Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

As organizações assistenciais do terceiro setor na região fronteira noroeste do Rio Grande do Sul: paralelidade ou complementaridade à ação estatal?

Exibindo página 2 de 4
Agenda 29/03/2013 às 11:05

2. Decifrando o fenômeno do Terceiro Setor: as características brasileiras

Como nos traz Coelho (2000) apud Montaño (2002), em seu estudo comparativo entre o terceiro setor no Brasil e nos Estados Unidos, não há como dizer que temos um modelo idêntico ao dos americanos, dadas as particularidades do nosso país. Em outras palavras, o Projeto Neoliberal consolidou-se nos países centrais um bom tempo antes e de forma bem mais aberta do que aqui nos países periféricos latino-americanos. E como uma das facetas da nossa umbilical dependência externa, o Brasil importou e copiou os postulados neoliberais, com certo tempo de atraso em relação aos países do centro, e de uma forma encoberta por um discurso mascarado, distorcendo as verdadeiras intenções de favorecimento do capital (MONTAÑO, 2002).

Evidentemente, as coisas não podem ser vistas com tanta superficialidade, como trazem os autores citados acima. O Brasil não “exportou” e “copiou”, casualmente a idéia do terceiro setor, por uma questão de um novo “modismo” ou uma natural tendência a reproduzir e adotar as práticas realizadas nos países hegemônicos. A questão, na verdade, é bem mais complexa, e não pode ser compreendida sem que se tivesse realizado uma viagem histórica, identificando ao longo da trajetória do capitalismo os fatores determinantes para o atual contexto que desemboca no surgimento do chamado terceiro setor.

O Brasil, segundo Montaño (2002), tentou ajustar-se às recomendações do grande capital internacional, deglutindo os postulados do Consenso de Washington[6], no qual mandou um representante ilustre: Luis Carlos Bresser Pereira, que mais tarde, se tornaria ministro do governo FHC, no comando do Ministério da Administração e Reforma do Estado – MARE. Essa reforma começa com o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, em 1995, classificado por Montaño (2002) como um ajuste aos mandamentos do grande capital, especialmente elaborados para as economias latino-americanas.

As diferenças entre os modelos de Estado e suas fundamentações teóricas residem não só no plano econômico: enquanto Keynes propunha o “pacto social”, a intervenção do chamado Estado de Bem-Estar Social na questão social, reduzindo a níveis toleráveis as suas refrações, diminuindo os conflitos e a luta de classes, estas deixando de serem uma ameaça ao capital, e assim, reproduzindo-o, Hayek, por sua vez, saiu por um caminho radicalmente oposto, propondo a desregulação total, o Estado mínimo, e a transferência das responsabilidades do Estado no trato a questão social para o âmbito da própria sociedade civil (NAVES, 2003).

Em síntese, como explica Naves (2003), seria um desmonte literal do Estado, sua insignificância, a retirada de suas atribuições econômicas e sociais, enquanto agente regulador do mercado e das relações sociais, a modificação nas bases de suas funções na garantia de certo equilíbrio social. Estas funções todas seriam passadas para o mercado, e, segundo Naves (2003) no caso das responsabilidades sociais, para a sociedade civil, já que para os neoliberais o mercado seria um agente regulador quase que “metafísico”, capaz de controlar tudo (inclusive os próprios interesses individuais e relações entre os indivíduos), aplicando a tudo e a todos a lógica da concorrência.

Assim, não há dúvida que neste Projeto Neoliberal, o Estado em sua configuração “de bem estar social”, não encontraria lugar. Isso não significa de forma alguma que termina o casamento entre o capital e o Estado, pois o segundo, sempre tão submisso e servil nessa relação, não perde totalmente a sua funcionalidade para o primeiro: ele continua sendo a fonte mais certa de socorro perante uma crise.

No Brasil o modelo de Estado de Bem Estar Social está longe de poder ser equiparado ao Welfare State desenvolvido na Europa ou ao New Deal dos Estados Unidos. É apenas com a expansão do capitalismo industrial e o acirramento da questão social, que fica posta e inegável no contexto nacional, que o governo Vargas passa a adotar as primeiras formas de políticas sociais no Brasil.

É a partir daí que se impulsiona por exemplo, a criação das instituições assistenciais estatais, a começar com as previdenciárias – Institutos de Caixas e Pensões – perpassando a Legião Brasileira de Assistência – LBA, o Serviço de Aprendizagem Industrial – SENAI, o Serviço Social da Indústria – SESI, etc. (IAMAMOTO, 2003). Todas essas formas primitivas de políticas sociais acabaram por dar origem, num longo e lento processo, aos direitos sociais expressos em legislação – a Constituição Federal de 1988 – operacionalizados através de um Sistema de Garantia de Direitos e materializados por políticas sociais e assistenciais governamentais (MONTAÑO, 1999).

O contexto de enfraquecimento dos movimentos sociais, o fracasso do Estado em cumprir com seu projeto e ainda, a desconfiança da população a tudo que se refira ao poder público, decorrente do desencanto pela política e a crença na corrupção generalizada, acabam por abrir espaço para implantação das ideologias neoliberais, legitimadas pela população como solução ao inoperante, burocrático, lerdo e dispendioso Estado. No entanto, essas ideologias trazem conseqüências significativas para o conjunto de direitos e para as políticas sociais. Conforme Yasbek (1995) apud Montaño (2002), nos anos 90, a política social brasileira, recém consolidada, já sofria abalos decorrentes da opção do governo em adotar as idéias neoliberais no Brasil, que ocasionaram implícitas, mas claras transformações em favorecimento ao capital.

A previdência, o direito do cidadão se aposentar depois de ter trabalhado por um número determinado de anos, foi considerada pelo Plano Diretor, a grande vilã da crise fiscal do Estado, e ao lado da assistência social e da saúde, foram alvo de minimizações significativas.

Ainda de acordo com Yasbek (1995) apud Montaño (2002), a questão social a partir desse período é re-filantropizada, ou seja, retira-se a responsabilidade do Estado nas respostas à manifestações da questão social, e passa-se essa atribuição para as organizações da sociedade civil, ou para o terceiro setor, usando-se do termo mais utilizado nas obras consultadas. Para a autora, um claro retorno às idéias de caridade, à noção de filantropia. Em síntese, no modelo neoliberal de Estado, este último deve apenas subsidiar aquela assistência estritamente necessária, deixando as demandas menos contundentes sobre a responsabilidade de outro ator social, ou seja, o chamado Terceiro Setor.

Quanto aos conceitos, existe um grande uso da separação entre primeiro, segundo e terceiro setor. O primeiro é o Estado, o segundo é o Mercado, e o Terceiro Setor representa a Sociedade Civil organizada (BRESSER PEREIRA, 1998). O termo Terceiro Setor, é usado para designar o conjunto de organizações da sociedade civil de direito privado[7], mas com fins públicos, cujos programas visam atender direitos sociais básicos, combater a exclusão social e mais recentemente, proteger o patrimônio ecológico, e que não tenham fins lucrativos (FERNANDES, 1994, p. 21).

Nas palavras de Fernandes (1994, p. 127), o Terceiro Setor seria uma espécie de intersecção entre os outros dois setores, ou seja, “privado, porém público”. A explanação feita por Tenório (2004, p. 32) é bastante ilustrativa a essa concepção:

“O Terceiro Setor diferencia-se do primeiro setor e do segundo setor, à medida em que desenvolve atividades públicas através de associações profissionais, associações voluntárias, entidades de classe, fundações privadas, instituições filantrópicas, movimentos sociais organizados, organizações não-governamentais e demais organizações assistenciais ou caritativas da sociedade civil” (TENÓRIO, 2004, p. 32).

Outras leituras em bibliografias escolhidas[8], inclusive em páginas da Internet[9], exceto pela utilização de outras terminologias em substituição ao Terceiro Setor não destoam da concepção apresentada acima. Paes (2001, p. 68), por exemplo, entende o Terceiro Setor como sendo “o conjunto de organismos, organizações ou instituições dotados de autonomia ou administração própria, que apresentam como função e objetivo principal atuar voluntariamente junto à sociedade civil visando ao seu aperfeiçoamento”.

Percebe-se claramente que esta concepção evidenciada acima é tida como hegemônica, mas existe contraposição, um viés contrário, como por exemplo, para Montaño (2002), para o qual o Terceiro Setor não passa de um instrumento neoliberal para consolidação de seu novo projeto hegemônico cujas diretrizes, no plano político, atacam a função reguladora e interventiva do Estado, desresponsabilizando-o – e desonerando o capital – de suas atribuições no trato às refrações da questão social. Levando em consideração os limites deste trabalho, não é possível entrar em questões contraditórias existentes no conceito de terceiro setor. Sabe-se que há defensores e há opositores, e que os conceitos aplicados variam muito do ponto de vista em que os autores analisam o tema[10].

Em relação à legislação no Brasil, a lei 9.790/99 é considerada como o Marco Legal do Terceiro Setor (NAVES, 2003), especialmente pela sua função de regulamentar as relações entre Estado e Sociedade Civil, instituindo o Termo de Parceria, através do qual ambos podem celebrar convênios, em outras palavras, as entidades qualificadas podem acessar recursos públicos diretamente. Segundo Gomes (1999, p. 103), essa legislação “tenciona fortalecer esse setor, a partir da instituição de um novo sistema classificatório e da criação de um instrumento jurídico específico para formalizar sua relação com o Estado”.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Vale lembrar por exemplo, com base em Ferrarezi e Resende (2002), que o titulo de Utilidade Pública Federal[11], fornecido pelo Ministério da Justiça e mesmo o Certificado de Fins Filantrópicos (que mais tarde mudou de denominação e virou “Entidades Beneficentes de Assistência Social[12]) continuam vigorando assim como as suas legislações correspondentes. No entanto, uma mesma entidade não pode acumular dois ou mais títulos, tendo que optar por um deles.

Tendo discorrido sobre o fenômeno do Terceiro Setor no Brasil, passa-se a discussão dos resultados da pesquisa realizada na Região Fronteira Noroeste, a fim de captar os principais aspectos da relação entre Estado e Organizações Assistenciais.


3.Resultados da pesquisa desenvolvida na Região Fronteira Noroeste

Este item se destina à exposição dos resultados da pesquisa de campo[13] nas organizações assistenciais e beneficentes da Região Fronteira Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, que possuem Titulo de Utilidade Pública Federal, aqui tratada como UPF e qualificação enquanto Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, aqui tratadas pela abreviação OSCIP. Como já referido estas organizações foram selecionadas a fim de comporem a amostra a partir dos dados encontrados no site do Ministério da Justiça, com base nos seguintes critérios: organizações com UPF ou OSCIP, localizadas neste território delimitado, finalidade estabelecida estivesse entre assistencial ou beneficente.

Cabe ressaltar que estão presentes nesse espaço territorial, muitas outras organizações com UPF na região, entretanto, possuem outras caracterizações, dentre elas: culturais, educacionais, comunitárias, religiosas, ambientais, hospitalares, etc., as quais, não se enquadrariam no tema definido para a pesquisa. Da mesma forma, na Região Fronteira Noroeste atualmente existem oito (8) entidades qualificadas como OSCIP, mas apenas duas são caracterizadas como assistenciais.[14]

As organizações pesquisadas, apesar de serem de finalidades assistenciais ou beneficentes, indicadas pelo Ministério da Justiça, com base em suas missões, disposições estatutárias e áreas de atuação, as atividades das mesmas na prática diferem muito. Visualiza-se, portanto, que a heterogeneidade demonstrada pelo Terceiro Setor, já referida e explicada nos capítulos anteriores do trabalho, se apresenta também nessa pesquisa, mesmo quando a amostra foi cuidadosamente delimitada a fim de englobar organizações com a maior proximidade e semelhança possível. No entanto, mesmo com o firme propósito de abranger apenas as organizações assistenciais, encontram-se no mesmo patamar de qualificação, entidades muito diferentes em suas práticas sociais e em suas denominações.

A espelho daquilo que já havia dito Cabral (2006), nas missões citadas pelas organizações pesquisadas sempre há a iminência de um problema e a entidade expressa a vontade de transformar essa realidade. Nas organizações pesquisadas, são bastante freqüentes as citações de missões, contendo a expressão de uma situação que demanda solução, uma mazela social preocupante, sendo que esta é pretendida e perseguida pelas ações realizadas. Melo (2009) realizou um estudo especificamente sobre a missão das ONGs, e dentre suas principais conclusões, é que aquelas organizações mais competitivas que buscam recursos através de projetos, e para isso precisam ser melhores que as concorrentes, a missão acaba virando uma coisa secundária, deixada de lado, pois a prioridade centra na captação de recursos como condição para a própria manutenção da entidade. Não é o caso das organizações assistenciais da Região Fronteira Noroeste, pois com base nas afirmações coletadas, as missões e objetivos previstos em regimentos internos e disposições estatutárias, são levadas extremamente a sério. Mas sabe-se que há muitas organizações que em nome da busca desenfreada por recursos externos, acaba descaracterizando a sua missão.

Outra observação pertinente, é que não há iniciativas de organização do Terceiro Setor na Região Fronteira Noroeste, a fim de que as mesmas pudessem montar um esquema de assessoria conjunta, parcerias, convênios na elaboração, encaminhamento e execução de projetos, ou que tomasse para si a responsabilidade de monitorar as oportunidades de captação de recursos, como por exemplo, as agencias financiadoras de Organizações da Sociedade Civil que abrem editais, e que muitas vezes nem chegam ao conhecimento das entidades da base.

As organizações pesquisadas, e supõe-se, as demais que não puderam ser incluídas na coleta de dados, não conseguem vislumbrar vantagens significativas na possibilidade de associação a organismos nacionais, como por exemplo, a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG. Essas organizações pesquisadas, unanimemente, afirmam que esse tipo de órgão de abrangência nacional, não supre as necessidades de assessoramento locais, e por essa razão, a filiação das organizações ao mesmo acaba não fazendo sentido.

As entidades normalmente referem às parcerias entre duas ou mais organizações, dentro de um mesmo município ou não, para potencialização das chances de sucesso na elaboração, envio e execução de projetos sociais a agências financiadoras, fundações, empresas, institutos, onde possam captar recursos para o sustento de suas atividades. São poucas as organizações que têm um profissional especialmente contratado para a captação de recursos, mas essa situação foi detectada na pesquisa. É comum que algumas entidades sem qualificação como OSCIP realizarem convênios e parcerias com organizações que já possuem essa qualificação a mais de dois anos, conforme exigência da Lei 9790/99, não necessariamente assistenciais, mas também ambientais, educacionais e pró-desenvolvimento microrregional. Dessa forma, as entidades UPF e mesmo aquelas que não tem nenhuma espécie de título, somente a inscrição nos Conselhos Municipais correspondentes, conseguem acessar também recursos públicos presentes nos ministérios, secretarias nacionais e estaduais.

No entanto, a esse respeito, há que se fazer uma exceção em relação às APAEs pesquisadas. Estas, em sua maioria, estão ligadas a Federação das APAEs do Estado do Rio Grande do Sul, e também a Federação Nacional das APAEs. Inclusive, esses dois órgãos possuem um projeto denominado “Apae em Rede”, que possibilita as APAEs municipais terem uma página na Internet. Nesse ponto, possuem uma organização bastante expressiva, inclusive com a realização de encontros estaduais e nacionais, conferências, seminários, etc., a respeito da questão do atendimento à pessoa portadora de deficiência.

Apesar da reclamação explicitada, da ausência de organização das entidades do Terceiro Setor na Região, como por exemplo uma Associação Regional, para potencializar as chances de captação de recursos, percebeu-se que nenhuma das entidades está cadastrada no Portal Social, uma importante ferramenta, de iniciativa da Fundação Mauricio Sirotski Sobrinho no papel de intermediar a relação entre potenciais doadores de recursos, e organizações da sociedade civil que necessitam recebê-las.

Uma característica comum a todas as organizações pesquisadas é a participação enquanto membro dos Conselhos Municipais correspondentes à sua área de atuação, como por exemplo, os Conselhos Municipais de Assistência Social (CMAS) e dos Direitos da Criança e Adolescente (COMDICA). Isso é evidente, devido a obrigatoriedade disposta tanto no Art. 9º da LOAS, como no Art.91 do Estatuto da Criança e Adolescente, que ratificam que nenhuma entidade assistencial ou de defesa e atendimento de crianças e adolescentes podem funcionar sem prévia autorização dos conselhos, sendo também submetidas à fiscalização por parte destes. Algumas não só tem a autorização para funcionar e são fiscalizadas, como também participam dos processos de deliberação e controle social[15] exercido pelos conselhos municipais. Raichelis (1998) salienta:

No caso da representação da sociedade civil, subdividida pela presença das entidades prestadoras de serviços assistenciais e de assessoria, organizações dos usuários e dos trabalhadores, a multiplicação e heterogeneidade dos atores sociais no cenário da Assistência Social aumentou a complexidade da interlocução pública (RAICHELIS, 1998, p. 88).

Nas entidades ligadas aos direitos da criança e adolescente, o COMDICA também utiliza as verbas do Fundo Municipal da Criança e Adolescente (FMDCA), em sua maior parte proveniente da dedução do imposto de renda de pessoas físicas (6%) e jurídicas (1%), para contrapartidas em projetos enviados pelas organizações assistenciais e beneficentes regularizadas perante o conselho. No entanto, são poucas as que recebem repasse direto do FMDCA. Nesse quesito, as organizações estão de acordo com a LOAS, que não exclui a importância das ONGs e entidades com outras denominações, possibilitando inclusive sua participação em Conselhos Municipais, Estaduais e Federal, conforme as constatações de Raichelis (1998). A autora salienta que a participação dessas organizações nos conselhos “traz a presença de um leque diversificado de experiências com segmentos populares e vem contribuindo para a ampliação do arco de alianças plurais dentro do chamado campo progressista” (RAICHELIS, 1998, p. 92).

Não são todas as organizações que trabalham nos moldes de execução de projetos com começo, meio e fim, ou seja, com data de início e de término, e ainda, com orçamento pré-definido, prestação de contas, e alcance dos resultados esperados pelas agências financiadoras. A maioria sustenta-se através de doações locais e subvenção da Prefeitura Municipal, sendo esta última quase irrisória em algumas situações, usando como atividade secundária a elaboração de projetos, pois como não é garantida a seleção e aprovação do mesmo, esse método é entendido pelas organizações como uma “loteria”, que tem chances de dar certo, assim como não dar, nas mesmas proporções.

O modo mais comum de parceria entre a esfera estatal e as organizações assistenciais e beneficentes pesquisadas é a subvenção mensal da Prefeitura Municipal dos seus municípios, e por vezes, a terceirização de serviços. Isso ocorre quando o poder público terceiriza algum serviço de sua responsabilidade, e o repassa às organizações assistenciais, pagando por isso um valor previamente determinado. Isso acontece nas instituições que abrigam, por exemplo, crianças e idosos.

As parcerias, propriamente ditas, com o Estado, não apenas em sua esfera municipal, mas também na estadual e federal, nos termos do marco legal do Terceiro Setor, são ainda muito frágeis, especialmente pelo número inexpressivo de organizações que possuem a qualificação como OSCIP e estão habilitadas a acessar recursos estatais. De acordo com os dados verificados no site do Ministério da Justiça, as OSCIPs do Rio Grande do Sul estão concentradas em cidades maiores, nas regiões metropolitanas, predominantemente urbanas, que evidentemente, ostentam níveis mais elevados de pobreza e exclusão social, onde o Estado não consegue dar a devida cobertura a toda as demandas existentes, necessitando muito mais da complementaridade do Terceiro Setor.

Algumas organizações recebem incentivos da esfera municipal, mas não em termos financeiros, e sim, através do repasse de materiais didáticos, merenda, etc. Um aspecto negativo salientado por algumas entidades, especialmente as que não têm relações mais substanciais com o poder público, é que não sabem como ter acesso às verbas estatais. Existe por parte de algumas das organizações assistenciais pesquisadas um desconhecimento quanto à legislação, as normas, os meios para acessar recursos, especialmente, não tem a devida informação sobre os títulos que credenciam a entidade para as parcerias.

Conforme Nascimento (2004) apud Santos (2007, p. 127) as organizações ainda não se libertaram da marca do assistencialismo, tendo “administração informal, praticamente amadora”. Hoje, em outras regiões e já em algumas organizações locais, há o engajamento de empresários e até executivos na gestão de entidades do Terceiro Setor, mas não é a situação da maioria dos casos na Região Fronteira Noroeste. Muitas são as instituições, que embora não intencionalmente, ainda não superaram as amarras do assistencialismo, da caridade, da benemerência, inclusive no nome da organização, ostentando por vezes palavras como “caridade”, “criança necessitada”, etc. Observa-se, por outro lado, uma inserção maior da noção de direito, e não de “dádiva”, nas organizações que tem equipes multidisciplinares, compostas por profissionais de diferentes áreas, inclusive o Assistente Social.

Há que se considerar que na região, exceto nas cidades maiores, como Santa Rosa, por exemplo, são poucos os industriários, comerciários e empresários em geral que ostentam capacidade de efetuar volumosas doações a organizações assistenciais. A despeito disso, todas as organizações pesquisadas afirmaram receber doações mensais, algumas eventuais outras fixas, do setor privado instalado na região. Mesmo que esses valores não sejam extravagantes, as organizações afirmam que possivelmente não sobreviveriam sem elas, pois somadas, constituem na maior fonte de renda de algumas entidades.

Groppo (2007), autor que discorre sobre a responsabilidade social empresarial[16] na ótica da mercantilização da sociedade faz importantes observações no que tange essa nova modalidade de doação. O autor aponta que embora o envio de verbas de indústrias e empresas para as organizações assistenciais possam ter muitas segundas intenções, como a questão do marketing, existe uma grande parcela que efetua as doações esperando retorno em termos de gratificação pessoal por estar colaborando com uma causa nobre, “fazendo a sua parte”.

Na Região Fronteira Noroeste, conforme a pesquisa, daquelas empresas privadas que efetuam doações, são poucas as que visam retorno em publicidade, e inclusive, existem algumas organizações que afirmam receberem contribuições generosas de particulares que fazem questão do anonimato. Conforme Groppo (2007, p. 156) “a solidariedade ou a verdadeira responsabilidade social só pode ser pensada como valor de uso, utilidade em prol das necessidades humanas, não mensurável em quantidades, mas apenas como qualidades avaliáveis, pelo bem estar individual e coletivo que proporcionam”.

As dificuldades apontadas pelas organizações transitaram dentro da esfera material e financeira. A ausência de um orçamento fixo, por exemplo, deixa a organização vulnerável, visto que em um mês as doações podem ser altíssimas, e no outro mês, não haver nenhuma, sendo impossível, portanto, adotar formas eficazes de gestão e planejamento.

A insuficiência dos recursos também merece destaque, pois devido a isso, muitas organizações não conseguem atender um número abrangente de beneficiários, tendo que adotar critérios de exclusão e seletividade, contrariando a sua missão, muitas vezes, de inclusão social, problema esse já citado pela pesquisa de Cabral (2006) como uma das grandes contradições enfrentadas pelas organizações da sociedade civil.

É de origem financeira também a queixa quanto à impossibilidade de proporcionar maior qualidade às ações empreendidas, por insuficiência de recursos humanos, muitas vezes com contratos de trabalho precarizados, ou voluntariado com participação esporádica, de recursos materiais, pois muitos equipamentos são caros e não há excedentes para adquiri-los, sendo este o principal problema encarado pelas Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais, por exemplo, que em suma, gostariam de proporcionar terapias alternativas e diferenciadas aos seus beneficiários portadores de deficiência.

A impossibilidade de ampliar as atividades oferecidas aos beneficiários também recebeu alusões na pesquisa, no entanto, percebe-se que todas essas reclamações relativas às principais dificuldades enfrentadas, são decorrentes direta ou indiretamente, da insuficiência orçamentária e a instabilidade da chegada desses recursos.

A despeito disso, são várias as considerações de otimismo por parte dos respondentes, que a despeito das dificuldades financeiras e materiais enfrentadas pelas organizações, acreditam que as mesmas são de extrema importância para o local onde atuam. Uma das organizações, que realiza trabalho voltado à recuperação de dependentes, expõe enfaticamente que muitos de seus internos não têm condições de pagar pelo tratamento, e por isso, fazem isso gratuitamente, graças à organização que os acolhe. Essa organização salienta que se não existissem comunidades terapêuticas, não havendo lugar para todo mundo nos hospitais públicos e não tendo a maioria condições de tratar-se em clínica privada, a sociedade estaria muito mais vulnerável aos efeitos nocivos da drogadição.

A pesquisa aqui exposta coincide com a de Cabral (2006), quando constata que as organizações assistenciais e beneficentes prestam serviços e destinam bens, mas almejam de alguma forma, uma maior inserção na lista dos repasses do governo, especialmente o municipal. Todas as entidades que responderam a pesquisa, apontaram, no último questionamento, que as dificuldades enfrentadas internamente, poderiam ser superadas se mais recursos estatais fossem destinados às suas organizações, aumentando assim, quantitativa e qualitativamente, o teor dos seus serviços.

Outras soluções foram apontadas, mas em ordem secundária, por exemplo, a organização de um sistema de responsabilidade social único, onde todas as empresas efetuassem as doações, e os projetos fossem contemplados, primeiramente pela viabilidade, mas também respeitando uma espécie de “fila”, a fim de que todas as organizações pudessem ter oportunidade de acessar. A organização que referiu essa sugestão acredita que as entidades que ficam com os valores destinados a projetos comunitários e sociais, são aquelas estruturadas e que tem condições de pagar pelo serviço de assessoria para elaboração de projetos, coisa que essa entidade não teria como fazer.

Há uma alusão, portanto, a uma “hierarquia” de ONGs, surpreendentemente, ou seja, acredita-se que são sempre as mesmas organizações que recebem os valores empenhados para projetos sociais. Um respondente de uma das organizações afirmou que já tentou inúmeras vezes enviar projetos para uma centena de institutos, empresas, fundações, etc., no entanto, jamais foram contemplados, e os projetos selecionados são de organizações localizadas nos grandes centros, ou seja, cidades grandes. Nas palavras do respondente, seria como se as agências financiadoras não acreditassem que em municípios como os da Região Fronteira Noroeste, de pequeno porte, tranqüilos e predominantemente rurais, tivesse realmente situações de pobreza, exclusão social e violação de direitos.

Na verdade, sabe-se que em outras áreas, especialmente na questão do desenvolvimento sócio-econômico, a Região Fronteira Noroeste sofre para se adequar às exigências do mercado, podendo inserir-se nele. O fator da distância dos grandes centros, aliada a um conjunto de outros fatores de desvantagem, se torna entraves para que a região possa se desenvolver. Na presente pesquisa, pode-se fazer uma analogia com essa realidade: as organizações assistenciais e beneficentes aqui presentes, não conseguem “competir” com entidades de igual teor localizadas em áreas cuja questão social é mais visível e latente. São as contradições que se encontram no contexto da pesquisa e do trabalho.

Alguns dos respondentes, evidentemente, não possuíam aprofundamento intelectual no debate sobre o Terceiro Setor, não tendo acesso às produções teóricas acadêmicas e de estudiosos do tema, tendo assim condições de elaborar uma opinião própria sobre o debate protagonizado pelos críticos, especialmente no que tange o caráter “imediatista” das ações das ONGs e semelhantes, atuando na urgência, na focalização, não oferecendo proposições de atuação nas causas do problema, para assim poder erradicá-lo. No entanto, a resposta de conteúdo simples obtida da maioria dos entrevistados, responsáveis pelas organizações assistenciais, é bastante ilustrativa: quem está de fora do trabalho de uma organização desse teor, não tem conhecimento prático para discorrer sobre os problemas e desafios. Grosso modo, é fácil colocar defeito quando se está de fora.

Encontram-se considerações semelhantes no trabalho de Barbosa (2006) que analisa justamente os discursos antagônicos sobre o Terceiro Setor. Ela ressalta que quem fala “de fora” não vislumbra impactos de transformação social abrangente, que realmente tenha repercussões no sistema econômico e social, na própria questão social, mas para quem fala de dentro “o que realmente importa é a discussão ética, acima da econômica e política: dar de comer primeiro, debater depois; para eles, os que passam necessidade têm que ser atendidos, o mais depressa possível: quem tem fome, tem pressa”[17] (BARBOSA, 2006, p. 99).

Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer que o que difere o debate contra e o debate à favor do Terceiro Setor, é o ângulo da análise, mais do que os aspectos ideológicos ou opinativos. Ainda, outra constatação importante de Barbosa (2006, p. 103) é que “ambas as perspectivas apresentam conclusões verdadeiras sobre a temática, se observado o caminho analítico percorrido por cada pólo”. Enfim, é fácil perceber que os defensores do Terceiro Setor amparam seus argumentos na prática da vida cotidiana, no trabalho que realizam.

Se uma organização, que desenvolve trabalhos de recuperação de dependentes químicos e etílicos, conseguir propiciar que cinco indivíduos se libertem da dependência, será uma imensa conquista que gratificará a todos que trabalham por isso, de modo que fica complicado realizar reflexões profundas, em meio a essa prática cotidiana, sobre as causas da drogadição e como essas organizações poderiam atacar essas causas, de modo abrangente. Como ressalta Barbosa (2006, p. 107), os trabalhadores do Terceiro Setor, absorvidos pelas suas atividades diárias, não têm tempo para observar a configuração global da questão, em meio a trabalhos difíceis, como esperar que participantes de ONGs parem para pensar sobre sua funcionalidade para o projeto neoliberal de redução do Estado, ou ainda, a instrumentalização dessas iniciativas para os interesses do capital?

Algumas das entidades entrevistadas, por exemplo, reiteram uma das conclusões a que já havia chegado Losekann (2005), de que as mesmas têm consciência de que desempenham um papel de sanar a lacuna deixada pelo Estado no que tange o atendimento às pessoas portadoras de deficiência, e não deixam de salientar que essa função devia ser preenchida pelo Estado. Nas palavras de um dos respondentes entrevistados, se o Estado fosse cumpridor de todas as suas obrigações em quantidade e qualidade, a existência de Organizações da Sociedade Civil seria completamente dispensável.

Propositadamente, no intuito de criar uma ligação com as considerações finais que virão a seguir, deixou-se por último a questão da inserção dos profissionais assistentes sociais nessas organizações assistenciais e beneficentes. A maioria das organizações assistenciais pesquisadas possui em sua equipe uma assistente social, no entanto, esse vínculo não é diretamente com a entidade. Em muitas delas, os profissionais do Serviço Social tem quatro, oito, dez horas de cedência da Prefeitura Municipal de seus respectivos municípios de atuação. Outras contratam profissionais, mas em geral não passa de dez horas semanais, não constituindo vínculo empregatício com base na Consolidação de Leis Trabalhistas – CLT, mas sim, como profissionais autônomos.

Nessas organizações, o profissional que trabalha esse número de horas semanais, tem outros empregos no tempo excedente, em outras organizações. Nesse aspecto, Carneiro (2005) já havia concluído em seu estudo, que não só o vínculo empregatício do Assistente Social que fica prejudicado no Terceiro Setor, mas também outras questões fundamentais para uma qualidade satisfatória de trabalho, como o espaço físico adequado, com condições de atender em sigilo, os recursos materiais disponíveis, abrangendo equipamentos, automóvel, etc., a remuneração também é defasada, e especialmente a não relação entre jornada de trabalho, salário e tempo de serviço.

Como não era o objetivo da pesquisa, não foi realizado um levantamento de todas essas questões que foram pesquisadas por Carneiro (2005) no que tange as relações de trabalho dentro das organizações do Terceiro Setor para o Serviço Social. Por isso, a única observação concernente às organizações pesquisadas da Região Fronteira Noroeste é a questão das horas, ou seja, quando há assistente social trabalhando na entidade, não é por contrato formal (CLT) e com pouquíssimas horas de trabalho. Sem entrar no mérito da questão, mas a título de opinião e com base na experiência empírica, é praticamente impossível para um profissional estabelecer vínculos com os usuários, conhecer detalhadamente a demanda, realizar diagnóstico, e ter condições de intervir com qualidade tendo apenas quatro, oito, dez horas semanais.

No entanto, com referência a essa amostra, percebe-se claramente que, se existe a afirmação que o Terceiro Setor significa expansão do espaço de trabalho do Serviço Social, disponibilizando mais vagas e abrindo diferentes possibilidades, na prática é mais correto supor que as vagas de trabalho nessas instituições são precárias, e as condições que o profissional tem para atuar não são exatamente as melhores, especialmente no que diz respeito ao contrato de trabalho.

Em linhas gerais, são essas as observações a que a pesquisa de campo originou, um esforço de sistematizar a enorme quantidade de dados coletados nas dezoito organizações pesquisadas, salientando que não seria possível expor todas as opiniões e números em suas particularidades, pois as mesmas têm realidades, missões, beneficiários, objetivos e práticas cotidianas diferentes. A seguir, apresentam-se as considerações finais acerca do trabalho.

Sobre a autora
Juliana Costa Meinerz Zalamena

Graduada em Serviço Social, graduanda em Sociologia, Mestranda em Ciência Política.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZALAMENA, Juliana Costa Meinerz. As organizações assistenciais do terceiro setor na região fronteira noroeste do Rio Grande do Sul: paralelidade ou complementaridade à ação estatal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3558, 29 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24063. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!