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A personalidade jurídica de direito internacional: afinal, são os indivíduos sujeitos de direito internacional público?

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Agenda 22/05/2013 às 09:52

No direito internacional público a personalidade jurídica do indivíduo é eficacial, indireta e desprovida de direito, pois, no âmbito do Tribunal Penal Internacional não detém capacidade para figurar no polo ativo de uma relação jurídica.

1.INTRODUÇÃO

O direito internacional público é um sistema jurídico autônomo que “regulamenta a conduta mútua de Estados[1]”. Também denominado direito das gentes, ele é baseado no consentimento, no princípio pacta sunt servanda. Na relação entre Estados e indivíduos na ordem interna, evidencia-se a subordinação. Diferentemente, na ordem jurídica internacional, a convivência entre países é regida pelo princípio da coordenação. Somente a aquiescência de um Estado soberano pode convalidar a autoridade de um foro judiciário ou arbitral sobre ele[2].

“A ordem jurídica universal demonstra, de modo notável, o alto grau da sua descentralização, se comparada com o tipo de ordens jurídicas com as quais está mais intimamente relacionada: um Estado federal ou uma confederação de Estados.”[3]

Trata-se de um direito criado para reger a relação entre Estados, entre países soberanos. Por isso diz-se que a personalidade jurídica do Estado é originária, porque o Estado é antes de tudo uma realidade física, um espaço territorial sobre o qual vive uma comunidade de indivíduos.

 Recentemente, a partir da segunda metade do século passado, o direito internacional passou a vivenciar uma nova era, com o surgimento de novas personalidades jurídicas, além dos Estados, a atuar em seu âmbito: as organizações internacionais. A sociedade internacional organizada passou a criar entes com as mais variadas formas de organização e de função,  formados pela congregação de Estados-parte, e lhes conferiu personalidade jurídica própria de direito das gentes, permitindo-lhes desde a sua concepção celebrar tratados e ser titular de direitos e deveres perante Estados soberanos.

 Com a evolução do direito, e principalmente com o surgimento da declaração dos direitos humanos no âmbito da Organização das Nações Unidas, reacendeu-se nos ciclos acadêmicos o pensamento de que não apenas os Estados soberanos e as organizações internacionais, mas também indivíduos são pessoas jurídicas de direito internacional público, levando outros a aceitar que isso possa se estender a empresas.

 Tendo esta problemática como cerne, o presente artigo se propõe a analisar com rigor científico a incidência das normas relativas à personalidade jurídica internacional, dedicando especial atenção para solucionar a controvérsia se são ou não os indivíduos e as empresas sujeitos de direito internacional.

 Para alcançar esse objetivo observar-se-á o fato jurídico da personalidade jurídica e verificar-se-á, objetivamente, se na fase atual do direito internacional público ocorre efetivamente a incidência do complexo de normas que tornariam indivíduos e empresas sujeitos de direito internacional.

 Devido à correlação entre conceitos jurídicos, a personalidade jurídica será estudada em conjunto com a capacidade jurídica e o sujeito de direito, uma vez que sua coexistência não pode prescindir.

 A lógica jurídica kelseniana e pontiana servirão de embasamento para o estudo da incidência normativa que dá origem à personalidade jurídica de direito internacional e aos sujeitos de direito internacional, de tal forma que serão aplicadas à realidade jurídica internacional hodierna com o fito de verificar o que este estudo se propõe a fazer.

 Por fim uma análise mais acurada recai sobre a participação de particulares em Cortes Internacionais, especialmente no Tribunal Penal Internacional, corte judiciária internacional criada na virada do milênio que é a única, dentre as que busca universalidade, a admitir seres humanos como réus.

 Cumpre-se, de antemão, salientar que o presente estudo não versa sobre os juízos arbitrais internacionais[4], que por imprecisão terminológicas podem ser levados à confusão com tribunais ou cortes judiciais. As relações discutidas naqueles, diferentemente destes,  são regidas por pactos privados, cujos conteúdos variam ao sabor da vontade das partes, que podem ser ou não Estados. Em centros arbitrais as relações jurídicas possuem caráter de direito privado, ramo que não entra no âmbito desta pesquisa.


2. PERSONALIDADE JURÍDICA, CAPACIDADE JURÍDICA E SUJEITO DE DIREITO.

A fim de proporcionar melhor compreensão da matéria, antes de tratar da personalidade[5] jurídica de direito internacional é importante conhecer os conceitos de sujeito de direito, capacidade jurídica e de personalidade jurídica à luz do Direito. Isto  porque ser pessoa é ter apenas a possibilidade de ser sujeito de direito. Para que algum ente seja considerado sujeito de direito ele deve estar na posição de titular de direito e deveres, não importa se munido de pretensão ou ação, mas que esteja em relação de direito, que seja polo de relação jurídica.[6]

Para a teoria tradicional, estar em relação jurídica tem estreita conexão com os conceitos de dever jurídico e de direito subjetivo, onde aquele nada mais é que o reflexo deste, ou seja, dever jurídico nada mais é que o direito subjetivo visto da perspectiva da pessoa em face da qual o dever há de ser cumprido, sendo a recíproca verdadeira[7].

Por outro lado, para a Kelsen esse dualismo entre direito subjetivo e objetivo deve ser superado, uma vez que o direito subjetivo situa-se em face do direito objetivo, da ordem jurídica. Desta forma

a Teoria Pura do Direito afasta este dualismo ao analisar o conceito de pessoa como a personificação de um complexo de normas jurídicas, ao reduzir o dever e o direito subjetivo (em sentido técnico) à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um individuo e ao tornar a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida; quer dizer: reconduzindo o chamado direito em sentido subjetivo ao Direito objetivo[8].

Francisco Pontes de Miranda, em lógica venerável, define que a relação jurídica se dá entre pessoas, isto é, entre entidades capazes de ter direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções. Destarte, relação jurídica é a relação interpessoal, a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna jurídica, tendo por conteúdo um direito e seu correlativo dever, ou dois ou mais direitos e seus deveres correlativos[9], de tal forma que há relação jurídica desde que a regra jurídica incida sobre alguma relação social ou interpessoal[10].

Para o jurista alagoano, o sujeito de direito é um dos termos da relação, “o ser sujeito de direito é entrar no suporte fático e viver nas relações jurídicas[11]”, “ser sujeito é a titularidade, não se confundindo com o exercício do direito[12].” Nesta senda, tem personalidade jurídica quem pode ser sujeito de direito: quem põe a máscara para entrar no mundo jurídico está apto a desempenhar o papel de sujeito de direito.          A regra jurídica não se dirige a multiplicidade de sujeitos de direito, e sim a multiplicidade de pessoas, isto é, seres que têm capacidade de direito, que podem vir a ser sujeitos de direito.

Seguindo nas lições pontianas, oportuno se faz, também, distinguir a relação jurídica básica da eficacial ou intrajurídica, pois no plano dos efeitos podem surgir relações jurídicas novas, que se chamariam eficaciais.

  “A relação jurídica básica não é eficácia do fato jurídico. É eficácia legal, eficácia da regra jurídica que incidiu. A eficácia jurídica, irradiação do fato jurídico e da própria relação jurídica, é outra coisa. Posto que espécie de relação jurídica[13].”A relação jurídica, que se forma ab initio (Relação Jurídica básica), não é eficacial do fato jurídico; se a alguma eficácia se liga é à da regra jurídica[14].

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  Para se figurar em relação jurídica é necessário que o sujeito possua capacidade de direito, isto é, tenha a capacidade de ser titular de direitos e deveres.

 Cumpre-se enfatizar que capacidade de direito não se confunde com capacidade de obrar[15] ou com capacidade de exercício, ou ainda com poder jurídico[16], caso contrário haveriam relações jurídicas sem sujeitos de direito (seria o caso do incapaz ou do menor representado em relação jurídica patrimonial). Capacidade de direito[17] é, conforme já mencionado, a capacidade de se fazer sujeito em relação jurídica, é ser pessoa jurídica[18], pois apenas a pessoa tem capacidade de direito.

Ser gente não é ser pessoa. Por mais estranha que possa parecer essa assertiva, principalmente para aqueles que não são cientistas do direito e atuam nos campos da antropologia ou sociologia, para a ciência jurídica é o ordenamento que atribui personalidade à entes, é o conjunto de normas jurídicas que define quem é pessoa jurídica[19]. Seres humanos nem sempre possuíram capacidade de direito, isto é, nem sempre foram pessoas. Em Roma os escravos não eram sujeitos de direito e em diversas sociedades da antiguidade mulheres também não eram.

É cediço que o direito evoluiu de tal sorte que hodiernamente no direito interno brasileiro[20] e da maioria dos países de nossa comunidade global, o Direito atribui personalidade jurídica a todos os indivíduos humanos, uma decorrência clara do princípio da igualdade.

Esse fato jurídico recorrente nos direitos internos das principais civilizações modernas pode levar a mente fértil e desprovida de compromissos científicos a ter convicção de que este é um fato jurídico de direito das gentes, e é neste ponto que deve-se ter cautela quando da análise da personalidade jurídica.

Neste sentido leciona Celso Albuquerque de Mello “a personalidade jurídica tem uma dimensão histórica, significando isto que os sujeitos de direito não são sempre os mesmos e variam conforme a época histórica”.[21]

Mediante o exposto verifica-se que ser pessoa jurídica: 1) é ter capacidade de direitos e deveres, 2) é ser suporte de um complexo de normas que liga uma sanção a determinada conduta e torna a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida, 3) é ter a possibilidade de ser sujeito de direito, “ente que figura ativamente na relação jurídica fundamental ou nas relações jurídicas que são efeitos ulteriores”[22]. Só se deve falar em sujeito de direito quando se vê, em casos concretos, na posição subjetiva, a pessoa[23].

Logo, se esta fosse uma análise do direito interno brasileiro não restaria dúvidas de que seres humanos possuem personalidade jurídica desde seu nascimento com vida, sendo titulares de direitos e deveres, obrigações, pretensões, ações e exceções, podendo, destarte, serem parte em relações jurídicas.

Não obstante, a presente análise recai apenas sobre as normas de direito internacional público. Portanto, a fim de que seja feita com o rigor científico o estudo requer, analisar-se-á se existe na ordem jurídica internacional um complexo de normas que atribuam ao individuo e/ou empresas a titularidade de direitos e deveres, conferindo-lhes capacidade jurídica e permitindo-lhes ser partes em relação jurídica com Estados estrangeiros.

Outra questão que será abordada, pois inevitavelmente o pesquisador deste tema se depara, é a possibilidade de, ainda que a personalidade não seja atribuída expressamente, como ocorre no Código Civil brasileiro, haver hipótese legal em que empresas e, principalmente, seres humanos possam figurar como sujeitos de direito em relações de direito das gentes.


3. A PERSONALIDADE JURÍDICA DE DIREITO INTERNACIONAL

3.1. ESTADOS E ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

 Estados soberanos (a Santa Sé por razões singulares se equipara a Estados soberanos) e as organizações internacionais em sentido estrito são pessoas jurídicas de direito internacional público[24]. Ambos possuem a capacidade jurídica de figurar em relações jurídicas internacionais, de celebrar tratados, firmar acordos, convenções, ou seja, de ser titular de direitos e deveres no plano do direito internacional público.

 Os Estados possuem personalidade jurídica originária, enquanto as organizações internacionais possuem personalidade jurídica derivada. Diz-se isso porque o Estado é antes de tudo uma realidade física, um espaço territorial sobre o qual vive uma comunidade de indivíduos. A organização internacional, por sua vez, depende da vontade conjugada de certo número de Estados para existir, ela é produto exclusivo de elaboração jurídica. [25]

 Por isso afirma-se que o tratado de constituição de uma Organização internacional é mais importante que a constituição de um Estado, porque o estado não depende dela para ser pessoa jurídica, basta que exista uma realidade material que dê suporte à sua personalidade: um contingente populacional convivendo dentro de um território, com alguma forma de regramento. Neste sentido, a constituição de um Estado nada mais é que a consolidação dos valores jurídicos mais caros à sua ordem. De outro lado o tratado de constituição de uma organização internacional lhe dá vida, é ele que a confere personalidade jurídica[26].

3.2. INDIVÍDUOS E EMPRESAS

 Embasado por toda a lógica jurídica apresentada no item anterior e lastreado em noções fundamentais do direito internacional público, passa-se a verificar se, no ordenamento jurídico internacional, existe norma que confere personalidade jurídica aos particulares.

Em matéria de direito internacional é cediço que pessoas físicas e empresas não possuem a prerrogativa de celebrar tratados, acordos ou qualquer outra forma de produção do acervo normativo internacional[27], sendo certo que essa competência é exclusiva dos Estados soberanos e, recentemente, das organizações internacionais, pelo que facilmente se deduz que são apenas esses últimos os atores do direito internacional público, isto é, aqueles com capacidade de agir.

 Dito isso, se infere que os entes humanos e as corporações jurídicas que não são Estados nem organizações internacionais não têm capacidade de exercício, isto é, não figuram em relações jurídicas internacionais que criam obrigações mútuas. Contudo, como já visto quando tratando sobre personalidade jurídica, a simples ausência de capacidade de exercício não é suficiente para afirmar que entes não são sujeitos de direito, pois não se deve confundir capacidade de exercício com capacidade jurídica.

É notório também que não há no âmbito do direito das gentes norma jurídica equivalente ao Art. 2º do Código Civil brasileiro, o qual confere a todos os indivíduos personalidade jurídica desde o nascimento com vida. Portanto, para que haja a possibilidade de pessoas físicas e empresas serem detentores de personalidade jurídica internacional é imprescindível que encontremos dispositivo no acervo normativo supra-nacional que confira a eles a possibilidade de figurar como sujeitos de direito internacional público, ou seja, participarem de relação jurídica de direito internacional público.

Não existem dúvidas de que diversas normas são direcionadas à indivíduos e empresas, mas este fato, por si só, não significa que a ordem jurídica universal tenha lhes oferecido a capacidade de direito, pois, como já visto, para tal fim outros suportes normativos também devem incidir, especialmente a possibilidade de ser parte em relação jurídica internacional. Neste ponto calha relembrar que plantas e animais também são objetos de normas internacionais, mas nem por isso se cogita denominá-los pessoas jurídicas.

 É desprovido de cientificidade o argumento que sugere o ser humano como pessoa jurídica de direito internacional pelo simples fato de normas do direto das gentes serem a eles dirigidas, ou ainda, e pelo fato de ser dele a criação de que resulta toda a ciência do direito[28].

 Conforme já mencionado, os sujeitos de direito variam de acordo com a evolução e a modificação do ordenamento. É perfeitamente possível que os indivíduos e as empresas sejam considerados sujeitos de direito internacional, que litiguem em pé de igualdade com Estados em tribunais de âmbito universal, seja no pólo passivo ou ativo da demanda. Isso nunca se negou. Tal afirmação não pode, no entanto, prescindir de análise científica.

 É justamente com este intuito que passa-se a avaliar os tratados que constituem tribunais internacionais, e verificar se eles permitem o acesso de particulares, ou seja se há a possibilidade de indivíduos e empresas figurarem no pólo de relação jurídica litigiosa regida pelo direito internacional público.

Para tanto, estudaremos em sub-itens separados cortes interestatais de âmbito regional, especialmente a Corte de Justiça da Comunidade Europeia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e a única corte no direito moderno que se propõe a ter abrangência universal que admite indivíduos, o Tribunal Penal Internacional.

3.2.1. Indivíduos e empresas perante o Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

 Exemplo de escola do que pode vir a se tornar direito internacional público é o que ocorre com o TJCE[29], onde ao particular é conferida a capacidade de demandar e ser demandado por Estados soberanos, desde que o Estado com o qual mantenha algum vínculo de sujeição, geralmente a nacionalidade, e aquele onde tenha cometido ou sofrido o ilícito sejam membros da União Europeia. Ainda que sirva de amostra e facilite a visualização de um possível futuro jurídico universal, é importante destacar de início que este fato não passa de um fato jurídico de direito comunitário, não sendo portanto norma geral de direito internacional, pelo que não se pode afirmar, neste contexto, que o indivíduo e a empresa são sujeitos de direito internacional.

 Ademais, como leciona Francisco Rezek, os foros internacionais acessíveis a indivíduos e empresas, tal qual a Corte de Luxemburgo, só o são “em virtude de compromisso estatal tópico, e esse quadro pressupõe a existência, entre o particular e o Estado copatrocinador do foro, de um vinculo jurídico de sujeição[30].” Assim, se a Alemanha decide retirar-se da União Europeia, seus cidadãos e empresas não poderão ser submetidos àquela Corte, nem tão pouco particulares de outros Estados poderiam lá litigar contra ela.

 No âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), estabelecida em 1979 e sediada em San José da Costa Rica, para que indivíduos, nacionais dos países que ratificaram o tratado que instituiu a corte, tenham a ela acesso deverá ser exaurida a possibilidade de recurso às instâncias judiciais internas. Esta corte, assim como o TJCE, possui competência limitada aos países que integram seu tratado constitutivo, notadamente os países membros da OEA, aos quais também é lícito dela se desvincular a qualquer tempo.

Por essa razão, também nesta hipótese, é incorreto afirmar que se trata de uma norma geral de direitos da gentes, todavia sem dúvidas a CIDH também serve de exemplo para retratar que a existência de seres humanos com personalidade jurídica internacional é uma realidade possível ao direito das gentes.

3.2.2. Indivíduos perante o Tribunal Penal Internacional

 Perpassada a análise sobre alguns dos mais importantes tribunais interestatais de âmbito regional criados por Estados soberanos e que admitem particulares como litigantes, servindo de demonstração dos avanços que indicam para um futuro possível do direito das gentes, dedica-se agora ao estudo do complexo de normas que forma a mais recente corte judiciária internacional, e que se propõe a ser de abrangência universal, a admitir particulares no pólo passivo da demanda: O Tribunal Penal Internacional, constituído pelo Estatuto de Roma[31].

Uma vez que o direito das gentes é sistema jurídico marcado pelo princípio da coordenação, da mesma forma como ocorre nas cortes de âmbito regional citadas no presente artigo, somente os Estados que ratificaram a Convenção de Roma estão obrigados a levar indivíduos à corte penal internacional. De tal sorte que qualquer Estado que dele seja parte pode, a qualquer tempo, denunciar o tratado, extinguindo-se desde então a obrigação preexistente. A complementariedade de jurisdição do TPI é sublinhada desde o preâmbulo de seu estatuto: “O Tribunal Penal Internacional (...) será complementar às jurisdições penais nacionais.”

 Essa posição fica ainda mais clara no Art. 20, quando o Estatuto veda o bis in idem, conforme colacionado abaixo, in verbis:        

Art. 20,

3. O Tribunal não poderá julgar uma pessoa que já tenha sido julgada por outro tribunal, por atos também punidos pelos artigos 6o, 7o ou 8o, a menos que o processo nesse outro tribunal:

a) Tenha tido por objetivo subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou

b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça.

 Destarte, anda bem quem aduz que a jurisdição do TPI em relação aos particulares dos Estados-parte é ainda mais residual do que aquela conferida à Corte IDH, porquanto naquela está vedado o bis in idem, enquanto nesta é lícito a indivíduos que sintam seus direitos humanos lesados recorrer da decisão de Direito interno, inclusive no pólo ativo da demanda.

 A ratificação de tratados por Estados formaliza a vontade estatal de colocar em prática internamente e tornar o mais amplo possível externamente os efeitos dos termos acordados. O Art. 17[32] e o retro colacionado parágrafo 3 do Art. 20, do Estatuto de Roma, seguem essa mesma lógica, pois fica claro que é vontade dos Estados-parte tornar obrigatória a jurisdição penal para os crimes descritos no Art. 5º, impedindo que se absolva ilegalmente ou deixe-se de processar indivíduos acusados de praticar os crimes da gravidade dos ali previstos, e assim saiam impunes.

 Portanto, a norma jurídica prevista no Estatuto de Roma é claramente tendenciada a obrigar Estados a processar e julgar com imparcialidade seus nacionais acusados de cometer crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão[33], e caso o Estado-membro não o faça deverá, então, submetê-los, assim como deverá submeter os estrangeiros acusados dos mesmos crimes que não são de sua competência jurisdicional (seja por ausência do vínculo de nacionalidade ou pela não aplicação do princípio da territorialidade), mas que por algum motivo se encontrem em seu território, à Corte Penal Internacional.

 De todo modo, diante da realidade jurídica em que o particular pode ser parte um litígio internacional, está correto quem afirma que o indivíduo que senta no banco de réus de uma corte internacional possui personalidade de direito internacional, isto porque, ainda que esteja no pólo passivo da demanda, ele figura em relação jurídica de direito internacional, e conforme estudado, é a possibilidade de ser parte em relação jurídica que dá suporte à personalidade.

A ciência pura do direito, ao considerar a personificação, reduz o dever e o direito subjetivo à norma jurídica que liga uma sanção a determinada conduta de um individuo e ao tornar a execução de sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida, também para essa teoria a mera possibilidade de figurar em pólo de relação jurídica de direito internacional já torna o indivíduo pessoa.

 No entanto, para que o estudioso do direito das gentes possa qualificar o ser humano como sujeito de direito internacional é necessário avaliar este conceito minunciosamente.

Visto que a sujeição jurídica do indivíduo no Tribunal Penal Internacional depende da aquiescência do Estado, e ainda da captura e entrega do particular à Corte, seguindo a lógica pontiana, pode-se inferir que a natureza da relação jurídica que se forma entre o individuo e referidas cortes é intrajurídica, ou eficacial, uma vez que são efeitos da relação jurídica básica, aquela decorrente da ratificação do tratado pelo Estado-parte.

Não é demais relembrar que as relações intrajurídicas são produzidas pela eficácia da relação jurídica básica, isto é, são irradiação da própria relação jurídica, por isso mesmo são espécie de relação jurídica. Neste trilhar, a personalidade jurídica dos seres humanos na corte penal internacional é uma personalidade jurídica fruto de relação intrajurídica, com capacidade jurídica limitada à relação ab initio e dela dependente.

 Em lógica semelhante, Kelsen afirma que a regulamentação da conduta de indivíduos em direito internacional se dá apenas de modo indireto, através da mediação das ordens jurídicas nacionais, decorrência clara da descentralização do direito internacional[34].

 Kelsen também aduz que não se exclui a possibilidade de tratados internacionais estabelecerem tribunais onde indivíduos sejam sujeitos de direito, não obstante faça ressalva que referida hipótese se dará apenas excepcionalmente. “Caso esse procedimento fosse a regra, a fronteira entre direito internacional e nacional desapareceria[35].”

 Indivíduos sentam-se exclusivamente no banco dos réus do TPI. Este fato leva o pensador a se questionar quanto à dualidade entre direitos e deveres. Haja vista que para a doutrina tradicional o dever é o reflexo do direito, poder-se-ia cogitar que no direito penal internacional contemporâneo a pessoa humana é apenas sujeito de deveres.

 Pontes de Miranda previu essa possibilidade  quando afirmou, “poder-se-ia  conceber o sujeito de deveres, nem ser sujeito de direito, e esse sujeito seria pessoa”.

  Assim, a pessoa humana para o Tribunal Penal Internacional é uma pessoa jurídica fruto de uma relação jurídica indireta, o compromisso entre Estados, e que só o é para que se lhe exija deveres, pois não lhe é conferida a capacidade de demandar.

Neste sentido o renomado jurista criador da teoria pura do direito afirma que, “indivíduos podem ter direitos internacionais apenas se existir um tribunal internacional perante o qual possam recorrer como queixosos[36].”

 Diante do exposto, ainda que se admita que as pessoas físicas sejam pólo de relação jurídica de direito internacional, tem-se que ter em conta que elas não possuem capacidade jurídica plena, uma vez que além de não poderem figurar em relações jurídicas de direito internacional básicas, não possuem direitos, haja vista a impossibilidade de recorrer à Corte como queixosos.

 Referidos fatores levam o pensador comprometido a se preocupar quanto à imprecisão científica que é gerada quando da afirmação genérica de que indivíduos são pessoas jurídicas de direito internacional, pois, como aventado pelas doutrinas mais festejadas, a personalidade jurídica remete diretamente à possibilidade de ser sujeito de direito. De maneira diferente, na estrutura normativa do TPI indivíduos se apresentam apenas no polo passivo da demanda, como sujeitos de deveres e, ainda assim, desde que o país do qual é nacional ou que nele se encontre seja parte do Estatuto de Roma.

 Ademais, a universalidade do fato jurídico, requisito imprescindível para que determinada norma figure no âmbito do direito das gentes, pode também ser questionada. Isto porque uma fonte jurídica convencional de direito das gentes para ser considerada norma geral de direito internacional deve ter abrangência universal, ou no mínimo, algo que muito se aproxime disso, haja vista que caso não possua essa característica o dispositivo legal estará fadado a ser comparado com acordos regionais.

 Nesta senda, a carência de universalidade da personalidade jurídica do indivíduo em tribunais que se propõem a ser de jurisdição universal, à exemplo do TPI, pode ser constatada pela não ratificação de seu tratado constitutivo pelos EUA, China, Rússia, Etiópia, Egito, Arábia Saudita, dentre outros países do globo com influência no direito da gentes, os quais representam contingente significante da população mundial A estes indivíduos a personalidade de direito internacional não incide.  

Sobre o autor
Olavo Soares Bastos

Advogado formado pela Universidade Federal de Alagoas e estudante de Mestrado em Direito das Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, Olavo Soares. A personalidade jurídica de direito internacional: afinal, são os indivíduos sujeitos de direito internacional público?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3612, 22 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24499. Acesso em: 24 nov. 2024.

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