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Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes.

Convergências e divergências de teoria política

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Agenda 16/11/2012 às 18:19

4. Hobbes e a construção do pacto. Direito e justiça

Hobbes é considerado um empirista e um racionalista da filosofia política inglesa, na medida em que procurou colocar em prática o empirismo nas suas observações e conclusões a respeito da natureza humana, ao tempo em que fez uma análise das palavras e do raciocínio, que é dedutiva e racionalista. Hobbes criticava Descartes em sua dedução “Penso, logo existo”. Para ele não podemos conceber o pensamento sem uma coisa que pense, logo uma coisa que pensa é alguma coisa corporal. Portanto, para Hobbes, o corpo e o seu movimento constituem o real. Tendo uma percepção dinâmica da natureza humana, esta é entendida como uma espécie de autômato, o que reflete a influência das idéias mecanicistas da sua época. Segundo esta visão, eram os homens, assim como o restante dos animais, entendidos como espécies de máquinas formadas pela união de várias peças menores. Dentro de tal perspectiva mecânica, dois seriam os movimentos que fazem a máquina se mover: o vital e o animal. No vital estão aqueles cuja realização independe do pensamento, ou seja, são movimentos involuntários, como a respiração, circulação sanguínea, ou digestão; por outro lado, no animal encontram-se os movimentos cuja realização depende de uma manifestação de vontade, como falar, andar ou se mover (Villey, op.cit.).

Importante na teoria de Hobbes é que essa manifestação de vontade é ocasionada pelas sensações. Estas, por sua vez, podem ser reduzidas a duas espécies, que são a apetite e a aversão, entendendo-se, assim, todos os esforços de aproximação ou afastamento daquilo que proporcione respectivamente prazer ou dor ao ser humano. Essa informação é extremamente importante para se introduzir a sua definição de estado de natureza. Em Hobbes a vida começa com o desejo de se aproximar daquilo que traz prazer ao indivíduo, sendo inato à natureza humana o egoísmo, constituído por um perpétuo desejo de poder, o qual só acaba com a morte. O homem, num estado inicial, seria governado por suas paixões e teria como direito próprio conquistar tudo o que lhe apetece. Como todos os homens seriam dotados de desejos, e uns poderiam ser mais fortes fisicamente que os outros, grande seriam a disseminação da violência e do caos. Seria, em termos hobbesianos, a guerra de todos contra todos (Hobbes, 1974).

Contudo, junto deste desejo desenfreado pela busca das próprias satisfações, os homens também são portadores de um inato instinto de conservação, que também os governa, tendendo a levá-los a uma condição equivalente à paz. O instinto de conservação, nesse sentido, é peça fundamental na filosofia hobbesiana, na medida em que esse instinto serve de alerta quando o estado de guerra põe em risco à própria sobrevivência humana. E é ele quem incita os homens a saírem de seus estados de natureza e entrarem no estado de sociedade, algo que difere Hobbes de Aristóteles, visto que para este último o homem era naturalmente um animal social, e em Hobbes há uma passagem do estado de natureza (original) para o estado de sociedade - construído a partir da busca pela auto-preservação, ameaçada no estado anterior pelas próprias paixões humanas.

4.1. O direito em Hobbes. Positivismo Jurídico. Concepção de justiça.

O direito em Hobbes aparece em consonância com sua visão a respeito do homem e da sociedade. Devemos lembrar que em Aristóteles e, o que se segue na tradição de São Tomás de Aquino[6], o homem era naturalmente social e político, sendo as sociedades naturais (Villey, op.cit.). Nesse sentido, o direito seria a ordem estabelecida entre as relações sociais, a proporção que se descobre entre os bens distribuídos aos cidadãos e o conjunto das relações justas que evidencia-se num grupo. Nessa linguagem, aplicada ao indivíduo, a palavra direito significava a parte que lhe corresponderia nessa justa repartição. Já em Hobbes, ao contrário, tudo será construído a partir dos indivíduos, seguindo a tradição do nominalismo ockaminiano[7], segundo o qual não existem mais do que as coisas singulares, sendo todo o resto construção dos indivíduos. Segue deste modo que Hobbes concebe o estado de natureza, no qual todos os homens estariam separados e isentos de todo vínculo social. É a partir dessa condição dos indivíduos que se construirá a ordem, a partir de um contrato social. No estado de natureza hobbesiano vigora o direito natural, que estaria atrelado à condição de natureza de cada indivíduo.

Portanto, se Aristóteles extraía o direito das observações sociais, sendo o direito a resultante de uma repartição social dos bens, e a fonte do direito era a lei natural que regulava a ordem dos homens, Hobbes se subleva contra esta hipótese. Na sua formulação sobre estado de natureza, não existe, nesse momento, qualquer lei que regulasse as relações sociais e de onde pudesse derivar o direito. A lei natural, em Hobbes, não é senão uma lei interna de cada ser humano, a qual se encontra em sua própria consciência e que o leva a conduzir-se segundo sua razão. A fonte do direito, para este autor, é subjetiva, por estar inserida em cada indivíduo natural. Como no estado de natureza o direito está em cada indivíduo, este, portanto, é infinito. É o direito de todas as coisas, na medida em que o homem se guia por seus desejos. Direito num primeiro momento, então, relaciona-se à noção direta de poder e liberdade, só depois sendo positivado pelo Leviatã. Mas a questão central que se coloca no estado de natureza é que, como nessa vastidão de direitos o corpo do outro pode ser a minha vontade, nenhum homem poderia viver seguro.

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Daí a primeira lei da natureza indicar aos homens o quanto é importante a busca pela segurança, e conseqüentemente segui-la. Dessa primeira lei da natureza, que ordena a todos os homens que procuram a paz, deriva o que Hobbes chama de segunda lei da natureza, segundo a qual os homens concordam que, para garantir a paz e a defesa de si mesmo, seria necessária a renúncia de seus direitos. É a consciência de que enquanto cada homem detiver o seu direito de fazer tudo o quanto desejar, a condição de guerra será constante para todos. No estado social, as leis passam a ser competência da ordenação do soberano, instituídas pelo Estado. Ela é fruto do pacto e do contrato firmado pelos indivíduos. Aqui reside a fonte de todo o sistema jurídico positivo de Hobbes. Do pacto formador do Leviatã surgem todas as leis positivas humanas, aquelas que criarão para os sujeitos obrigações externas. Com o estado civil, o soberano se mostra o ente mais capacitado para garantir a ordem e a paz, e a garantir os direitos subjetivos de cada um, especialmente aqueles que os encaminhavam para a segurança. Portanto, todo o direito é construído, em Hobbes, por graus sucessivos, a partir do direito subjetivo. E é para garanti-lo que o soberano encontra legitimidade. Daí Hobbes ser interpretado como precursor do positivismo jurídico[8], que atribui às leis o sentido de ordenação e segurança social. No cume das leis, encontra-se o princípio máximo da proibição de se violar o pacto. Daquela lei da natureza que indicava os homens a aderirem ao pacto, surge uma subseqüente lei natural, a terceira, a ser posta em prática no momento em que for constituída a sociedade civil. Consiste que os homens cumpram os pactos celebrados, pois sem esta lei os pactos seriam vãos e não passariam de palavras vazias e o estado de guerra poderia não ser superado. Nesta lei assenta, segundo Hobbes, a fonte e a origem da justiça. Por isso, a partir de agora, romper o pacto passa a representar um ato de injustiça e romper o pacto é injusto porque o Leviatã representa a consolidação de todas as células do corpo social composto pelos indivíduos. A justiça, enquanto um conceito emergido das relações sociais regradas, só passa a existir em sociedade, e nesse caso cabe ao soberano ditar o seu significado.

O direito em Hobbes não é mais a ciência da justiça, uma ciência da promoção do justo ideal ou da garantia de meio-termo. Nesse sentido, aparece aqui mais uma diferença entre Hobbes e Platão e Aristóteles. Afinal de contas, nesse contratualista do século XVII, a justiça é resultado do cumprimento das leis estabelecidas pelo poder soberano, ao contrário de Aristóteles para quem a justiça era o princípio a partir do qual o direito surgiria, tendo a função de garanti-la. É uma diferença também em relação a Platão, para quem a justiça estava presente no mundo das idéias, e seria captada pelos filósofos. Nada mais estranho em Hobbes do que a idéia de justiça social, de justiça distributiva, de partes justamente distribuídas entre membros de um grupo social. Como discípulo do nominalismo, o que vale para ele é uma ciência dos direitos subjetivos, e o seu resultado: o pacto, o Estado e a lei que incide sobre os direitos desse contrato, garantindo-lhe força e segurança aos contratados. O pacto, portanto, mais do que a relevância de ter sido feito pelos indivíduos, tem como finalidade esses próprios indivíduos e a preservação dos seus direitos subjetivos, de onde o instinto de conservação consiste no sentido mais seguro diante de uma natureza também egoísta e competitiva. A legitimidade no soberano está na consciência de que sem ele o mundo seria pior e arriscado, sendo a vida - a maior das riquezas - um bem incerto, daí a obrigação categórica da obediência ao Leviatã.

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5. Conclusão

Ao longo da história, em especial a ocidental, já que essa é a história que costumamos estudar em teoria política, a relação entre indivíduo e sociedade sempre foi uma grande preocupação dos mais diversos teóricos. Daí a sociabilidade ser numa das primeiras questões de ordem política colocada na história do pensamento. Tendo escolhido, como o fiz, os temas da justiça e do direito, muitos foram os filósofos políticos que contribuíram para o avanço dessas questões como forma de interação entre o homem e o meio social. No caso dos pensadores aqui escolhidos, Platão, Aristóteles e Hobbes, temos três exemplos de interpretações jusnaturalistas, pertencentes a doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural" enquanto um sistema de normas de conduta intersubjetivas, o que é diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado, que forma o “direito positivo”. Para os jusnaturalistas, este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. Recapitulemos sinteticamente como isso ocorre em cada caso aqui analisado.

Em Platão, justiça e direito aparecem como categorias próximas uma da outra, dentro da lógica idealista em que repousa a proposta platônica. A cidade justa seria aquela em que todos os seus cidadãos desempenhassem funções condizentes com sua natureza e talento. Ou seja, cada um deveria exercer suas atividades conforme suas aptidões naturais. Voltados para a administração da política, Platão atribui essa função aos filósofos, pois os considera como aqueles que possuíam a sapiência necessária para levar a cidade-estado ao bem comum. Em Platão, o filósofo é quem define o que fazer com o direito, devendo corresponder-lhe à aplicação da justiça visando o melhor para polis. Platão recusa a definição do positivismo jurídico e as leis oriundas essencialmente pelo Estado. Na sua concepção, o direito deve estar atrelado à virtude da justiça, e esta deve ser alcançada pelos filósofos encontrando-as no mundo sensível através do seu processo dialético-reflexivo. Daí a sua lógica jusnaturalista, em contraposição a qualquer aceitação de que o Estado construído pelos homens pudesse elaborar um direito justo. Afinal de contas, em sua teoria, a justiça é posta como virtude subjetiva. Sendo virtude, se manifestava em graus distintos nas pessoas, daí os filósofos serem exatamente os mais capacitados a alcançá-la com vistas a aplicá-la no mundo real.

Com relação a Aristóteles, este entende que a justiça consiste no meio-termo - aquilo que se encontra entre os vícios do excesso e da escassez. Esse formato de justiça, desenvolvido nas relações sociais, um tipo de justiça particular, se constitui em consonância com a justiça geral presente na ordem natural. Por isso ele é jusnaturalista, pois entende que o direito extraído das relações sociais se desenvolve em relação com essa ordem presente na natureza, encontrando ali o seu fundamento e legitimidade. O fundamento da lei positiva só tem cabimento se estiver em sintonia com a justiça geral. Portanto, direito e justiça caminham lado a lado em Aristóteles, de modo que o primeiro é a tentativa de aplicação do segundo, e deve ser aplicado nas circunstâncias em que a ordem natural, caracterizada pela igualdade proporcional entre os bens sociais, for ameaçada por ações que lhe forem contrárias. Em Aristóteles, a eqüidade, por exemplo, é uma forma de justiça prática, efetiva. Nela se verifica o caso concreto, buscando-se a solução mais adequada para a sua resolução. Assim, enquanto a justiça caracteriza-se por uma medida abstrata, a eqüidade dirige-se à concretude do fato.

Já em Hobbes, sua filosofia política se difere um pouco dos autores anteriores. Temos aqui um autor, a princípio jusnaturalista, mas que também lança mão do positivismo jurídico. Em seu contrato social, os indivíduos cedem e transferem seus direitos naturais de governarem-se a si mesmo a um poder estatal, o grande Leviatã. Este, por sua vez, deverá garantir a ordem e a segurança, ameaçadas pela natureza egoísta e competitiva do próprio homem. A legitimidade das leis e do direito do Estado está no fato de ele ser a própria representação dos indivíduos. Se olhássemos para Hobbes como um teórico tão somente do direito natural, teríamos uma observação extremamente limitada e incompleta a seu respeito. O positivismo jurídico deve muito da construção de seus principais postulados a Hobbes, que teve influências indeléveis nas obras de Bentham, Austin, Kelsen e Schmitt, para citar apenas alguns. Devemos atentar que os temas centrais da obra de Hobbes sempre giraram em torno de um núcleo específico, a unidade do Estado. Eis a questão central. Ele está preocupado em definir os parâmetros para que um Estado uno e voltado para a paz seja algo factível, e define isso a partir do autoritarismo do soberano. Daí Hobbes ser lido como precursor do direito positivo, embora tal definição não tenha aparecido explicitamente em sua obra. O Estado define leis para manter a ordem e aí está a justiça, no fato deste poder ser representativo da vontade natural dos homens. As próprias noções de justo ou injusto não existiam antes do pacto social, visto a necessidade destes conceitos serem mensurados conforme um padrão de ordem instituído pelo Leviatã. Assim, também lei natural e lei civil foram tratadas por Hobbes de modo ora a balançar tendendo para o jusnaturalismo, ora cedendo espaço para o que viria a ser chamado mais tarde de positivismo. A verdade que nos parece é que Hobbes deixou bases bem sólidas para uma ordem positivista, mas o jusnaturalismo de maneira alguma pode ser sonegado de seus tratados.

Nossos três autores, por fim, caracterizam-se pela grande relevância na história do pensamento ocidental – a qual a teoria política procurou se apropriar. Além disso, foram fundamentais nas tomadas de decisão que moldaram parte relevante da estrutura ocidental: aquela voltada para as lógicas da justiça e do direito. Em Platão começam as idéias sólidas dentro de um período grego recém-saído da era cosmológica, em que se atribuíam aos mitos as razões para os fenômenos sociais, e, ainda, uma época marcada pela disseminação das idéias sofistas. Seu mestre, Sócrates, lança um dos argumentos basilares da ciência moderna através da lógica do questionamento insistente acerca das coisas, e esse fundamento Platão acaba por seguir, nos deixando como legado o mesmo propósito. Sua contribuição é enorme para o pensamento ocidental, haja vista que pensamos justiça enquanto algo da ordem do excepcional, e tal como a transitoriedade do que é verdade aparecia em Sócrates, também o conceito de justiça não possui definição fechada, sendo também transitória.

Seguindo-lhe, Aristóteles buscou pensar um tipo determinado de igualdade proporcional, e nisso ele se distanciou de Platão. Em Aristóteles, a justiça está na natureza, e todos lhe têm acesso, embora nem todos apliquem a justiça em suas ações. Com efeito, é para estes que servirá o direito, como forma de aplicar-lhe uma sanção, impedindo a corrosão da justiça supostamente implantada no meio social a partir da distribuição proporcional de seus bens, cargos e serviços. Ao falar de Aristóteles e de justiça particular, me lembro logo de um dos mais candentes debates da sociologia atual, que consiste na implantação de políticas de ações afirmativas, como forma de distribuir cargos e funções dentro de uma sociedade que se tornou desigual mesmo tendo como base o fundamento da igualdade liberal. Se não bastasse tanta influência de Aristóteles para inúmeras categorias analíticas da modernidade, ele foi o sujeito que mais influenciou o pensamento jurídico romano, de onde importamos boa parte do nosso direito moderno. Afinal de contas para que serve o direito contemporâneo senão para corrigir o esgarçamento social, colocando-o no lugar segundo suas regras e padrões. Estas bases, pois, estão no direito aristotélico.

Por fim, em Hobbes temos o nascimento do positivismo jurídico, nada mais proeminente na metodologia jurídica moderna, onde o direito serve como braço da organização política do Estado, estando voltado para a garantia das regras e a manutenção da ordem e da segurança. Num mundo marcado pela violência e pelo terrorismo, os direitos individuais ficam cada vez mais presos diante da ampliação de um sistema internacional regido por estados policiais que atuam por meio da truculência, da vigilância e da repressão. Tudo em nome da segurança coletiva e da ordem, supostamente postas em perigo. Portanto, busca-se na atualidade um modelo de justiça por meio de ações de força que muito nos lembra os argumentos hobbesianos para a substituição do estado de natureza pelo estado social. É nesse sentido que encontrei relevância nos autores aqui escolhidos, e é dessa maneira que a filosofia política persiste viva na obra desses clássicos. Sem dúvida alguma, visionaram um mundo séculos a sua frente, ainda que estivessem tratando da realidade que lhes cercava, exatamente por detectarem tão bem as características da espécie humana e do meio em que habitaram.

Sobre o autor
Walace Ferreira

Professor de Sociologia da UERJ. Pesquisador. Doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Walace. Justiça e Direito em Platão, Aristóteles e Hobbes.: Convergências e divergências de teoria política. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3425, 16 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23037. Acesso em: 22 dez. 2024.

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