4. DEGENKOLB, PLÓSZ, MORTARA E COUTURE: A AÇÃO ABSTRATA
As teorias abstratas do direito de agir tiveram por principal finalidade a compreensão do problema suscitado no último parágrafo do tópico anterior, qual seja, o da natureza do fenômeno jurídico ocorrido quando do pronunciamento judicial desfavorável ao ajuizador de uma demanda. A solução dada pelo concretismo não era, de forma alguma, satisfatória, uma vez que levava ao reconhecimento de um verdadeiro “vácuo jurídico” entre o ingresso em juízo e a prolação da decisão de improcedência do pedido. Fazia-se necessário, portanto, construir uma base para o direito de ação que fosse capaz de fornecer respostas adequadas aos questionamentos derivados da teoria concreta.
Os principais desenvolvedores da teoria abstrata foram o alemão Heinrich Degenkolb e o húngaro Alexander Plósz, que enxergavam a ação de uma forma bastante simples: como “o direito de provocar a atuação do Estado-juiz” (CRUZ, 2007, p. 25). Não havia, para eles, correlação entre a sentença de procedência e o direito de ação; afinal, mesmo naqueles casos em que o pretenso titular de um direito não recebe um pronunciamento que lhe seja favorável, é inegável que o sujeito movimentou o aparato jurisdicional e, consequentemente, provocou a atuação do Estado-juiz. Dessa forma, lícito nos é compreender que, para os supramencionados jurisconsultos, a ação carrega em si a pretensão à prolação de uma decisão judicial, seja ela reconhecedora ou não do direito alegado pelo autor.
A ação era por eles concebida, a princípio, como um direito subjetivo público (RODRIGUES, 2002) [9], haja vista que deveria ser exercida contra o Estado e correspondia a uma obrigação deste de se manifestar quanto ao caso que lhe é trazido à análise. Plósz, todavia, além da faculdade da provocação jurisdicional (a klage do Direito germânico), enxergava paralelamente um direito de ação equivalente ao conceito da actio de Windscheid, ou seja, uma pretensão substancial exercida contra o réu (MARINONI, 2012, p. 167), no que denota certa aproximação às conclusões alcançadas pela doutrina de Muther[10]. Saliente-se, ainda, que o reconhecimento do caráter abstrato da ação conduz à inevitável conclusão de que sua existência precede a demanda, que seria simplesmente a forma de seu exercício (JANSEN, 2004) [11].
Todavia, não são absolutamente abstratas as teorias de Degenkolb e Plósz, uma vez que ambos consideravam que o exercício do direito de ação estava condicionado à boa-fé do ajuizador, ou seja, à efetiva crença de ser realmente detentor do direito alegado (MARINONI, 2012, p. 180). Chega a ser um verdadeiro contrassenso que os referidos doutrinadores admitissem a existência da ação diante de uma sentença improcedente e não a reconhecessem quando confrontados com a – extremamente comum – situação do sujeito que ingressa em juízo cônscio de que não possui direito material algum. É cabível, aqui, com pequenas adaptações, o mesmo questionamento que se faz à teoria concreta: qual a natureza jurídica do ato que deu início ao processo nos casos em que o autor sabia que não tinha razão? Como se deu a provocação da jurisdição nessa hipótese, já que não foi feita pela ação? Veja-se que, diante da imposição dessa estranha condição ao direito de agir, Degenkolb e Plósz se aproximaram bastante da teoria concreta, embora, é claro, com ela não se identifiquem. O próprio Giuseppe Chiovenda (2002, p. 41), célebre concretista, critica a opção dos supramencionados juristas, afirmando que a possibilidade de agir em juízo[12] “assiste também a quem não se encontre naquela condição, tão difícil de positivar, que é a boa-fé, isto é, a convicção de ter razão”.
A esdrúxula condição imposta ao direito de ação por Degenkolb e Plósz não encontrou lugar na teoria do italiano Lodovico Mortara; sua tese, em linhas gerais, se parece bastante com a proposta pelos dois primeiros, divergindo apenas quanto ao modo de enunciar o mesmo modo de pensar. O destaque, porém, vai para a correta opção de Mortara por não considerar a boa-fé como elemento necessário ao exercício da ação, fornecendo respostas satisfatórias aos questionamentos levantados no parágrafo anterior. A admissibilidade da ação teria por base, somente, a alegação do autor de que, realmente, é titular do direito material para o qual reclama proteção jurisdicional.
Trilhando por tais caminhos doutrinários, Mortara expôs uma teoria que, verdadeiramente, merece a qualificação de abstrata, promovendo uma nítida separação entre os planos material e processual, ao desvencilhar a ação de qualquer condicionamento relativo à efetiva titularidade do direito alegado pelo autor, com uma clareza inédita no meio científico da época.
Outra importante teoria abstrata, elaborada algumas décadas depois dos estudos de Degenkolb e Plósz, é aquela defendida pelo processualista uruguaio Eduardo Couture, para quem a ação não diverge, em substância, do direito constitucional de petição. A tese de Couture é, em verdade, bastante simples[13], não oferecendo grandes dificuldades dogmáticas; com pequenos ajustes referentes à sua adequação ao atual panorama do Direito pátrio e à irradiação dos direitos fundamentais, cremos que poderia ser facilmente aceita no ordenamento jurídico brasileiro. Baseia-se na desvinculação da ação em relação à decisão favorável, bem como na desnecessidade da boa-fé do ajuizador (a exemplo de Mortara) e na aproximação de conteúdo entre o direito de ação e o direito de petição, garantido na maioria das Constituições.
Com a clareza e objetividade que lhe são peculiares, Couture (1998, p. 13) conclui que “a ação, em seu sentido mais decantado, é só isso: um direito à jurisdição”.
4.1 A AÇÃO ABSTRATA E O ABUSO DE DIREITO
Existe, na doutrina nacional, corrente (JANSEN, 2004) [14] que enxerga uma relação entre a compreensão da ação como direito abstrato e o abuso de direito na seara processual, representado, para os fins que interessam a essa escola, pela litigância de má-fé. Permissa venia, não podemos concordar com tal concepção. Entendemos que a imposição de que o ajuizador de uma ação tenha a convicção de possuir o direito alegado gera todos os inconvenientes que mencionamos quando da crítica a Degenkolb e Plósz; cientificamente, portanto, condicionar o exercício da ação à boa-fé do autor é inviável, uma vez que tal compreensão afronta os dados do plano ontológico – negando que existiu ação em casos em que, claramente, o aparato jurisdicional foi movimentado e provocado a se manifestar dentro de determinado processo.
Preferimos, novamente, a simplicidade de Couture (1998, p. 19), para quem o cometimento de litigância de má-fé deve ser resolvido no âmbito da reparação por abuso de direito – e não em uma forçada modificação da natureza jurídica da ação.
5. GIUSEPPE CHIOVENDA: A AÇÃO COMO DIREITO POTESTATIVO CONCRETO
Giuseppe Chiovenda, eminente processualista italiano dos séculos XIX e XX, elaborou sua doutrina da ação sob grande influência das ideias de Adolf Wach; sua exposição quanto à autonomia da ação em relação ao direito material, na verdade, seguiu o mesmo raciocínio utilizado pelo jurista alemão, tomando a ação declaratória como fundamento para chegar à conclusão de que o direito subjetivo material não era, necessariamente, um pressuposto da ação (MARINONI) [15]. Veja-se, nesse sentido, o seguinte trecho de suas Instituições em que, criticando a teoria imanentista de Savigny, o mestre italiano afirma que “a ação não é um direito novo oriundo da violação do direito que tem por conteúdo a obrigação do adversário de fazer cessar a violação, uma vez que a ação é um direito autônomo” (CHIOVENDA, 2002, p. 38 e s.).
O vínculo à tese de Wach mostra-se, ainda, quando Chiovenda fixa o entendimento de que a ação é um direito concreto, isto é, dependente da prolação de uma sentença favorável; somente teria ação, portanto, aquele que, ao final do processo, recebesse do Judiciário o reconhecimento de que tinha razão. Criticando as teorias abstratas da ação, Chiovenda (2012, p. 41) manifesta-se nos seguintes termos:
Não há dúvida de que qualquer pessoa tenha a possibilidade material e também jurídica de agir em juízo; mas essa mera possibilidade [...] não é o que sentimos quando dizemos ‘Tício tem ação’, pois, com isso, entendemos indicar o direito de Tício de obter um resultado favorável no processo.
As mesmas censuras dirigidas ao concretismo de Wach podem ser aplicadas à tese de Chiovenda – relativas à natureza jurídica do ato iniciador do processo realizado por aquele que eventualmente tornou-se perdedor da lide, já que ação não foi.
Não há, todavia, coincidência entre as teorias dos processualistas italiano e alemão. As similaridades restringem-se ao caráter autônomo e concreto da ação, divergindo os autores quanto aos demais pontos. Wach, como afirmamos no tópico 3, supra, entendia que a ação dirigia-se primariamente contra o Estado, sendo, portanto, um direito subjetivo público. Não é esse o entendimento de Chiovenda; este último compreendia a ação como um direito potestativo a ser exercido em face do adversário na relação jurídica, e não contra o Estado, que seria apenas o ente responsável por atuar a vontade da lei no caso concreto.
O direito potestativo, a que se refere Chiovenda, pode ser entendido como “aquele pelo qual, através da manifestação de vontade de alguém, surge um novo estado jurídico, ou se faz cessar o existente” (PELLEGRINI) [16]. A construção desse conceito na ótica do processualista italiano não é, todavia, tão simples; traduz o poder jurídico, conferido ao autor, de submeter o adversário a uma modificação na sua esfera jurídica, sem que este, por sua vez, esteja obrigado a prestação alguma (CHIOVENDA, 2002, p. 42). Ou seja, não se exige um fazer concreto do réu para que se atenda ao direito de ação do autor; também não há nada que aquele possa fazer para violar o exercício desse direito. Essa é, aliás, uma característica fundamental do direito potestativo: de forma contrária ao direito subjetivo, não há nada que a contraparte possa fazer para adimpli-lo ou violá-lo, cabendo a ela, unicamente, a submissão aos seus efeitos (LIMA, 1999, p. 71).
Note-se, porém, que o direito potestativo de ação só se consumaria com a prolação de uma sentença favorável ao autor; não ocorrendo tal fato, o réu não estaria, de forma alguma, sujeito às consequências aspiradas pelo ajuizador da demanda. Isso porque, no caso de sentença de improcedência do pedido, não teria o demandante exercido ação e, consequentemente, não teria adquirido em momento algum o direito de submeter o réu à sua vontade.
Essa ideia aproxima-se, de certa forma, da noção de sujeição do réu (que deve suportar os efeitos da tutela jurídica) em relação ao Estado, proposta por Wach. Não é essa conotação, entretanto, que Chiovenda empresta ao direito potestativo; para este último, a sujeição do adversário dá-se em relação ao titular do direito de ação, e não ao Estado.
A professora Flaviane Pellegrini[17] entende que essa concepção de submissão do réu ao autor é totalmente inadequada aos postulados do Estado Democrático de Direito, uma vez que a ideia de que é conferido a determinado sujeito o poder de promover alterações na esfera jurídica de outrem, sem que este possa a isso se opor, fere os princípios do contraditório e da ampla defesa, por exemplo. Data venia, não cremos que lhe assiste razão. Não se pode cair no equívoco de pensar que a submissão do adversário ao autor referia-se a todas as etapas processuais, inviabilizando, por exemplo, que aquele se defendesse das alegações do ajuizador; não é esse sentido, de forma alguma, que Chiovenda imprime à ideia de direito potestativo. Lembre-se que, para o mestre italiano, a ação só se considera exercida mediante a prolação de uma sentença favorável ao autor; o direito potestativo, portanto, só produziria seus efeitos após a decisão que reconhecesse a procedência de seu pedido. E, considerando a hipótese utilizada por Chiovenda – a da ação declaratória – para construir sua tese, não há, realmente, nada que o réu perdedor possa fazer para violar ou realizar o direito de ação do autor, restando-lhe submeter-se a seus efeitos.
Logicamente, são cabíveis outras críticas à ideia de direito potestativo; como não pensar, por exemplo, no caso do réu que decide simplesmente não se submeter à sentença judicial mandamental, direcionada à tutela específica de uma obrigação de fazer? O réu pode, é claro, optar por não cumprir a ordem judicial e aceitar as consequências de sua rebeldia, como o pagamento das astreintes e o dever de reparar as perdas e danos do autor. Veja-se que, nessa hipótese, não houve submissão alguma do réu à vontade específica do ajuizador da demanda – qual seja, o adimplemento da obrigação na forma pactuada. Tais críticas, sim podem ser dirigidas à tese de Chiovenda; acusá-la de limitar os direitos fundamentais de defesa do réu, todavia, não é cabível e mostra uma compreensão errônea do que o processualista italiano entende por ação e direito potestativo.
6. A TEORIA ECLÉTICA DE ENRICO LIEBMAN E AS CONDIÇÕES DA AÇÃO
A teoria do processualista italiano Enrico Tullio Liebman tem por espeque uma relativa aproximação entre as correntes dogmáticas abstrata e concreta, analisadas anteriormente, mantendo a desvinculação da ação em relação à sentença favorável ao autor, mas condicionando a sua própria existência a alguns requisitos; é, por essa razão, chamada de eclética, e o Código de Processo Civil de 1973 aderiu abertamente a ela.
A teoria de Liebman, em verdade, relaciona-se bastante ao estágio de evolução científica do Direito Processual de sua época; a concepção de total independência entre as esferas processual e material, extremamente popular até meados do século XX, começava a ser substituída pela noção de instrumentalidade dos institutos processuais em relação ao direito substancial, promovendo certa aproximação entre esses dois grandes ramos do Direito; não se retornava, de forma alguma, à confusão sincretista dominante até o século XIX, mas sim se evoluía em direção à ideia de que o Direito Processual deve ser compreendido de forma relacionada ao Direito Material e à luz de suas necessidades. É nesse contexto que se inserem as condições de Liebman; ainda que mantendo a autonomia da ação, elas impõem que tal instituto mantenha algum grau de relação (mesmo que pequeno) com a esfera material.
Liebman identifica um direito constitucional de dirigir-se ao Judiciário, previsto no art. 24[18] da Constituição Italiana, que estende a todos a possibilidade de ingressar em juízo para a defesa de seus direitos e interesses legítimos, bem como de receber auxílio estatal nessa tarefa, quando necessário (CHIARLONI, p. 1) [19]; não é, contudo, essa faculdade que o jurista italiano entende por ação. Enquanto o direito de agir em juízo, garantido constitucionalmente, reveste-se de caráter praticamente ilimitado, a ação processual, conforme vista por Liebman, representa o direito – condicionado e limitado – à prolação de uma sentença de mérito, dando maior concretude ao direito constitucional de agir. A ação é, em suas próprias palavras, o “direito ao processo e ao julgamento de mérito” (LIEBMAN, 1985, p. 151).
Esse direito, de natureza subjetiva, seria dirigido ao Estado (concepção que já se encontrava relativamente pacificada na doutrina desde Muther, sofrendo, basicamente, a oposição de Chiovenda), sem corresponder a um dever deste de prestar a tutela jurídica ao particular. Sustenta Liebman (1985, p. 152) que, encontrando-se o Estado igualmente interessado na resolução da lide que lhe é trazida à análise – e por estar a pacificação social entre seus escopos fundamentais –, não há que se falar em uma obrigação estatal ao pronunciamento judicial.
Liebman (1985, p. 151) entende que a ação é formada por três elementos distintos: os sujeitos, o pedido (a manifestação e a atuação judiciais desejadas pelo autor) e a causa de pedir (as questões fáticas e jurídicas que embasam o pedido). Note-se que, segundo a doutrina processualista mais tradicional (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2012, p. 292), é possível fracionar a causa de pedir em duas: a remota (correspondente às questões jurídicas) e a imediata (atinente aos fatos da relação discutida). Imagine-se, por exemplo, a situação em que determinado indivíduo ingressa em juízo para cobrar as parcelas vencidas e não pagas relativas à venda de um objeto qualquer; a causa imediata de pedir seria o inadimplemento das prestações por parte do devedor, enquanto a remota residiria no contrato de compra e venda firmado entre ele e o credor.
Não é inédita essa tripartição dos elementos da ação proposta por Liebman; já Chiovenda, alguns anos antes, firmou o entendimento de que a ação estruturava-se sobre três componentes: os sujeitos, o objeto (correspondente ao pedido) e a causa da ação, por ele definida como o “estado de fato e de direito, que é a razão pela qual se exerce uma ação e que habitualmente se cinde, por sua vez, em dois elementos: uma relação jurídica e um estado de fato contrário ao direito” (CHIOVENDA, 2002, p. 51 e s.). Note-se, portanto, que nem mesmo a divisão entre as causas de pedir remota e imediata escapou ao referido mestre italiano; Liebman e os doutrinadores pátrios apenas fizeram pequenas adaptações à exposição de Chiovenda.
O ponto central da teoria eclética, porém, é o polêmico tema das condições da ação. Elas, segundo Liebman, são pressupostos necessários da existência da ação e, ausente qualquer delas, carece da ação o ajuizador da demanda. O exame de sua ocorrência deve ser realizado de modo preliminar ao julgamento de mérito, de forma a viabilizá-lo, e o superveniente desaparecimento de qualquer delas, em qualquer fase do processo, deve levá-lo à extinção sem que se aprecie o mérito do pedido (LIEBMAN, 1985, p. 154).
Segundo o amigo e tradutor do processualista italiano, Cândido Rangel Dinamarco (2006, p. 306), as condições da ação fundamentam-se na necessidade da eficiência e economia processuais, impedindo que demandas sem a menor razão de ser cheguem a um julgamento de mérito; não se deve, nesses casos, sequer dizer que o ajuizador exerceu ação, já que seu pedido foi preliminarmente rejeitado.
George Lima (2001) [20], por outro lado, entende que o espeque teórico das condições da ação é o conflito entre o direito constitucional de agir e demandar em juízo e o direito de todo indivíduo (portador de capacidade de ser parte) de não ser processado indevidamente; logo, seria legítima, para o referido autor, a imposição de determinadas exigências para que a ação adquira existência.
É especialmente nesse ponto que a teoria de Liebman deixa de ser absolutamente abstrata e desloca-se em direção ao concretismo. Ao reconhecer que o direito de ação só se considera adquirido quando presentes suas condições, o referido jurista foge à tradição abstrata pura e vincula a própria existência da ação a algumas questões que, nitidamente, referem-se ao plano material. Não é correto, contudo, afirmar que Liebman é um concretista; afinal, sua teoria não condiciona a ação a uma sentença de mérito favorável ao autor, isto é, que lhe reconheça o direito substancial alegado, sendo-lhe indiferente tal questão. Merece, portanto, o adjetivo de eclética essa tese, haja vista que situa a ação em um meio-termo entre a total abstração do direito material e a sua completa dependência em relação ao mesmo.
Saliente-se que, para Liebman, não há atividade jurisdicional quando o julgador profere uma decisão terminativa, isto é, que extingue o processo sem julgamento de mérito, considerando carecedor da ação o ajuizador da demanda (BENEDET) [21]; afinal, o processualista italiano entende que ação e jurisdição são dois conceitos intimamente atrelados, de modo que um não pode existir sem o outro. Portanto, analisando apenas a coerência interna[22] do sistema de Liebman, é perfeitamente compreensível a conclusão de que a decisão que reconhece a inexistência da ação não possui natureza jurisdicional.
Ademais, é oportuno destacar que Liebman não entende o exame das condições da ação como uma análise de cognição superficial, baseada apenas nas alegações do ajuizador da demanda, mas sim como uma verificação entre as afirmações do autor e realidade dos fatos – o que exige, por certo, a existência de provas. Essa concepção é, talvez, a mais problemática de toda a sua teoria e receberá as críticas cabíveis no momento oportuno (tópico 7, infra).
Faz-se necessário, a esta altura do presente trabalho, adentrar no estudo das condições da ação propriamente ditas, quais sejam: o interesse de agir, a legitimidade das partes e a possibilidade jurídica do pedido, todas previstas no inciso VI do art. 267 do Código de Processo Civil. A última delas, passados alguns anos da publicação da teoria eclética, foi incluída por Liebman na categoria do interesse de agir[23]; por razões didáticas, porém, a abordá-la-emos separadamente no tópico 6.3, infra.
6.1 A LEGITIMIDADE DAS PARTES
Na precisa lição de Cassio Bueno (2012, p. 408), a legitimidade das partes refere-se à identidade entre os titulares da relação jurídica material e os sujeitos que se apresentam em juízo, tanto no polo ativo como no passivo da lide processual; é, nas palavras de Hadler Fernandes (2011, p. 37), “uma aptidão ou poder conferido a alguém para conduzir validamente um processo em que se discuta determinada situação jurídica”.
O problema da legitimidade subjetiva diz respeito à necessidade de saber sobre quem a tutela jurisdicional produzirá seus efeitos; afinal, tendo em vista que a sentença transitada em julgado faz lei entre as partes, é preciso que estas sejam aquelas diretamente envolvidas na relação jurídica de Direito Material. Conclusão diversa levaria a pelo menos uma das seguintes consequências, nenhum delas desejáveis: uma, no caso de ilegitimidade passiva, ocorreria uma indevida violação do direito à segurança jurídica do demandado; outra, na hipótese de ilegitimidade ativa, o ajuizador não legitimado, obtendo um pronunciamento favorável, passaria a usufruir de um direito que não lhe pertence. Como se vê, as duas possibilidades seriam desastrosas para a estabilidade do Direito.
A noção que fundamenta a legitimidade das partes é, dessa forma, praticamente intuitiva; repugna não só a lógica jurídica, mas também a do homo medius, a ideia de que determinado indivíduo pode ingressar em juízo para perseguir direito que pertence a outrem – ou, talvez pior ainda, exigi-lo de quem não está obrigado à sua prestação. Veja-se, a propósito, o que diz o próprio Liebman (1985, p. 157) sobre o tema:
Também quanto à ação, prevalece o elementar princípio segundo o qual apenas o seu titular pode exercê-la; e, tratando-se de direito a ser exercido necessariamente com referência a uma parte contrária, também esta deve ser precisamente a pessoa que, para os fins do provimento pedido, aparece como titular de um interesse oposto, ou seja, aquele em cuja esfera jurídica deverá produzir efeitos o provimento pedido.
Note-se que o reconhecimento da legitimidade das partes não implica, automaticamente, o do direito que se afirma em juízo, mas simplesmente da titularidade da relação jurídica a que se faz referência. O locador que pleiteia o pagamento dos aluguéis atrasados por parte do locatário, ao ser admitido como legitimado ativo para a ação de cobrança, não obteve, ainda, nenhum pronunciamento judicial no sentido de que possui o direito que alega. Conseguiu, simplesmente, o reconhecimento de que é parte na relação jurídica substancial e, consequentemente, pode levar a discussão sobre ela até a análise de mérito.
Não é outra, aliás, a dicção do art. 6° do Código de Processo Civil, quando afirma que “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei”; esse dispositivo legal contém a regra geral da legitimidade ordinária, isto é, da identidade entre as partes da ação e os sujeitos detentores de interesses opostos no plano material. É possível, contudo, que a lei processual autorize, em determinados casos, que se ingresse em juízo com a intenção de “pleitear, em nome próprio, direito alheio”; ocorrerá, nessas hipóteses, o fenômeno a que se dá o nome de legitimação extraordinária. Esta geralmente é admitida, como bem afirma Owen Fiss (1996, p. 22), quando a ação tem por objeto um pedido de tutela jurídica não só a direitos difusos e coletivos, pertencentes a toda a coletividade, mas também a direitos individuais homogêneos que, individualmente considerados, nem sempre terão grande relevância para seus titulares, mas que, vistos como um todo, são de grande interesse da sociedade[24].
Atente-se para o fato de que não se pode confundir o conceito de legitimidade das partes com a capacidade de ser parte, tampouco com a capacidade processual; enquanto a primeira, como explicamos, representa a “pertinência subjetiva” da ação (LIEBMAN, 1985, p. 159), a segunda expressa a possibilidade de figurar como sujeito no âmbito processual e a terceira relaciona-se à aptidão para tanto sem necessidade de representantes ou assistentes (FERNANDES, 2011, p. 38).
6.2 O INTERESSE DE AGIR
O interesse de agir representa a adequação e a necessidade do provimento judicial requisitado pelo autor em face do direito material para o qual reclama proteção, “operando uma melhora em sua situação na vida comum” (DINAMARCO, 2006, p. 309). Tem por fundamentação teórica, conforme Antônio Carlos Cintra, Cândido Dinamarco e Ada Grinover (2012, p. 289), a necessidade de o Estado excluir de sua apreciação, desde logo, as demandas que não serão capazes de gerar resultados úteis para o seu ajuizador. Os mesmo autores seguem oferecendo os conceitos de necessidade e adequação, componentes do binômio que forma o interesse de agir. Por necessidade entende-se a impossibilidade de conseguir a satisfação do direito material alegado por outras vias que não exijam a atuação do Estado-juiz[25]. A adequação, por sua vez, compreende a capacidade do provimento judicial solicitado para corrigir a situação de direito material trazida pelo autor; quanto a esse aspecto, os referidos doutrinadores trazem o exemplo da carência de ação por falta de interesse de agir (em virtude da inadequação do provimento solicitado) do marido que, descobrindo a traição da esposa, decide anular o casamento – e não pedir o divórcio.
Não é totalmente pacífico, na doutrina pátria, o tema da adequação como integrante do interesse; Barbosa Moreira (apud FERNADES, 2011, p.36) argumenta que é totalmente desarrazoado decidir que é carecedor de ação aquele que simplesmente escolheu a via inadequada para pedir a tutela jurisdicional; deveria ser aplicado, nesses casos, o comando do art. 295, V, do Código de Processo Civil, que prevê a possibilidade de adaptar o tipo de procedimento solicitado pelo autor à modalidade correta. Outrossim, o legislador separou, no próprio artigo supramencionado, as hipóteses de falta de interesse de agir (inciso III) e de inadequação da via eleita (inciso V), o que fortalece a corrente que preza pela não consideração da adequação como integrante do interesse processual. Melhor seria, consequentemente, falar-se em utilidade do provimento jurisdicional requerido, conceito que traduz a idoneidade da tutela jurídica estatal para trazer real vantagem ao autor (BRITO) [26] na situação fática que este levou ao conhecimento do Judiciário.
Não foram esses, entretanto, os contornos que Liebman conferiu ao tema; o processualista (1985, p. 155) afirmava que “seria uma inutilidade proceder ao exame do pedido para conhecer (ou negar) o provimento postulado, [...] quando [este] fosse em si mesmo inadequado ou inidôneo a remover a lesão”. Para o autor, portanto, o interesse de agir compõe-se de três elementos: a necessidade, a utilidade e a adequação da tutela solicitada. Pouco antes da entrada em vigor do Código de Processo Civil, ocorrida em 1973, Liebman deixou de tratar a possibilidade jurídica do pedido como uma condição autônoma e a incluiu na categoria do interesse processual; não está claro, em sua obra, a qual dos supramencionados três componentes (necessidade, utilidade e adequação) relaciona-se a possibilidade jurídica, mas cremos que esta se encontra mais intimamente ligada à utilidade. Afinal, sendo o provimento solicitado frontalmente contrário ao Direito, não há como imaginar que exista algum tipo de tutela jurisdicional capaz de satisfazê-lo, o que tonaria inútil o exame da situação por parte do Judiciário – ou seja, o pronunciamento do Estado-juiz seria totalmente inapto a produzir algum efeito útil ao autor.
Note-se que o interesse processual, tendo como objeto uma tutela jurídica, não se confunde jamais com o interesse substancial, focado no bem da vida a que se refere o direito material. O credor, por exemplo, tem o interesse substancial em ver a adimplida a obrigação; vencida e não paga esta, passará a ter o interesse processual em pedir que o juiz lhe conceda a tutela específica ou, quando impossível, a tutela ressarcitória[27]. Ambas são necessárias à proteção do direito (já que o devedor negou-se a realizá-lo) úteis ao autor (por traduzirem um melhoramento em sua posição jurídica, tornando-a mais vantajosa) e adequadas (idôneas a tutelar o direito material).
Diante do que expusemos, lícito nos é chegar à conclusão de que o “interesse de agir é [...] um interesse [...] secundário e instrumental em relação ao interesse substancial primário” (LIEBMAN, 1985, p. 155), com ele jamais se confundindo, mesmo com a íntima relação entre os dois institutos.
6.3 A POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO
A condição da possibilidade jurídica do pedido significa a não proibição, por parte do Direito Objetivo, da tutela jurisdicional solicitada, ou seja, a relação de conformidade entre o Direito e o objeto da ação. Conformidade, nesse caso, não quer dizer procedência da demanda ou reconhecimento do direito material, mas simplesmente a não vedação jurídica de sua exigibilidade.
Atente-se para o fato de que o termo “pedido”, constante da obra original de Liebman, não deve ser interpretado em sentido técnico estrito, mas sim de forma a abranger tanto o pedido propriamente dito como também a causa de pedir (BUENO, 2012, p. 413), e pensar de modo diverso induziria um notório desvio da finalidade dessa condição da ação. Imagine-se, por exemplo, o caso em que determinado credor ingressa em juízo para cobrar dívida oriunda da vitória em um jogo de azar; as dívidas de jogo, conforme preceitua o art. 814 do Código Civil, constituem obrigações naturais – judicialmente inexigíveis, portanto. Perceba-se que o pedido do credor – qual seja, a concessão da tutela jurisdicional que obrigue o devedor a realizar o pagamento – não é, em sim, juridicamente vedado; o que o Direito não admite, no entanto, é a situação de fato que lhe serve de fundamentação – a contração de uma dívida de jogo. Igual interpretação pode ser conferida, por exemplo, ao caso do traficante de drogas que recorre ao Judiciário para obter do comprador inadimplente o pagamento pela venda de dois quilos de cocaína. Em tais situações, o juiz declarará o ajuizador carecedor da ação, e extinguirá o processo sem análise de mérito por impossibilidade jurídica – não do pedido, tecnicamente falando, mas da causa de pedir.
O Direito, é claro, não proíbe que o credor provoque a jurisdição estatal para compelir o devedor a pagar o que deve; o que se veda, todavia, é que determinadas relações jurídicas sirvam de espeque para tal cobrança – a venda de drogas e a vitória em jogo de azar são exemplos disso. Portanto, para usar a tripartição dos elementos da ação proposta por Chiovenda (e explicada no tópico 6, supra), a possibilidade jurídica deve referir-se tanto ao objeto como à causa da ação.
Concluindo, cabe trazer à baila o que o próprio Liebman (1985, p. 161) entendia por essa condição de ação, antes de incluí-la na categoria do interesse de agir: “o terceiro requisito da ação é representado pela admissibilidade em abstrato do provimento pedido, isto é, pelo fato de incluir-se entre aqueles que a autoridade judiciária pode emitir, não sendo expressamente proibido”.