malta – uma organização militar/religiosa fundada no século XI para proteger o Ocidente contra os muçulmanos: “Tudo se resume a isto: nós nos orgulhamos de nossa estrita obediência ao primado da lei sob Deus” (Scahill, 2008, p. 354). Os ídolos dos fundadores da Blackwater são mercenários que atuaram na Independência dos EUA: Von Steuben, o general Lafayette, Rochambeau e Kosciuszko – com monumentos prestados defronte à Casa Branca (Scahill, 2008, p. 354). Vemos que somam-se em desastre moral o ufanismo e o messianismo, nas palavras do general do Exército William Boykin, em 2003: “Senhoras e senhores, quero convencê-los de que a batalha que lutamos é espiritual’, disse ele. ‘Satã quer destruir esta nação, quer nos destruir como nação e como exército cristão [...] ‘Vamos atrás das pessoas. Matá-las ou capturá-las é uma missão legítima do Departamento” (Scahill, 2008, p. 362). Tal qual se funda em bases da antiga Roma e sua guarda pretoriana, mas hoje como exército global: “Em menos de uma década, a Blackwater saiu de um pântano na Carolina do Norte para se tornar uma espécie de Guarda Pretoriana da ‘guerra global ao terror’ movida pela administração Bush” (Scahill, 2008, p. 64).

Este conjunto da obra, de certo modo, autorizou parte da mídia americana e da população a se voltarem à solução final, como Bill O’Reilly da Fox News: “Eu não me importo com o povo de Fallujh. Nós não vamos conquistar seus corações e suas mentes. Eles vão continuar matando. Já provaram isso. Vamos arrasar a cidade4” (Scahill, 2008, p. 173). Na Modernidade Tardia, o Estado Teleológico se manifesta sob uma Razão de Estado sem determinação legal, ou com ampla manipulação da lei em favor do poder imperial. O Estado Penal e sua guerra ao terror confrontaram sentimentos em um mundo polarizado. O Império impõe um jus puniendi global – quer ser a polícia mundial. Não é curioso que ídolos militares americanos sejam mercenários e tenham estátuas postadas à frente da Casa Branca? Não é irregular que a liberdade, a democracia e os direitos humanos tenham de ser defendidos por mercenários? Não é triste para a humanidade que o mesmo Império que age sob a baioneta dos mercenários também mantenha a mais notória política prisional de exceção?


Guantânamo: sem lei, sem luz

Nesta prisão criada em 2003, como retaliação ao 11 de setembro de 2001, os homens são considerados “detentos inimigos” e não sabem do que são acusados, não podem se defender e nunca foram ouvidos por um tribunal. Em Guantânamo podem ser mantidos indefinidamente, porque o governo dos EUA criou brechas legais de exceção – é considerada a prisão da “guerra contra o terror”. Há uma “ordem protetora” para se manter em sigilo as informações mais relevantes ao poder. Nesta prisão, os soldados odeiam os prisioneiros mesmo não sabendo se são culpados ou não. Não há intimidade e tudo é censurado, como se mensagens secretas pudessem abalar o poder do Império. Há uma mistura entre Kafka e Razão de Estado. Mas, como pode o governo que defende a liberdade e os direitos humanos manter Guantânamo e a Blackwater?

Neste modelo de Império, sempre estaremos presos, dentro e fora de nossas casas, dentro e fora dos presídios. Em relação aos advogados dos presos, em Guantânamo, o governo e os militares tentam barrá-los em seu trabalho, censurando a troca de informações com seus clientes e até o banimento dos advogados da base militar. Em 2007, o Departamento de Justiça dos EUA pediu a uma corte federal que o segredo advogado-cliente fosse quebrado em Guantânamo. O que provocou defensores de direitos nos EUA e revelou que as técnicas empregadas na violação de direitos básicos são sofisticadas.

A desorientação cultural é tão maciça que até os advogados pensam nos prisioneiros como homens despersonalizados. Neste caso, a interação advogado-cliente devolveria o senso de humanidade, perdida até mesmo para os causídicos: “Com cada prisioneiro que conversava, percebia a individualidade e o valor de cada um” (Khan, 2008, p. 256). São prisioneiros sitiados, mortos em vida: “As palavras do Dr. Hafizullah Shabaz Khail, um farmacêutico afegão de 61 anos, de Gardez, assombravam-na: ‘Se você libertar um afegão será como trazer alguém de volta dentre os mortos – disse ele” (Khan, 2008, p. 257). Os prisioneiros são definidos em seu estado mental como solitários, deprimidos, zangados, feridos e devastados. A prisão devasta os sentimentos, mas aprofunda a compreensão da vida, num misto de realismo e ironia. Vemos esta expressão nas declarações de alguns, quando se referem às coisas prosaicas, como beber ou não um suco de cenouras:

– Não gostou do suco? – perguntei.

– Não é isso. Mas por que eu deveria me preocupar com meus olhos? – replicou ele. – Tudo que vejo são as paredes de minha cela, o dia inteiro. Vá em frente e tome-o você. Seus olhos vêem o céu e o oceano (Khan, 2008, p. 262).

A série de abusos na prisão é realmente sem precedentes, um tipo de “terror contra terror” – por exemplo, quando morriam, os órgãos eram retirados antes de seus corpos serem enviados para o sepulcro. Alguns estão presos há mais de cinco anos, sem acusação formal e, portanto, sem direito de defesa. Nem mesmo os próprios soldados americanos sabem quem são os prisioneiros, pois todos são numerados e inominados. Porém, alguns soldados têm melhor consciência dos fatos do que o próprio governo: “Eu os trato como seres humanos e eles me respondem da mesma forma” (Khan, 2008, p. 219). Este soldado parece perceber que a hospitalidade é central na cultura oriental. Os detentos não controlam nada do mundo da vida: “Os detentos não tinham nenhum controle sobre qualquer aspecto da vida, inclusive a hora de acordar, tomar banho, esticar as pernas, comer ou dormir” (Khan, 2008, p. 223). Em determinado momento, 23 prisioneiros tentaram cometer suicídio em massa, lembrando-se que a imensa maioria dos prisioneiros foi vendida, quando de sua captura. Forma-se ali, então, uma consciência trágica:

“Estou na Baía de Guantânamo’, escreveu al-Aslami. ‘Este é um lugar onde não há direitos e onde não há justiça. Temo que não haja nada que eu possa fazer, de modo que deixo minha sina e minha liberdade nas mãos do Todo-Poderoso. Por favor, escrevam-me e mandem-me cartas” (Khan, 2008, p. 178).

Na verdade, tudo ali é feito para que não tenham sossego e nem tempo para se matarem. Devem ser mantidos como símbolo de um poder de morte e terror. Para manter a humanidade, que lhes tentava retirar o Império, alguns detentos escreviam poesias. Para esses detentos, a liberdade estava no pensamento e a honra na criatividade:

Assim como bate o coração na escuridão do corpo

eu também, apesar desta jaula, continuo a pulsar com vida.

Aqueles sem coragem na honra se consideram livres,

eu vôo nas asas do pensamento,

e assim, mesmo nesta jaula,

Conheço uma liberdade maior (Khan, 2008, p. 268).

Um dos poetas fora preso por publicar uma paródia do presidente Clinton, acerca do caso Mônica Lewinsky, num jornal no Paquistão. Nem mesmo a defesa ativa pela independência da região do Pashtunistão tivera esse efeito de ira. A posição do Império era cômica porque não entendiam a piada. O autor desses versos, Abdul Rahim, era mestre em literatura de língua inglesa:

Que tipo de primavera é esta

em que não existem flores

e o ar está cheio

de um odor miserável

(Khan, 2008, p. 272).

A primavera cantada nos versos antecedeu a Primavera Árabe que, a partir de então, ganharia uma expressão social transformadora incrível – aliás, em boa medida devido à oposição da opinião pública surgida após a invasão do Afeganistão e do Iraque. Em três anos, Rahim escreveu 25 mil versos em pachto. A poesia tem o poder da elevação moral e psicológica. Era um refúgio mental contra a loucura. Um dos poemas favoritos e recitado pelos demais presos ironizava a aparência andrógina dos soldados: “Eles podem ter armamentos e mísseis, mas não conseguimos encontrar nenhum sinal de hombridade neste exército” (Khan, 2008, p. 273). Suas poesias eram emblemas da delicadeza que recobre a vida, mesmo que vista direto dos porões da arbitrariedade:

Braceles tilintando

combinam com uma bela mulher jovem

Algemas combinam com

um bravo homem jovem

(Khan, 2008, p. 274).

No dia do Eid, um feriado sagrado para a família muçulmana, descreviam as saudades dos filhos. Porém, exatamente nas datas do Eid os guardas da prisão espalhavam cartazes com fotos de crianças chorando e com roupas sujas, onde se lia: “Esses são os seus filhos no dia do Eid”. Era como um suplemento de tormento mental. Apesar de poemas terem sido levados para fora da prisão de Gitmo, milhares de documentos e de outros escritos foram confiscados pelo governo dos EUA. Esses poemas funcionam como epitáfio de todos os presos políticos, pois os detentos não são sujeitos, são invisíveis e assujeitados: “Eles são entidades sem nome, sem rosto, catalogados e referidos por números de série, uma maneira de desumanizá-los [...] Números de série são para objetos inanimados” (Khan, 2008, p. 279).

Não eram tatuados na pele com seus números de série, como os judeus sob o nazismo, mas ter cabelo e barba raspados funciona como uma forma de desterritorialização e desintegração cultural. Quando as diferenças diminuem, a humilhação aumenta: “É fácil pular sobre os números. E há centenas deles” (Khan, 2008, p. 280). Neste relato, trata-se de um médico afegão, que fora defensor da democracia e da liberdade capitalista-ocidental. Alguns prisioneiros da etnia Uigur, originária de uma região a noroeste da China, são perseguidos há séculos pelo governo de Pequim porque suas terras são ricas em petróleo. Ironicamente, estão mais seguros em Guantânamo porque na China seriam mortos. De todo modo, “a ausência de rosto dos detentos abranda a culpa dos torturadores”. Um muçulmano, de descendência alemã, ironiza com humor ao ser informado que as barbas ruivas seriam prova de culpa: “- Se eles temem uma barba comprida, Papai Noel é um combatente inimigo” (Khan, 2008, p. 282). Outros eram submetidos a torturas indescritíveis, como serem cortados com bisturi em todo o corpo (inclusive nas genitálias), mês após mês, assim que se curassem das feridas. Isto lembra a punição de Prometeu5, tendo o fígado comido por uma águia durante o dia, enquanto se recuperava à noite.

O objetivo era forçar uma coerção moral: “- Qual é o objetivo disso? [...] – Até onde sei, é só para degradá-lo. Assim, quando você sair daqui, terá essa cicatriz e nunca esquecerá” (Khan, 2008, p. 284). Este evento ocorrera em uma prisão mantida pela CIA, antes de serem levados para Gitmo. Um dos interrogadores descreveria outro objetivo: “- Nós vamos mudar o seu cérebro - avisou” (Khan, 2008, p. 287). Contudo, a esperança vem da humanidade que encontram em si mesmos. Outros procuravam manter uma postura estóica, estes, mantinham-se pela retórica: “Há gente boa entre todos nós. Mas há dois povos nesta guerra contra o terrorismo que ficaram com a pecha de ruins: os americanos e o Talibã” (Khan, 2008, p. 293). Alguns, entretanto, recusavam auxílio jurídico porque diziam que em Gitmo simplesmente não há lei. Para esses, talvez já não haja mais esperança. É óbvio que nem Guantânamo, como ícone da injustiça pública, e nem o Urso Branco ou os Carandirus e seus congêneres podem sobreviver no Estado de Direito que zela pelo cumprimento dos direitos humanos. Se a realidade nos mostra o avesso, é porque vivemos sob um Estado de não-Direito, um Estado alimentado pela maldade institucional mais bizarra e escatológica. Esse estado de coisas ainda nos remete aos devaneios esclarecedores do celebrado escritor Franz Kafka.

Sobre os autores
Fátima Ferreira Martinez

Professora de Ética e Legislação Aplicada aos Negócios no Centro Universitário Eurípides de Marília – UNIVEM. Bacharel e Mestra em Direito.

Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Fátima Ferreira; MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado K.: sempre o Urso Branco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3421, 12 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23004. Acesso em: 5 nov. 2024.

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